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Ajustando nossos instrumentos de navegação

2 A MODERNIDADE, O CORPO E A PSICANÁLISE

2.2 Olhares cruzados sobre o corpo

2.2.1 Ajustando nossos instrumentos de navegação

Ao tomarmos a noção de corpo para a Psicanálise, como objeto de estudo, buscamos eleger a racionalidade desta como bússola orientadora de nossa trajetória. Para tanto, procuramos situar a Psicanálise como saber da Modernidade, que também participa de sua construção, posto que ela é parte constitutiva e constituinte da modernidade do corpo.

Que tipo de racionalidade a Psicanálise inaugura? Haveria um caminho epistemológico compartilhado com outras disciplinas, de modo que possamos reconhecer suas filiações na história do pensamento ocidental? Qual a originalidade da contribuição teórica da Psicanálise para a compreensão da noção moderna de corpo?

A narrativa que empreendemos sobre a história do corpo pretende responder a estas questões levantadas, partindo da premissa inicial segundo a qual a Psicanálise situa-se dentro do que Ginzburg (1989) nomeia como paradigma indiciário ou semiótico. Partimos também do pressuposto de que para descortinarmos a suposta originalidade da psicanálise, faz-se necessário conhecermos os diferentes saberes sobre o corpo, constituídos no período delimitado pela modernidade.

O modelo epistemológico indiciário ou paradigma indiciário nasce da semiótica médica, “disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes inacessíveis aos olhos do leigo” (GINZBURG, 1989, p. 152)

Embora baseado na semiótica, teoria que visa elucidar os sistemas de significação, o modelo indiciário é muito antigo, remontando ao patrimônio cognoscitivo que herdamos dos primeiros caçadores:

Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pelos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar as pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas (GINZBURG, 1989, p. 151).

Trata-se de um saber de tipo venatório, sendo a sua principal característica “a capacidade, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa, não experimentável diretamente” (GINZBURG, 1989, p. 152).

Partindo da constituição da capacidade de ‘decifrar’ ou ‘ler’ as pistas dos animais, encontramos na modalidade de raciocínio da semiótica, a tendência a inferir as causas a partir dos efeitos. De acordo com Ginzburg (1989), podemos observar a presença da semiótica em uma constelação de disciplinas orientadas para a análise de casos individuais, reconstituíveis apenas através de pistas, sintomas e indícios. Na origem destas disciplinas, encontramos saberes oriundos das civilizações mesopotâmicas que foram disseminados na Grécia de Hipócrates e culminaram nas modernas filologia, historiografia e medicina.

Em “O Moisés de Miguelângelo” (trabalho de 1914), Freud (1980a) reconhece explicitamente o parentesco entre a técnica da psicanálise médica e o método indiciário de Morelli, médico italiano que entre 1874 e 1876 propôs um novo método de atribuição dos quadros antigos. Consistia este método em discriminar os quadros verdadeiros das imitações a partir da análise minuciosa de detalhes como a forma com que orelhas e unhas eram pintadas pelo autor. Esses dados marginais eram reveladores da autoria das obras porque constituíam os momentos em que o controle do artista, ligado à tradição cultural, era rebaixado para dar lugar a traços individuais que lhe escapam, sem que ele se desse conta. Assim descreve Freud a semelhança entre o método de investigação de Morelli e a técnica psicanalítica:

Muito antes de ter tido qualquer oportunidade de ouvir falar em Psicanálise, soube que um conhecedor de arte russo Ivan Lermolieff, provocara uma revolução nas galerias de arte da Europa colocando em dúvida a autoria de muitos quadros, mostrando como distinguir com certeza as cópias dos originais. [...] Conseguiu isso insistindo em que a atenção deveria ser desviada da impressão original e das características principais de um quadro, dando-se ênfase à significação de detalhes de maior importância, como o desenho das unhas, do lóbulo de uma orelha, de auréolas e de outras trivialidades não consideradas que o copista desdenha imitar e que, no entanto, cada artista executa à sua maneira própria e característica. [...] Parece-me que seu método de investigação tem estreita relação com a técnica da psicanálise que também está acostumada a adivinhar coisas secretas e ocultas a partir de aspectos menosprezados ou inobservados do monte de lixo, por assim dizer, de nossas observações (FREUD, 1980 a, v. 13, p. 264-265).

