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A morte anunciada e seus impactos na vida do cuidador

4) DISCUSSÃO: ampliando reflexões

4.1. A morte anunciada e seus impactos na vida do cuidador

Uma das principais questões a se destacar são os impactos e rupturas sofridos na vida da pessoa acometida por uma doença potencialmente fatal e, consequentemente, em sua família. E, dentro da família, um membro em especial sofre esses impactos: o cuidador principal.

Foi possível observar nos depoimentos dos colaboradores que todos tiveram suas vidas bastante modificadas no período em que cuidaram dos entes queridos, em seus processos de fim de vida e morte.

P1 relatou que passou a distribuir o tempo de seu dia entre os cuidados com sua mãe e seu trabalho. Já não havia mais tempo para sua casa, marido e filhos.

P2 disse que decidiu passar todos os fins de semana com o pai; dispensava até mesmo os enfermeiros e cuidava dele sozinho, para poderem estar mais tempo juntos. Sua esposa não aceitou a situação, o que culminou na separação do casal.

P3 afirmou que abandonou tudo, até mesmo a empresa da qual é o dono, para poder cuidar e estar ao lado da esposa em tempo integral.

P4 relatou ter “jogado tudo para o alto”; o trabalho, a casa, amigos, sua própria saúde ficaram negligenciados neste período, pois P4 dormiu praticamente todas as noites no hospital junto da esposa.

P5 decidiu sair do emprego para se dedicar aos cuidados com a tia, não saía mais de casa, nem dispensava atenção ao namorado quando ele a visitava, pois passou a estar totalmente voltada aos cuidados com a tia, estava sempre atenta, até mesmo de madrugada.

P6 teve duas filhas após seu filho R., mas conta que não participou do crescimento e educação das filhas. Sua mãe e seu marido foram quem cuidaram delas. Porém, não percebeu na época o quanto estava negligenciando a relação com as filhas para cuidar de seu filho acometido por doença. Apenas percebeu quando elas já estavam mais velhas; foi quando entendeu porque a relação com elas se tornou tão ruim.

Na presente pesquisa, os colaboradores foram as principais pessoas a assumir as responsabilidades pelo ente querido durante todo o processo. Assim, relataram também sobrecarga, desgaste e até mesmo esgotamento; alguns explicitaram que chegaram próximo a seus limites físico-emocionais. O que trouxe maior desgaste foi a necessidade de muitos cuidados de modo prolongado, em conjunto com a situação de ser o expectador principal do sofrimento do ente querido, além de ter que lidar com a iminência da morte dele e com sua própria dor.

P1 e P4 contaram que apenas após o falecimento de seus entes queridos é que puderam perceber o quanto estavam desgastados e esgotados, pois em meio à situação não havia tempo para se olhar ou se cuidar.

Muitas foram as dificuldades enfrentadas pelos cuidadores em todo o processo de cuidar de seus entes queridos. Uma das mais significativas é que o cuidador defrontou-se com um paradoxo: melhorar a expectativa e qualidade de vida de seu ente querido e, ao mesmo tempo, aceitar e se posicionar diante da iminência de sua morte.

Pode-se afirmar que o sofrimento que abarcou a vivência de cuidar de seus entes queridos em processo de fim de vida colocou os cuidadores em contato com as impotências,

com as muitas limitações e com a decadência corporal, expondo-os à perspectiva da efemeridade e finitude das coisas.

Nesse sentido, P5 relatou que uma das maiores dores ao cuidar de sua tia foi a lembrança constante de não ter mais esperança de cura. Por isso não se apegava mais a essa possibilidade, mas em fazê-la se sentir bem a todo custo. Porém, quando se lembrava da iminência da morte, vivia momentos de muito medo e até de desespero.

Levando em consideração esse temor da morte, outra dificuldade pairava no ar, e por esta não ter sido relatada em nenhum momento pelos participantes, é que acredito que precisa ser problematizada. A comunicação sobre o medo da morte, sobre a despedida dessa vida, entre a pessoa acometida e o familiar cuidador, não apareceu nas entrevistas. Assim, foi possível perceber que o tema da morte era bastante difícil de ser tocado entre eles.

Os cuidadores conversaram com outras pessoas: P1 conversava com o marido; P2 com os filhos; P3 também com os filhos; P4 com os irmãos da igreja; P5 com o namorado; P6 com alguns profissionais de saúde. Porém, não conversavam com o ente querido enfermo.

