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O corpo: território de construção de identidades e disfarces

4 POR UMA CIENTIFICIDADE DA PSICANÁLISE: O CONHECIMENTO PSICANALÍTICO COMO CIÊNCIA E FICÇÃO

4.4 A Teoria dos Campos como aproximação ao método em Psicanálise.

4.4.3 O corpo: território de construção de identidades e disfarces

O eu enfeixa conjuntos de representações dominantes, cujo interesse exige que se desacreditem outros conjuntos superados, outros eus, para dizê-lo com simplicidade. Essas formações vencidas na luta pelo controle da

consciência não desaparecem, mas são relegadas ao inconsciente, ou melhor, formam inconscientes relativos a outras unidades potenciais do sujeito. [...] Trava-se, por conseguinte, uma autêntica guerra cultural no interior da personalidade (HERRMANN, 1999, p. 140).

Conforme o que é enfatizado pelo autor, à semelhança do modelo teórico da análise dos sonhos de Freud, em que estes são realizações disfarçadas de um desejo reprimido, também o eu é um disfarce, uma posição, resultado de uma luta, uma crise constante de representações, cada qual tentando afirmar-se na superfície da consciência.

A luta por representar-se em unidade leva o sujeito psíquico a falsificar as representações que entram em contradição com aquelas que legitimamente o representam. Por esta razão é que podemos compreender a importância do valor heurístico do estudo do disfarce, porque ele oferece a oportunidade de descobrirmos a origem da representação do eu, aquilo que o sujeito intenta ocultar: “O disfarce é uma atitude eminentemente social que regula ou desregula a relação com o outro e que depende de uma convenção socialmente compartida, para poder tornar-se efetiva” (HERRMANN, 1999, p. 146).

Trata-se de uma sociabilidade interior, que também é projetada, no exterior. O sujeito elege uma forma principal para ser a sua representação exterior, sua estampa, às custas de outras, que são sacrificadas. O indivíduo:

É também o autor da forma externa que o constrange, forma que nada mais é que uma primeira duplicação de si próprio. Em contato com a realidade, com sua face projetada no mundo, ele toma a forma humana consentida em sua cultura, como a casca de pão freudiana, porém segundo cada modelo cultural. [...] A realidade, o mundo externo, sendo produção humana nesse novo nível da humanidade, reflete a mesma forma que determina em cada sujeito ingressando numa cultura, com pequena margem de erro (HERRMANN, 1999, p. 101).

O campo psicanalítico é um dos destinos possíveis do campo da representação. Organiza a terapia analítica, como pode organizar também outras práticas derivadas do método da psicanálise, como a análise das imagens da cultura, metaforizadas no corpo.

Palavras, imagens, comunicações, constituem inconscientes relativos, que nos afetam rumo à busca da decifração – a dupla face da representação – o lado direito e o lado avesso, a verdade e a mentira, em cada produto da cultura, como uma porta de entrada para novas formas de representação do mundo e de nós mesmos.

O equívoco da linguagem constrói a realidade cotidiana. Não há sentidos únicos e inequívocos na comunicação; identidades são figuradas e desfiguradas a cada instante, fazendo do campo inconsciente pura virtualidade.

Aquilo que a interpretação revela é uma das linhas de significados, das muitas que se embaraçam e se enroscam dentro de determinado campo de observação do analista. Aquilo que desvela o sentido contido no avesso da comunicação é a ruptura de campo, efeito da interpretação:

a decifração de qualquer relação – individual ou coletiva, intrapessoal, interpessoal, uma obra cultural, um período histórico, - mostra os determinantes da consciência nela empenhada, ou seja, o seu inconsciente relativo, o inconsciente da relação. O ato que o faz surgir é a ruptura de campo (HERRMANN, 1999, p. 109).

O autor defende a ideia de que a interpretação psicanalítica é uma curiosa profissão de fé na presença de sentido em qualquer palavra, em qualquer comunicação e expressão humanas.

Sendo assim, podemos afirmar, baseados em Herrmann (1991; 1999), que a cultura é a representação do real, sistema de sentidos e significados historicamente construído; está dentro e fora dos sujeitos. O modo como o eu representa o mundo, a sua realidade, é também o modo como este representa a si mesmo, a sua identidade. Temos então que cada representação de realidade contém uma representação de identidade.