Mas o que pode representar, para Freud, a leitura dos ensaios de Morelli? Nas palavras de Ginzburg a resposta é: “a proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores” (GINZBURG,1989, p. 149-150).

Em Freud, a própria ideia de inconsciente nos leva a percorrer o caminho que vai dos sintomas-sinais, que se constituem de acontecimentos ou gestos corriqueiros, até o sentido destes que revelam as verdades desconhecidas do sujeito, ligadas frequentemente a seus desejos inconfessáveis. O texto freudiano é detetivesco, empenhado, desde os seus primórdios, em deslindar o encaixe das peças de um complexo quebra - cabeças: o modo de funcionamento do psiquismo humano.

No final do século XIX, momento de emergência da Psicanálise, encontramos um profundo descontentamento com o modelo de cientificidade hegemônico, calcado na racionalidade herdeira de Descartes e Bacon, filiada à física galileana, cujo método de apreensão dos fenômenos é a matemática. Assim, verificamos a emergência de um debate de longo alcance que sinaliza, de um lado, os fenômenos matematizáveis, pertencentes aos objetos tangíveis e sujeitos ao método quantitativo e generalizante. De outro, o reino imaterial das representações, dos traços individuais e todos os particularismos que não se deixam matematizar, produzindo uma enorme gama de ocorrências não cobertas pela racionalidade hegemônica.

No âmbito deste debate, o grupo de disciplinas que chamamos de indiciárias, que incluem a medicina, não entra nos critérios de cientificidade próprios do paradigma galileano, pois são disciplinas qualitativas, que elegem como objeto de estudos os casos e situações individuais. A situação de crise é assim descrita por Ginzburg:

No mapa do saber abria-se um rasgo destinado a se alargar continuamente. E certamente entre o físico galileano, profissionalmente surdo aos sons e insensível aos sabores e aos odores, e o médico contemporâneo seu, que arriscava diagnósticos pondo o ouvido em peitos estertorantes, cheirando fezes e provando urinas, o contraste não poderia ser maior (GINZBURG,1989,p. 158).

[...]

Abriam-se duas vias: ou sacrificar o conhecimento do elemento individual à generalização (mais ou menos rigorosa, mais ou menos formulável em linguagem matemática), ou procurar elaborar, talvez às apalpadelas, um paradigma diferente, fundado no conhecimento científico (mas de toda uma cientificidade por se definir) do individual (GINZBURG,1989, p. 163).

Para Ginzburg, o conjunto das ciências humanas permaneceu solidamente ancorado no qualitativo, mas mantendo-se um mal-estar em torno das incertezas, especialmente no caso da medicina, cujos conhecimentos foram mostrando que embora com características comuns, uma mesma doença assumia formatos diferentes, em cada indivíduo. No entanto, mesmo com as dificuldades no caminho da construção de outros modelos de racionalidade, as ciências

humanas foram assumindo cada vez mais a necessidade de tal empreendimento, aproximando-se cada vez mais do paradigma indiciário da semiótica. E aqui encontramos também a situação da Psicanálise, que como ciência humana, foi configurando-se como heurística, erigindo uma cientificidade própria, baseada nas descobertas que os casos clínicos de Freud iam permitindo.

Pode um paradigma indiciário ser rigoroso? A esta indagação feita por Ginzburg, este responde com uma reflexão sobre com que tipo de rigor estamos lidando. Não é certamente o rigor da matemática, posto que os dados com que trabalham as ciências humanas são ligados à experiência cotidiana e a todas as situações em que a vivência única do sujeito não permite serem replicáveis a outros. Ginzburg assinala então a idéia de ‘rigor flexível’ para referir-se ao paradigma indiciário, no qual as regras não se prestam a serem facilmente formalizáveis, onde entram em jogo o faro e a intuição do pesquisador. Isto não significa que estamos lidando de forma irracional com os dados, mas validando uma forma de racionalidade arraigada na história humana, o modelo indiciário, embora pouco explicitado.