Não é possível saber como se sentiram as pessoas doentes, pois não tive acesso à experiência delas relatadas por elas mesmas. Talvez sentiram medo, solidão, ou mesmo pavor, diante da proximidade de sua própria morte. No livro A morte de Ivan Ilitch, Tolstói (1886/2006) narra a vivência de fim de vida de um homem de meia idade, sob o ponto de vista deste homem, que se descobre com uma doença potencialmente fatal, que passa a evoluir, e a cada dia mais aproximá-lo da morte. E uma dentre as inúmeras facetas que se pode destacar desta narrativa é o fato de nenhum dos familiares, pessoas próximas e profissionais de saúde – com exceção apenas de um de seus empregados – conversarem com o protagonista sobre a iminência de sua morte, mas pelo contrário, o tentam animar e fugir deste tema a todo custo. O que gera em Ivan Ilitch “um profundo sentimento de solidão” (p.69)

neste momento em que refere estar vivenciando um “sentimento de horror” (p.68) perante as dores constantes e sua morte iminente.

É importante perceber que uma das maiores dificuldades pelas quais passam os cuidadores é no que diz respeito à comunicação sobre a temática da morte com seus entes queridos. Assim, um dos aspectos fundamentais a serem abordados nos cuidados com a pessoa acometida e, juntamente, com seu cuidador é a comunicação. É preciso que os profissionais de saúde auxiliem na facilitação dessa comunicação.

Corroborando com o que se delineou na presente pesquisa, há outros estudos que também discorrem a respeito dos impactos e muitas mudanças vividos pelos cuidadores familiares. Alguns deles são: Hebert et al., 2009; Blum e Sherman, 2010; Garcés et al., 2010; Losada et al., 2010; Nunes, 2010; Manne et al., 2010; Paula, 2010; Rosa et al., 2010; Sousa e Carpigiani, 2010; Ambrósio e Santos, 2011; Ducharme et al., 2011; Fratezi e Gutierrez, 2011; McCarthy, 2011; Ferrell e Baird, 2012; Given et al., 2012; Jayani e Hurria, 2012; Northouse et al., 2012; Truzzi et al., 2012; Waldrop et al., 2012; Wittenberg-Lyles et al., 2012; Bastawrous, 2013; Queiroz et al., 2013. Os impactos encontrados nessas pesquisas vão no mesmo sentido que os aqui descritos: sensação de sobrecarga imposta pela situação; cansaço e esgotamento; isolamento social; conflitos familiares; sentimentos de tristeza, medo, culpa, impotência, insatisfação com a vida, entre outros, que vêm em turbilhão e oscilam; baixa na resistência orgânica; distúrbios do sono e da alimentação.

Guimarães (2010) entrevistou 10 pessoas em sua pesquisa realizada com cuidadores familiares de pacientes oncológicos. Verificou que a instalação da doença potencialmente fatal gerou muitos transtornos tanto para a pessoa enferma quanto para o cuidador, pois a função de cuidar trouxe rupturas, estresse e grande sobrecarga, interferindo diretamente na vida do cuidador e, consequentemente, no ato de cuidar.

Na pesquisa realizada por Hudson et al. (2012), a doença e os cuidados prolongados também modificaram a rotina de vida da pessoa com a doença e do familiar cuidador de modo significativo. Além disso, foi observado neste estudo que geralmente é apenas uma pessoa que assume as maiores responsabilidades pelo ente querido, havendo um grande desgaste físico- emocional para este principal responsável.

Guedes e Pereira (2013) perceberam, em seu estudo com cuidadores familiares, que quando a escolha do familiar para cuidar de alguém no final da vida está baseada apenas no sentimento de obrigação moral, torna-se necessário um esforço ainda maior para lidar com a situação e ressignificar questões relativas à própria finitude.

Esse fato não ocorreu com nenhum dos participantes desta pesquisa, que relataram terem decidido, por uma questão de maior proximidade afetiva, estarem ao lado da pessoa amada nos meses e momentos finais de sua vida, cuidando da melhor forma possível, numa busca incansável pela amenização de sua dor. Assim, puderam relatar algumas formas de ganhos que tiveram durante suas intensas vivências; uma delas foi a satisfação em perceber, sentir que tinham, em certas ocasiões, conseguido fazer seu ente querido enfermo se sentir melhor de alguma maneira.