Nosso corpo é suporte das representações de si (identidade) e do mundo (realidade). Diante deste esclarecimento da dupla face da psique, que é tanto individual quanto social, podemos compreender melhor a relação entre corpo e cultura: nosso corpo é suporte da representação do real, que é a própria cultura; é metáfora da cultura, espaço de expressão dos sentidos múltiplos de identidade e de realidade.

A história do disfarçar-se é a própria história humana, que pode ser observada nos mitos, no folclore, nas histórias infantis, em que podemos encontrar os jogos de ocultamento e adivinhação da identidade, tendência geral a negaciar a própria forma e identidade.

Nosso corpo, suporte de inscrição do psíquico e do somático, é a expressão, por excelência de fantasias, máscaras e disfarces, de modo que na vida cotidiana o disfarce está em toda parte: nos símbolos de status, nas cerimônias, nos uniformes, na moda, nas artes, na propaganda publicitária, dentre outros.

Na atualidade, há um disfarce recorrente: o corpo sempre jovem, magro, saudável, e se possível, sempre melhor, de modo que o envelhecimento e a morte sejam sempre negaciados; um corpo que nega a sua história e a sua memória; um corpo à prova do tempo.

Outros disfarces insistentes: a farsa cínica que expressa a desorientação generalizada dos sujeitos em nossas sociedades ocidentais que sofrem da crise aguda de legitimação, contexto em que as normas e regras são constantemente transgredidas e desconsideradas; o corpo da depressão, doença da insuficiência identitária, a qual sinaliza o empobrecimento subjetivo e o vazio dos sujeitos em desacordo com o tempo acelerado do consumo e da tecnologia.

Estes são alguns dos campos de significação por meio dos quais iremos explorar as possibilidades do corpo como metáfora da cultura.

Vimos, com Herrmann, que a psique são os campos de significação do real que determinam o sujeito tanto de dentro, no âmbito da identidade, quanto de fora, na realidade, os quais conformam o Homem Psicanalítico, que é crise de realidade e identidade.

Esta configuração conflitual do Homem Psicanalítico pode ser melhor esclarecida quando nos aproximamos das teorizações sobre a vida social, em especial as que nos mostram que esta crise de realidade e identidade encontra-se na atualidade particularmente afetada, senão até mesmo exacerbada, por uma crise maior de legitimidade que assola as sociedades ocidentais (SAFATLE, 2008; SLOTERDIJK, 2011).

Em tal contexto, o jogo de máscaras e disfarces é levado ao extremo, ao ponto de Safatle (2008) utilizar a expressão ‘capitalismo carnavalesco’ para se referir ao universo sociocultural em que tudo se transforma em aparência, sem estofo substancial.

Em um capitalismo carnavalesco, convivemos a todo momento com a profanação do sério, de modo que a força ordenadora do modelo e da norma é desativada pela ironização generalizada das condutas. Trata-se, enfim, de um momento peculiar, em que a dimensão da vida como um todo passa a ser encenada, e como tal, a realidade passa a ser vista com descrédito e desconfiança. As imagens de si e do mundo perdem sua força legitimadora, ou seja, não são levadas à sério.

O “fazer fingindo” torna-se a estratégia de ironização encontrada pelos sujeitos para enfrentarem a intensa fragilização de papéis, vínculos sociais e modelos identificatórios, numa sociedade inundada por uma cultura fake:

A palavra fake, tal como nos esclarece Thomas Friedrich, reúne dois verbos latinos: facere e fingire, portanto, ‘fazer’ e ‘fingir’, mas também ‘fato’ e

‘ficção’. Noutras palavras, com a utilização desse termo procura-se nomear

um tipo de experiência social na qual se tornou impossível para a percepção humana distinguir entre realidade e ficção (LASTÓRIA, 2009, p. 281).

Nosso corpo, enquanto território de construção de identidades e disfarces, quando inserido no contexto de uma cultura fake, torna-se colonizado pelo design, ou seja, passa a ser projetado, programado e simulado em condições de perpétua inovação tecnológica, como é o caso das modificações corporais e cirurgias plásticas.

Enfim, em última instância, faz-se necessário aproximarmos a leitura do inconsciente, enquanto psique social de uma reflexão sobre a dinâmica conflitual, dos processos de socialização do desejo, no âmbito das atuais sociedades de consumo.

A possibilidade de des-velamento das aparências pela atuação do inconsciente como avesso da consciência é a essência do método tal qual preconizado por Herrmann; é esforço de busca de sentido, de esclarecimento do que se passa com a realidade e com a identidade. Esta busca, na atualidade, deve ser também balizada pela consideração da presença de uma nova economia libidinal ou nova economia psíquica, aspecto que será melhor esclarecido por Safatle (2008), Melman (2008) e Sloterdijk (2011).