A Psicanálise, embora enredada no paradigma epistemológico indiciário e nascida da clínica de casos particulares, apresenta-se como um sistema conceitual de extremo rigor, no qual observamos um entrelaçamento entre as dimensões singulares, particulares e universais dos eventos analisados. Veremos que o conceito de inconsciente permite a Freud estabelecer tais entrelaçamentos, o que faz da psicanálise um grande instrumento teórico para a compreensão da realidade humana e do próprio homem neste momento de crise intelectual que nos coloca, por vezes, sem saída entre a razão plena da consciência e os irracionalismos.

Sem pretendermos adentrar na discussão da cientificidade da Psicanálise, ponto que será tratado adiante, o movimento de tornar explícita a vinculação da mesma ao paradigma indiciário prepara o terreno para abordarmos a racionalidade que lhe é própria. De fato, se o real humano é simbólico, o psicanalista, assim como o caçador com os rastros de sua presa, é levado a iniciar-se na arte de decifrar as metáforas veiculadas na linguagem do corpo e do psiquismo, assim como no mundo da cultura. Sabemos que Freud empenhou-se nesta jornada, elegendo os mitos, os sonhos, e as ocorrências aparentemente insignificantes do cotidiano, como expressão da linguagem inconsciente, manifestação simbólica humana, por excelência.

A metáfora é “o trânsito da imagem, a condição pela qual se pode representar outras coisas” (HERRMANN, 1994, p. 323). Sendo assim, podemos afirmar que a Psicanálise nutre- se de metáforas, como também do trabalho de desvendá-las e desmistificá-las. No dicionário Houaiss (2009), a palavra ‘metáfora’ aparece assim descrita:

Designação de um objeto ou qualidade mediante uma palavra que designa outro objeto ou qualidade que tem com o primeiro uma relação de semelhança. [...] Sentido etimológico: do latim metaphorae; do grego

methaphorá – mudança, transposição do sentido próprio ao figurado; do

verbo transportar (HOUAISS E VILLAR, 2009, p. 1017).

As metáforas nos transportam para o real humano, universo de representações que vão compondo um tecido simbólico por intermédio do qual a realidade passa a fazer sentido para o homem. A possibilidade de obter outros sentidos encontra-se no cerne da comunicação advinda do inconsciente, cuja linguagem metaforizada, revela-nos a riqueza infindável de possibilidades de representações de que o ser humano é capaz.

De posse destas considerações preliminares, vamos agora iniciar nosso trabalho de inventariar as imagens do corpo, disseminadas ao longo do percurso coberto pela modernidade. Sobre o tecido simbólico destas representações, reveladas por intermédio do olhar dos artistas, de saberes milenares como a fisiognomia e do saber da medicina, dentre outros, assentaremos nossa investigação, até chegarmos ao conhecimento psicanalítico. Estes olhares cruzados vão compondo fios que se entrelaçam formando um tapete, cujos limites vão demarcar os contornos do corpo na modernidade.

Nas palavras de Ginzburg :

O tapete é o paradigma que chamamos, a cada vez, conforme os contextos, de venatório, divinatório, indiciário ou semiótico. Trata-se, como é claro, de adjetivos não-sinônimos, que no entanto, remetem a um modelo epistemológico comum, articulado em disciplinas diferentes, muitas vezes ligadas entre si pelo empréstimo de métodos ou termos-chave. Ora, entre os séculos XVIII e XIX, com o aparecimento das

“ciências humanas”, a constelação das disciplinas indiciárias modifica-se

profundamente: aparecem novos astros destinados a um rápido crepúsculo, como a frenologia ou a um grande destino, como a paleontologia, mas sobretudo, pelo seu prestígio epistemológico e social, a medicina (GINZBURG, 1989, p. 170) .

Ao deslindarmos os fios de nosso tapete histórico, destaque especial será dado ao desenvolvimento da medicina moderna, solo de onde vai brotar o conhecimento inaugurado pela psicanálise.