• Nenhum resultado encontrado

Da histeria à depressão

5 O CORPO NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO: DO DESAMPARO À IDENTIDADE

5.3 Embates entre Eros versus Tânatos e o mal estar na cultura

5.4.1 Da histeria à depressão

O exame das publicações da Revista Brasileira de Psicanálise dos últimos dez anos nos revela a preocupação dos psicanalistas em situar a Psicanálise no contexto do debate sobre a problemática do sofrimento das subjetividades na atualidade.

Com efeito, uma parcela significativa destes artigos procura estabelecer relações entre o atual contexto sócio-histórico e as formas de sofrimentos predominantes na clínica atual. Afirmam os autores que a clínica psicanalítica depara-se hoje com um novo tipo de paciente, cujo sofrimento diferencia-se da neurótica freudiana clássica (Bastos, 2003; Rossi, 2001; Green, 2002; Lowenkron, 2003a; 2003b; Mota, 2004; Ferraz, 2007, dentre outros); o novo paciente é um ser em confusão, em crise de identidade e realidade (BARROS, 1999; AMARAL, 2001; HERRMANN, 2004).

Mota (2000) destaca que a moral burguesa e vitoriana, do século XIX, ocultava a sexualidade debaixo de muitas roupas. A questão da repressão da sexualidade colocava, neste contexto, o corpo como porta voz do mal estar das mulheres, que expressava, pelos sintomas da conversão, seus desejos reprimidos. O corpo histérico era a materialidade simbólica que traduzia, em suas metáforas, o que se passava no corpo erógeno e pulsional. Sendo assim, a histeria dominava o panorama do sofrimento na Viena de Freud.

O quadro histérico nos reporta à problemática neurótica, a qual coloca, em primeiro plano, no sujeito, as relações entre amor e sexualidade, em que a questão do desejo é essencial, assim como a escolha objetal e as identificações (GREEN, 2002).

Seja qual for a sintomatologia da histeria, ela continua ligada a um conflito fundamental entre o amor genital e a sexualidade e as interdições superegóicas que emergem da angústia de castração. Desta forma, a culpa neurótica está relacionada aos desejos interditos, eróticos e agressivos, à necessidade de lutar contra eles e mantê-los tão recalcados quanto possível (GREEN, 2002). Trata-se, pois, de um quadro conflitivo bem definido, no qual as fantasias inconscientes ocupam um papel de destaque e onde o sofrimento do sujeito expressava o antagonismo entre a livre expressão da sexualidade e a moral sexual da época.

Mais recentemente, contudo, a problemática neurótica clássica, a exemplo da histeria, vem cedendo lugar a outras formas clínicas, bem mais frequentes. Green (2002) defende a ideia segundo a qual estas novas formas clínicas são os ‘estados - limite’, os quais começam a aparecer por volta de meados dos anos de 1950. De acordo com este autor, foi preciso um certo tempo, até que esta nova entidade clínica fosse reconhecida pelo conjunto da comunidade psicanalítica.

Diante da multiplicação de casos deste tipo, hoje muito mais significativos que os quadros histéricos, Green suspeita de que os estados - limite desempenham hoje, na psicopatologia, o mesmo papel de destaque que a histeria ocupava na época de Freud.

Os estados - limite apresentam uma manifestação clínica bastante diversificada, cuja sintomatologia guarda semelhanças com a histeria, dada a centralidade do lugar do corpo em suas formas mais frequentes: doenças psicossomáticas, certas depressões, personalidades narcísicas e psicopatias.

Trata-se de patologias não neuróticas, isto é, carecem de organização neurótica. Em linhas gerais, Green (2002) assim descreve os aspectos gerais dos estados - limite: referem-se a pessoas cujas modalidades de conflito revelam uma grande destrutividade, em que o ego se apresenta muito frágil e ameaçado de despedaçamento e fragmentação.

São pacientes, de acordo com Green, que revelam uma confrontação brutal entre as expressões do id, as quais provocam descargas maciças (seja no corpo ou no ato, a exemplo das toxicomanias, bulimias, explosões de raiva, comportamentos suicidas, etc.) e defesas extremas, que assumem a forma de regressões maciças; apagamento do próprio pensamento e das representações, o que dificulta a simbolização e estruturação do conflito neurótico. Ou seja, haveria, nestes sujeitos, uma verdadeira carência representativa, em que a atividade simbólica é absorvida por movimentos pulsionais diretos, em curto-circuito, resultando em expulsões pelo ato ou em descargas no soma.