Outra ganho foi perceber que o tempo em que passaram juntos os aproximou, de tal forma que em alguns momentos pareciam ser uma só pessoa. A maioria referiu que a morte foi levando a pessoa amada gradativamente, mas foi também levando uma parte do cuidador, que vivenciou a sensação de também ir morrendo aos poucos. Nesse sentido, disseram sentir o que o familiar sentia, suas dores e sofrimentos. P3 relatou: “eu sentia em mim tudo aquilo ali que ela sentia”. P6 disse: “eu olhava pra ele e eu sabia o que tava acontecendo com ele, eu sentia o que ele sentia”.

Os estudos de Koerner et al. (2009); Fratezi e Gutierrez (2011); Ferrell e Baird (2012) e de Stajduhar et al. (2013) também referem-se a certos ganhos percebidos e relatados pelos

cuidadores em suas vivências de cuidar de um ente querido em processo de fim de vida, que aparecem juntamente com as dificuldades do cuidar. São eles: o sentimento de satisfação em cuidar e ajudar a pessoa acometida a se sentir melhor; e as ressignificações em relação à finitude, que propiciam novas formas de perceber a vida e de viver.

Em meio a tantas dificuldades enfrentadas, é importante dar ênfase ao fato de que o familiar cuidador passa por uma vivência intensa de sofrimento ao cuidar e acompanhar o fim da vida e morte de seu ente querido com doença em estágio avançado. Tendo sua vida completamente modificada quando passa a ser um dos protagonistas dessa vivência. Assim, muito do que já estava estruturado, construído; como crenças, ideias, objetivos, entre outros, é desconstruído, desfeito, desorganizado.

Portanto, é preciso enfatizar a importância desse cuidador principal fazer parte dos cuidados oferecidos à pessoa com a doença. Pois, ambos estão com a doença. E as desconstruções são imensas na vida de ambos. As pesquisas citadas a seguir também apontam para a necessidade do cuidador ser percebido como parte do núcleo ‘pessoa com a doença- familiar cuidador-profissional/equipe de saúde’. Um núcleo em que todos precisam ser vistos com atenção e precisam ser cuidados. São elas: Hebert et al., 2009; Blum e Sherman, 2010; Garcés et al., 2010; Guimarães, 2010; Losada et al., 2010; Nunes, 2010; Manne et al., 2010; Paula, 2010; Rosa et al., 2010; Sousa e Carpigiani, 2010; Ambrósio e Santos, 2011; Ducharme et al., 2011; Fratezi e Gutierrez, 2011; McCarthy, 2011; Ferrell e Baird, 2012; Given et al., 2012; Hudson et al., 2012; Jayani e Hurria, 2012; Northouse et al., 2012; Truzzi et al., 2012; Waldrop et al., 2012; Wittenberg-Lyles et al., 2012; Bastawrous, 2013; Guedes e Pereira, 2013; Queiroz et al., 2013.

Entretanto, todos os colaboradores relataram não terem sido acompanhados/cuidados de modo concreto. Alguns foram bem atendidos e bem informados, mas não cuidados. Alguns foram totalmente negligenciados. E houve aqueles ainda que foram tratados de forma

desumanizada. Para nenhum dos cuidadores houve espaço de escuta e/ou acolhimento. Ao longo dos relatos, foi possível perceber a necessidade de cuidado; uns precisaram mais, outros menos, mas todos seriam beneficiados se tivessem espaços em que pudessem expor, refletir e ressignificar as idiossincrasias da intensa vivência pela qual estavam passando.

Mesmo em relação aos entes queridos, houve poucos cuidados que não estivessem apenas ligados à farmacologia/tecnicismo3. O foco dos tratamentos era na cura da doença e

não na pessoa com a doença. Apenas P1 pagou um psicólogo particular para acompanhar sua mãe no início da doença, porém não houve continuidade devido a dificuldades financeiras. P1 referiu que o acompanhamento por esse profissional foi essencial para que sua mãe pudesse ter mais recursos para lidar com a situação que estava vivenciando.

