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A relação psique-mundo

4 POR UMA CIENTIFICIDADE DA PSICANÁLISE: O CONHECIMENTO PSICANALÍTICO COMO CIÊNCIA E FICÇÃO

4.4 A Teoria dos Campos como aproximação ao método em Psicanálise.

4.4.1 A relação psique-mundo

Em primeiro lugar, nossa organização, - isto é, nosso aparelho psíquico – desenvolveu-se precisamente no esforço de explorar o mundo externo, e portanto, teria de ter concebido em sua estrutura um certo grau de utilitarismo;- em segundo lugar, ela própria é parte constituinte do mundo que nos dispusemos a investigar e admite prontamente tal investigação; em terceiro, a tarefa da ciência ficará plenamente atingida se a limitarmos a demonstrar como o mundo nos deve parecer em consequência do caráter específico de nossa organização; em quarto, as descobertas supremas da ciência, precisamente por causa do modo pelo qual foram alcançadas, são determinadas não apenas por nossa organização, mas pelas coisas que influenciaram essa organização; finalmente, o problema da natureza do mundo sem levar em consideração nosso aparelho psíquico perceptivo não passa de uma abstração vazia, despida de interesse prático (FREUD, 1980 u, v. 21, p. 70-71).

Com estas palavras de Freud, endossamos as afirmações de Fábio Herrmann, para quem a vocação plena da Psicanálise é a de erguer-se como uma ciência da psique no mundo, não apenas como uma teorização sobre disposições psicopatológicas individuais. A obra de

Freud dá seu testemunho da importância deste movimento de alargamento das fronteiras da Psicanálise, frequentemente por ser limitada e confundida com tratamento psicoterapêutico.

Como o mundo nos deve parecer em consequência do caráter específico de nossa organização psíquica? Esta indagação nos leva a uma maior aproximação do corpo enquanto corpo da representação, e à busca pelo esclarecimento da relação dialética psique- mundo.

Nascida da clínica das neuroses, por propósito original, a Psicanálise foi chamada a explicar os desvios da percepção correta do mundo, dentro de uma visão simplista da realidade, que a vê como um conjunto de fatos e coisas, como se a percepção fosse uma espécie de fotografia do mundo. Dentro deste quadro de referências, o julgamento correto da realidade deve lutar contra o efeito das emoções, das paixões e da neurose.

Ao criar a psicanálise, Freud acabou por construir um sistema de pensamento que refuta toda ingenuidade perceptualista, uma vez que por força da presença do inconsciente, toda percepção torna-se emocional, assim como a própria realidade se mostra uma complexa e mutável construção subjetiva. De fato, haveria, de acordo com Herrmann (1999), uma ambiguidade na psicanálise, onde convivem duas concepções sobre o que é a realidade: de modo explícito, realismo ingênuo e a ideia de uma distorção subjetivo-emocional; implicitamente, uma teoria do real que concebe a realidade como pura representação. Com efeito, o conhecimento psicanalítico passa a exigir outros modelos de relação do homem com o mundo.

O real humano passa a ser entendido como sendo a própria cultura, um sistema gerador de sentidos: “a cultura, o real humano, estaria dentro e fora, como sistema gerador de realidade. Que realidade? Ora, a materialidade certamente existe e permanece, mas não é assunto psicanalítico; já o sentido, a representação do real, é a realidade que nos concerne” (HERRMANN, 1999, p. 31).

Encarnado na vida cultural, o real humano é uma psique mundanizada, concreta, sempre ativa. Por sua vez, o sujeito individual ou coletivo é criado como uma dobradura do real, como se dentro de cada um de nós houvesse um real recortado.