Os casos – limite também testemunham, de modo contundente, as carências objetais que os sujeitos possam ter sofrido, as quais sinalizam a existência de vínculos objetais precários. Sendo assim, o ego destes pacientes encontra grande dificuldade no exercício de suas funções de integração, elaboração e simbolização das experiências. A destrutividade, presente nestes casos, dificulta o trabalho de análise, pois o vínculo com o analista é atacado reiteradamente. Sentimentos de impotência, apatia e manifestações de depressão, intercaladas com extrema atividade e impulsividade, são também muito encontradas.

Green (2002) propõe que se considere o limite um conceito, que pode ser ilustrado pela imagem de um quiasma ou cruzamento de estruturas que não apresentam a estabilidade e a organização das estruturas neuróticas. A ideia de cruzamento leva este autor a compreender melhor os quadros clínicos da atualidade, em que a possibilidade de transformação de uma entidade em outra é sempre possível, o que faz com que as entidades nosográficas não sejam concebidas como categorias estanques, uma vez que o sujeito pode oscilar numa direção ou noutra.

Na esteira de Green (2002), um questionamento central e recorrente perpassa as publicações da Revista Brasileira de Psicanálise nesta primeira década do século XXI: estaríamos diante de novas modalidades de sofrimento existencial? As rápidas transformações do mundo, a aceleração tecnológica e a globalização estariam produzindo impactos consideráveis na experiência das subjetividades na atualidade?

Ao seguirem na direção de encaminhar possíveis respostas a estas indagações, autores como Mota (2000; 2004), Engel (2000), Amaral (2001), Rossi (2001), Costa (2003), Bastos (2003), Lowenkron (2003a;2003b), Herrmann(2001;2004). Goulart (2005), Guimarães (2005), Ferraz (2007), Corbella (2009), Franco Filho (2009), dentre outros, vêm propondo um debate amplo da psicanálise com a cultura e a sociedade, em um esforço coletivo de elucidação das formas de manifestação do sofrimento do sujeito na atualidade.

Procuraremos descrever as principais reflexões propostas por estes autores, para que possamos compreender o debate atual sobre o sofrimento das subjetividades e inserirmos neste, a problemática da depressão como sintoma emblemático da atualidade.

Uma descoberta surpreendente, revelada pela leitura do conjunto destes artigos, é a de que nestes, a Psicanálise é utilizada, não apenas como método clínico de análise de casos particulares, mas como método crítico de análise da cultura, oferecendo-se como instrumento valioso de elucidação das condições atuais de sofrimento do humano.

Ao visar estabelecer algumas diferenciações entre os sofrimentos típicos da época da Viena de Freud e a atualidade, Mota (2000; 2004) defende que a depressão se destaca como

mal neste final de século XX, assim como a histeria no final do século XIX. O novo homem estaria alienado e medicado; evita o contato com seus desejos de revolução e transformação; evita lidar com seu inconsciente e com suas próprias angústias.

Desta forma, as chamadas “patologias do vazio” (Mota, 2004), sinalizam novas exigências para o psicanalista, as quais são referenciadas dentro do quadro dos casos-limite, descritos por Green (2002). São os fronteiriços (ou bordelines, estruturas-limite, entre neurose, perversão e psicose), os pacientes típicos da atualidade.

As “clínicas do vazio”, como mencionadas por Mota (2004), são constituídas por pessoas cujos sintomas revelam um grande fragilidade egóica, que não conseguem lidar com perdas e frustrações. Se a falta gera o pensar, as fantasias e a simbolização, que fazem adiar a gratificação e entretém a espera do objeto, hoje, este novo paciente não pode esperar; não pode vivenciar a frustração. Para preencher o vazio dos objetos primários, nestes pacientes “fronteiriços”, instaura-se a turbulência, o tumulto emocional, a urgência da gratificação imediata, o que faz crescer a demanda por drogas lícitas e ilícitas.