Na verdade, a maior parte dos cuidados médicos atualmente centra-se em procedimentos farmacológicos e técnicos. A pesquisa de Lindqvist et al. (2012) expõe essa realidade em âmbito mundial. O estudo colheu dados em diversos países para, ao final, chegar à conclusão que ainda há pouco conhecimento sistematizado sobre cuidados não- farmacológicos dirigidos aos pacientes em seus últimos dias de vida. Apontam para uma tendência na sociedade atual de atribuir um status mais elevado a tratamentos farmacológicos/tecnicizados, em detrimento de cuidados que não seguem a linha do tecnicismo, tais como o fornecimento de informações, aconselhamento, presença ou contato corporal, rituais que dizem respeito à morte e ao morrer, incluindo as questões espirituais, religiosas e existenciais, e procedimentos legais.

3Apresento alguns significados de palavras que merecem destaque neste eixo temático:

Técnico – 1) Adjetivo: próprio das aplicações práticas de uma ciência; relativo ao funcionamento de dispositivos mecânicos ou automáticos; que exige formação especializada. 2) Substantivo masculino: indivíduo versado numa técnica; perito; especialista.

Tecnicizado/a – 1) Verbo transitivo: tornar técnico.

Tecnicismo – 1) Substantivo masculino: valorização excessiva dos recursos tecnológicos ou da atuação dos técnicos. (Holanda Ferreira, 2013)

Assim, cuidados não-farmacológicos/não-tecnicizados têm pouco espaço no cotidiano da saúde nos dias atuais. Portanto, nesse contexto, quando uma “doença não tem mais cura”, parece não “haver mais nada a fazer”. Essa ideia paira na sociedade e também em meio a muitos profissionais de saúde.

A Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP, 2012) aponta que há ainda muito desconhecimento e preconceito dos próprios profissionais de saúde com formas de cuidados como os Cuidados Paliativos. Há uma dominação da significação da morte interdita/invertida na sociedade ocidental contemporânea trazendo a ideia da morte que precisa ser vencida a qualquer custo e, portanto, não há tempo a perder com procedimentos não-técnicos que “efetivamente” não combatam a morte.

É possível notar que cuidados não-tecnicizados têm tido maior espaço em programas de Cuidados Paliativos. A base dos Cuidados Paliativos está no conforto e na dignidade que a pessoa pode ter no final da vida; não sendo cuidados de segunda classe, mas tendo como característica sua alta especificidade, demandando uma abordagem com equipe multidisciplinar de profissionais. Nessa forma de cuidado, a atenção à família e aos amigos ocupa lugar fundamental; criando espaços favorecedores de comunicação e preparação para a separação, sem deixar de considerar a vida, após a morte do ente querido, para aqueles que sobreviverão (Academia Nacional de Cuidados Paliativos [ANCP], 2012).

Estudos têm demonstrado que cuidados abarcados em programas de Cuidados Paliativos têm se destacado no auxílio à pacientes e familiares cuidadores. Alguns deles são: Caress et al., 2009; Mystakidou et al., 2009; Guimarães, 2010; Nunes, 2010; Oliveira et al., 2010; Sousa e Carpigiani, 2010; Fratezi e Gutierrez, 2011; Hudson et al., 2011; Luijkx, e Schols, 2011; Schaepe, 2011; Aoun et al., 2012; Ferrell e Baird, 2012; Gauthier e Gagliese, 2012; Hudson et al., 2012; Rodrigues e Zago, 2012; Wittenberg-Lyles et al., 2012; Gallagher e Krawczyk, 2013; O'Callaghan et al., 2013.

Dessa maneira, é importante destacar que a vivência do cuidador de um ente querido com doença em estágio avançado é uma vivência de sofrimento, que abarca fortes impactos e rupturas, por isso a necessidade dos cuidados a esse cuidador. Cuidados que podem amenizar e ajudar a lidar com as pressões da situação e os sentimentos vivenciados pelo cuidador.

É importante enfatizar que os cuidados aos familiares é parte integrante dos princípios que regem os Cuidados Paliativos (Instituto Nacional de Câncer [INCA], 2012), e estes cuidados têm tido grande relevância no sentido de auxiliar os familiares em sua jornada no acompanhar seus entes queridos no fim de suas vidas. Entretanto, tais cuidados podem/precisam advir de redes formais (equipe de profissionais de saúde), e também de redes informais (comunidade/pessoas próximas) de apoio.