Decorre desta compreensão da relação psique – mundo, que o objeto da psicanálise é o Homem Psicanalítico, o ser do método da psicanálise, que tem por substância o seu sentido e por habitat e origem o real humano, psíquico:

O homem psicanalítico. Por que psicanalítico? Simplesmente porque o objeto da psicanálise, a psique, o homem da psique, não é o homem inteiro, concreto total. [...] Nosso objeto não poderia ser o homem total. Primeiro por ser este somente o psiquismo humano, o reino dos sentidos e significados;

segundo porque ele é estudado através de um método interpretativo muito especial, que só é confiável quando põe seu objeto em movimento dialogal; terceiro, por ser constituída de campos a psique assim exposta, vale dizer, apreensível apenas em subconjuntos particulares, circunstanciais, histórica e socialmente determinados (HERRMANN, 1999, p. 17).

Vamos examinar estas afirmações de Herrmann. O objeto da psicanálise é o psiquismo humano, entendido como o reino dos sentidos e significados, mas que apenas podem ser apreendidos como campos inconscientes de significação, que se dão a conhecer nas relações dialogais, campos estes que são distintos da intenção consciente do que é falado. Cada relação humana supõe um campo inconsciente de significação, que determina o sentido de qualquer comunicação.

Desta forma, o campo seria um assunto em pauta, mas cujo sentido desliza sempre para outros sentidos possíveis, sustentados pelas relações que nele ocorrem:

Cada relação humana dada supõe um campo na análise, mas também na vida do indivíduo ou da sociedade humana. Assim se cria uma autêntica generalização operacional do conceito de inconsciente; qualquer campo concebível possui a índole de inconsciente relativo para as relações que suporta (HERRMANN, 1999, p. 29).

O real quotidiano, dentro deste quadro de referências da Teoria dos Campos de Fábio Herrmann, é concebido como uma série de determinantes (campos) e determinados (relações). Um campo é tanto o inconsciente nas relações (o inconsciente relativo) como o próprio instrumento de sua demonstração.

Ao método psicanalítico cabe efetuar a ruptura do campo em pauta, evidenciando sempre a abertura para os outros sentidos possíveis, pela via da interpretação: “Em essência, propor uma interpretação significa geralmente mostrar que certo conjunto de ideias, de falas, de comportamentos, de emoções, de fatos sociais, etc., significa algo diferente do que pareceria manifestar, daí a expressão usual conteúdo manifesto” (HERRMANN, 1999, p. 13).

Mas a interpretação não prova coisa alguma, apenas cria condições para que surja o sentido, este que emerge por efeito da ruptura de campo: “Esta é a ideia básica da noção de ruptura de campo. O analista que interpreta, ao tomar em consideração o valor metafórico do discurso do paciente – ou, a propósito, de qualquer recorte do real – espera induzir uma ruptura dos pressupostos que limitavam seu sentido, encarnados numa área psíquica transferencial ou campo” (HERRMANN, 1999, p. 15).

Portanto, em consequência do caráter específico de nossa organização psíquica, o mundo externo, a realidade não é um produto natural, a impor suas leis cegas sobre o homem, mas a imagem e semelhança do próprio homem que a reconstruiu. O eu tenta manter sua ilusão de independência em relação ao mundo, mas a realidade, tanto quanto a identidade, é representação.

A cultura procura criar um mundo de dimensões humanas e um sistema de representações que dê conta, simultaneamente, da interioridade do sujeito e do exterior, sólidas representações de identidade e realidade. Por esta razão, a teoria psicanalítica não pode separar psique e real, posto que o real humano possui as mesmas regras constituintes do desejo inconsciente.

Desta forma, estudaremos o real por meio da realidade, esta que é o conjunto das representações, as quais constituem a superfície aparencial do mundo e são compartilhadas pelos homens, a face do real que se pode mostrar. Nosso mundo, em certo sentido, é o inconsciente, a psique do real, mas que somente chega a representar-se por meio da consciência. O real que nos concerne “só pode ser este ser duplo, com uma face aparencial, produto da rotina, a realidade, e seu solo absurdo, os campos do real, equivalentes à lógica do inconsciente” (HERRMANN, 2001, p. 288-289).

Para seguirmos na direção das metáforas da cultura, em que o corpo é emblemático do que se passa com o sujeito e seu mundo, trataremos neste momento de precisar um pouco mais os conceitos de eu e de identidade, agora pela contribuição da Teoria dos Campos.