Ao analisar as novas formas de experiência humana determinadas pela globalização, Rossi (2001) argumenta que o campo social e histórico funciona como uma matriz de produção de sofrimentos e sintomas. Este autor afirma que o capitalismo na atualidade oferece um variado leque de possibilidades para a realização da pulsão de morte, em detrimento da integridade do sujeito psíquico, como a competição contínua, o domínio de todos pelas regras imprevisíveis do mercado, a redução do sujeito a objeto de uso.

O impacto da globalização sobre as pessoas, tal qual apresentado por Rossi (2002), pode ser sintetizado em uma afirmação: menos família, menos tradição, maior fragilidade nos vínculos interpessoais, mais superficialidade, maior fragmentação. O descompasso entre o tempo enlouquecido da sociedade globalizada e acelerada e o tempo necessário para o ser humano integrar-se e constituir-se como sujeito viável, é desta forma ilustrado por Rossi:

O corpo do ser humano demora nove meses para nascer; sua alma, porém, necessita de muitos anos para ser construída. O que se espera de uma pessoa, atualmente, é que ela tenha uma alma gigante, independente e majestosa; acontece, porém, que o útero familiar, social e cultural que existe para gestá- la é cada vez menor. As emoções precisam de tempo para serem sentidas, de aconchego para se expressarem e para serem vividas, discriminadas e organizadas; necessitam de beleza, calma e ética para florescerem. O resultado de coisas atual é que almas em formação sobre as quais pesam

enormes expectativas, sendo gestadas em ‘úteros’ pequenos demais acabam

sendo abortadas ou tendo que nascer prematuramente, com poucas condições de enfrentar as exigências do meio ambiente (ROSSI, 2001, p. 662-663).

A psicanálise, ao trabalhar lentamente com os pacientes, respeitando o ritmo de gestação de si que cada um comporta, ajuda a promover o nascimento de pessoas sintonizadas com o próprio desejo e fortalecidas para o enfrentamento da realidade hostil. Desta ótica, ela ajuda a desmistificar a figura do super-herói frio e desalmado e a substitui pelo desvelamento da carência e fragilidade inerentes ao humano, o qual precisa das relações afetivas com os outros para sentir que vale a pena viver.

Amaral (2000), por sua vez, denuncia a regressão da razão ocidental pelos processos de massificação e predominância da racionalidade técnica sobre os processos de pensamento e reflexão. Algumas indagações importantes são realizadas por esta autora, para situar sua argumentação em torno do tema do mal-estar da psicanálise entrelaçado com a regressão da subjetividade contemporânea: quais os destinos do eu e da sexualidade na modernidade tardia? O que há de estranho e traumático no próprio mundo da cultura que estaria levando os sujeitos a um funcionamento- limite?

Para esta autora, habitamos uma sociedade que sofre do declínio da experiência, do empobrecimento da arte de narrar e da desrealização do real, processos que produzem juntos profundas alterações no sujeito psíquico, como a perda das mediações para lidar com a realidade e a emergência de patologias do eu promovidas por estes processos regressivos. Haveria, para Amaral, uma identificação dos sujeitos com o mundo administrado e com o real autoritário, o que torna as subjetividades cativas e submissas, ao mesmo tempo em que fragmenta-se a dimensão erótica do corpo psíquico.

O narcisismo se coloca à frente como defesa individual e coletiva contra o trauma (entendido por esta autora como o retorno do recalcado que emerge do campo social, coadunado com aquilo que não se representa e que permanece estranho), narcisismo este, resultante não de um ‘amor de si’, mas da ‘dor de si’, uma vez que o real absurdo promove uma intensa precariedade nos processos de subjetivação, ferindo na alma os sujeitos que se defendem, retirando-se do mundo dos objetos para o interior de si mesmos, quando buscam salvaguardarem-se em suas auto-imagens superinvestidas.

Ao basear-se na Teoria dos Campos, de Fábio Herrmann, para realizar a crítica da cultura, esta autora propõe que tal crítica é possibilitada pela colocação em ação do método psicanalítico. Desta perspectiva, ela retoma a noção de homem psicanalítico, como sequestro do real que constitui o desejo, o que permite que possa analisar a crise de realidade e identidade que atravessa o sujeito na atualidade. Sendo o real um análogo da dimensão

inconsciente do desejo, que incide sobre o campo das representações da realidade, a psicanálise pode operar a análise das ilusões e equívocos responsáveis pela crise da crença na realidade.