A consideração da presença de uma nova economia libidinal nos permite compreender as novas mutações no campo da psicossexualidade, complementando as que já foram apontadas pelos autores da Revista Brasileira de Psicanálise. Com efeito, observa-se hoje a presença de modos de funcionamento psíquico em que não se verifica mais apenas os tradicionais mecanismos de repressão e negação, mas também uma espécie de fetichismo social (Safatle, 2008), em que a perversão da verdade e a transgressão das normas e valores são a tônica.

Neste novo contexto, de uma subjetividade pensada como jogo de máscaras, que luta por disfarçar, na superfície da consciência, os conteúdos ligados à repressão, dinâmica neurótica clássica, passamos hoje, em acréscimo, para uma posição subjetiva de aparências como aparências, no quadro de um superego vinculado ao prazer, e no qual os sujeitos são chamados, a todo momento, a assumir as suas fantasias à luz do dia, de preferência na arena do mercado, o que os aproximam mais de uma dinâmica perversa.

Sendo assim, e tendo em vista as contribuições de Fábio Herrmann sobre o método psicanalítico, referendadas nas noções sobre a relação psique – mundo, a teoria implícita do

real que concebe a realidade como construção subjetiva, o inconsciente como avesso da consciência, o Homem Psicanalítico, os campos inconscientes, o eu e a identidade, a cultura como palco de encenações e disfarces, enfim, a operacionalização e generalização do conceito de inconsciente, tal qual nos é apresentada pela Teoria dos Campos de Fábio Herrmann, tomaremos as imagens, figurações do corpo na cultura (não todas as imagens, o que seria tarefa impossível, posto que são inúmeras e mutantes, mas apenas alguns pontos nodais), como uma linha de superfície, que nos contam sobre a expressividade das subjetividades, e que são determinadas por campos inconscientes.

Como estamos lidando com pesquisa de natureza teórica e que como tal, utiliza-se de fontes bibliográficas, trata-se de recortes estudados por autores que trabalham com o corpo na cultura, tal qual apresentado pela História e pela Psicanálise. No entanto, Herrmann (1999) nos ensina que os próprios textos, a comunicação escrita, ao ser vista pelas lentes do método psicanalítico, pode mobilizar campos de significação, verdadeiros diálogos entre o material escrito e o pesquisador.

Com efeito, a exemplo do próprio Freud, autores como Green (1994), Herrmann (1999), Gomes (2000), Mezan (2002), Costa (2005), dentre outros, vêm utilizando-se da observação da sociedade, de obras literárias, instituições sociais, filmes, enfim, produções culturais diversas, como fontes peculiares de expressão do inconsciente.

Com base nestas considerações sobre o esclarecimento do uso do método psicanalítico, em contexto não somente terapêutico e clínico, tal qual proposto por Herrmann (1991, 1999, 2001, 2004), acrescido da contribuição de outros autores que nos ajudam a vislumbrarmos um possível diagnóstico da cultura atual, iremos analisar algumas das metáforas do corpo, que podem ser observadas na atualidade.

No entanto, ainda com o objetivo de esclarecer melhor as relações entre corpo e cultura, e antes de abordarmos as figurações do corpo na atualidade, faz-se necessário abordarmos o tema “corpo”, com destaque para a constituição do “eu” em Freud ou a gênese do corpo-sujeito.

Portanto, uma vez delineada nossa própria direção de pesquisa, norteada pela Teoria dos Campos, iremos retomar nossa investigação sobre a noção de corpo em Freud, agora no âmbito da segunda tópica, período compreendido entre 1905 e 1920, e na viragem dos anos vinte, quando da introdução da noção de “pulsão de morte”.

Ou seja, faz-se necessário, ainda, que possamos compreender melhor a noção de corpo “pulsional”, em seus embates entre Eros e Tânatos e como a cultura passa a fazer parte da constituição do sujeito, bem como elucidar, de forma mais ampliada, como a Psicanálise

freudiana concebe o que é cultura, pontos que serão abordados a seguir. O mal-estar na cultura também será abordado, sob o pano de fundo do capitalismo globalizado, quando buscaremos estabelecer uma atualização das relações entre clínica e cultura, por intermédio do diálogo entre a Revista Brasileira de Psicanálise e algumas das teorizações sobre a vida social.

5 O CORPO NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO: DO DESAMPARO À