Em outras palavras, como dar sentido ao mundo que torna o homem sem sentido, uma vez que o regime da farsa encontra-se plenamente estabelecido e é vivenciado no cotidiano do estilo vazio da indústria cultural, fonte de um excesso de informações e imagens, que dificulta qualquer ancoragem no campo da experiência individual e coletiva? É por intermédio da crítica das aparências, movimento preconizado pela ruptura de campo, tal qual proposta por Herrmann (1991), que se torna possível o resgate do sentido da identidade e da realidade, de acordo com Amaral (2001).

Outras ideias que merecem destaque são a defesa da noção de corpo-sujeito, como contraponto ao corpo concebido como máquina, o qual se encontra na base do conhecimento biomédico (Bastos, 2003); a necessária consideração, por parte da psicanálise da noção de complexidade, a qual abarca a dimensão do acaso, da imprevisibilidade, da incerteza, os quais desalojam as pretensões humanas de domínio e de previsibilidade, arautos da modernidade (Bastos, 2001).

Lowenkron (2003a e 2003b) e Ferraz (2007), por sua vez, retomam a problemática das neuroses atuais, as quais ajudam a pensar os quadros psicossomáticos e a incidência do trauma e da pulsão de morte, características marcantes nos quadros psicopatológicos atuais.

Lowenkron (2003a) destaca que há um consenso entre os psicanalistas sobre a constatação de que há mudanças no perfil dos pacientes, no que tange à diminuição da frequência dos sintomas neuróticos típicos, especialmente a conversão histérica, e uma maior dificuldade de engajamento nas condições do processo analítico padrão.

Estaríamos mesmo diante de ‘novos sintomas ou de novas patologias’? (LOWENKRON, 2003a). O debate é assim colocado: alguns autores, como Roudinesco (2000), acreditam que não há uma verdadeira mudança nas estruturas clínicas, pois as diferenças observadas estão relacionadas às aparências das manifestações; em vez de novas patologias, seriam novos sintomas. Sob este prisma, as estruturas clínicas seriam as mesmas, mas exacerbadas pela vida moderna e marcadas por descrições subordinadas a paradigmas médicos.

Outros autores, como Kristeva (1995), estão convencidos de que estamos de fato diante de novas patologias, compreendidas como efeito de transformações socioeconômicas,

da revolução tecnológica, de mudanças em sistemas simbólicos, de crenças e das próprias relações humanas.

Defendemos, acompanhando a argumentação de Lowenkron (2003a), que as duas posições no debate não são antagônicas, mas complementares, uma vez que as características centrais observadas nos casos clínicos de hoje, aproximam-se das neuroses atuais, já descritas por Freud, a propósito das neuroses de guerra. Por sua vez, as transformações nos manuais diagnósticos dos distúrbios mentais (DSM), os quais são regidos por paradigmas biológicos, incidem nos diagnósticos de patologias diversas que são comumente classificadas como depressão (Roudinesco, 2000).

Contudo, apesar da evidente intensificação dos sintomas, como resposta à incidência de uma realidade hostil, estamos também diante de novas estruturas, os casos-limite, descritos por Green (2002), que são manifestações não neuróticas. Novos sintomas e novas patologias, ao lado das psiconeuroses clássicas, quadros clínicos que se assemelham às neuroses atuais são mais comuns hoje, de modo que assistimos a mutações importantes no corpo erógeno e pulsional.

No bojo deste cenário de escassez de recursos culturais eficientes para promover a simbolização, também nosso aparelho psíquico encontra-se afetado, revelando não tanto a repressão diante dos impulsos libidinais e agressivos (como nas neuroses clássicas), mas a incontinência da agressividade e a excessiva erotização nas relações humanas.

Lowenkron (2003a) enfatiza a importância de considerarmos os diferentes contextos históricos e a consideração dos efeitos da história social e cultural na produção dos quadros clínicos. O sujeito neurótico era fruto das condições de modernidade da época de Freud, um produto das formas de vida da burguesia urbana, emergente no cenário europeu.

Portanto, na clínica contemporânea, assistimos a uma crescente presença das neuroses atuais, em relação às neuroses sintomáticas ou psiconeuroses. À semelhança dos estados – limite, descritos por Green (2002), nas neuroses atuais observa-se carência de atividade criadora, a impossibilidade de efetuar a passagem da excitação sexual somática para o registro psíquico e a consequente colocação dos sintomas em ato no corpo e no mundo. A autora sintetiza com estas palavras o mal-estar dos sujeitos, na atualidade:

o sofrimento subjetivo se manifesta mais e mais sob a forma de sintomas narcísicos e depressivos em sujeitos que mostram dificuldades para articular numa narrativa suas próprias histórias, vivências e dores. Empobrecidos em suas atividades fantasmáticas, encontram-se às voltas com a ausência de sentido, o vazio da palavra, a solidão, a ameaça de aniquilamento e a perda de identidade (LOWENKRON, 2003a, p. 996).

Em síntese, o mal-estar assume hoje a forma de apatia, vazio interior, solidão e fracasso. Com isso, ganha relevo a figura clínica da depressão, assim como os sofrimentos vividos no corpo, como as somatizações graves as quais sinalizam um mal-estar que não é experimentado como culpa, mas como sofrimento no corpo.

Desta forma, entendemos que há, com efeito, uma ampla mutação no âmbito da psicossexualidade, na atualidade, uma vez que ela é parte dessa mudança social. Em linhas gerais, alguns traços desta mutação já podem ser notificados, tais como, o enfraquecimento da atuação do princípio do prazer, em favor da compulsão à repetição, como forma de lidar com a dimensão traumática do real, cada vez mais presente no cotidiano; o empobrecimento da vida de fantasia, e demais recursos psíquicos que possibilitam o fortalecimento das funções egóicas; a fragilidade de estabelecimento de vínculos afetivos nas relações interpessoais, pela recorrente desqualificação do objeto pelo sujeito aprisionado no narcisismo.

Vimos que para que o aparelho anímico se constitua e exerça suas funções de memória, desejo e representação, faz-se necessário um trabalho de ligação, de simbolização, trabalho de erotização pelo qual o ser humano é despertado pela ação de outro ser humano. A substituição do investimento libidinal no objeto por investimentos narcísicos promove a ação da pulsão de morte, a qual opera contra a atividade psíquica de representação e simbolização, essência de Eros. Neste contexto de mutações, a sexualidade, hoje, pode ser reduzida a uma espécie de excitabilidade carente de representação.

A clínica psicanalítica, hoje, parece estar funcionando como um segundo aparelho anímico, uma espécie de prótese que ajuda na recomposição do tecido psíquico esgarçado, operando como um trabalho de criação, de semeadura de representações sobre o vazio:

Parece ser essa a exigência de trabalho que a atualidade impõe à psicanálise, em decorrência de seu compromisso com o sujeito e com o mundo. Na condição atual de fragmentação, polimorfismo e vazio de sentido no mundo em que vivemos, a psicanálise é um saber com potência para sustentar o lugar da narrativa e o perpassamento do sujeito pelo valor da diferença, condição indispensável para a tessitura dos laços sociais: trabalho de representação, possibilidade de dar sentido ao mundo humano (LOWENKRON, 2003a, p. 1006).

Enfim, os autores mencionam que vivemos em um contexto social, no qual a cultura está falhando na oferta de ações específicas para que o sujeito enfrente o desamparo. Habitamos um mundo que gera turbulência e tensão, e não fornece elementos para que

possamos elaborar e transformar os conflitos. Por estas razões, vivenciamos hoje a cultura do desamparo.

No artigo “ausência de poder e desamparo”, Guimarães (2005) retoma o conceito de trauma, desde Freud até autores mais recentes, para com eles pensar as condições de vida na modernidade tardia. Segundo esta autora, nossa época atual encontra-se extremamente exposta ao traumático, de modo que o sentimento de desamparo pode estar sendo hoje o principal sofrimento dos sujeitos, experimentado como estado de angústia, sensação de desproteção, medo, descrédito e desesperança.

De fato, diferentes trabalhos vêm mostrando uma nova mutação na psicossexualidade como o declínio de Édipo sobre Narciso (GUIMARÃES, 2005; COSTA, 2003, AMARAL, 2001). Estes autores nos mostram que a cena edípica nos reporta ao enfrentamento da realidade da castração, experiência com o limite e a perda no âmago do sujeito e a decorrente angústia desencadeada por este enfretamento, assim como a dor e o luto pelo que se perdeu.