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2) MÉTODO

2.2. Percorrendo os caminhos da pesquisa

2.2.5. O método de Amedeo Giorgi

A compreensão dos conteúdos obtidos através do contato e entrevistas com os colaboradores fundamenta-se no método desenvolvido por Amedeo Giorgi, descrito no livro Método fenomenológico de investigação em psicologia, escrito por Amedeo Giorgi e Daniel Sousa, publicado em 2010.

Giorgi e Sousa (2010, p.85) propõem os seguintes momentos/passos metodológicos para uma compreensão dos depoimentos:

1) Estabelecer o sentido do todo

2) Determinação das partes: divisão das unidades de significado

3) Transformação das unidades de significado em expressões de caráter psicológico

4) Determinação da estrutura geral de significados psicológicos

A seguir me aprofundarei em cada um dos passos, ilustrando-os através de trechos das entrevistas que os podem exemplificar.

Passo 1 – Estabelecer o sentido do todo

Nesse primeiro momento o objetivo é apreender o sentido geral da experiência relatada pelo participante. Para tanto o pesquisador lê e relê cada entrevista, quantas vezes forem necessárias, colocando-se na atitude da redução fenomenológica-psicológica, porém sem ainda se concentrar em partes específicas dos relatos, sem levantar hipóteses ou destacar comentários. Para assim obter o “sentido da experiência na sua globalidade” (p.86).

Assim, após transcrever as entrevistas na íntegra empreguei os passos 1, 2 e 3 sequencialmente a cada uma delas.

Nesse passo 1 escutei novamente a gravação, li e reli algumas vezes a transcrição, procurando me sentir próxima da vivência do familiar, ao mesmo tempo em que me esforçava para pôr ao lado meus conhecimentos, pré-conceitos e pré-análises, para chegar a uma compreensão empática, intuitiva e global de sua vivência relacionada ao processo de cuidados e perda de seu ente querido.

Passo 2 – Determinação das partes: divisão das unidades de significado

Nesse momento o pesquisador retorna ao texto e, mantendo a atitude da redução fenomenológica-psicológica, busca captar os momentos de transição/mudança de significado de cada situação, dividindo então o depoimento em unidades menores, passíveis de serem trabalhadas, que são denominadas unidades de significado. Tais unidades existem apenas em relação à perspectiva adotada por quem as analisa. Essas são constitutivas do todo e não apenas elementos isolados. Assim, ao final dessa etapa obtemos uma série de unidades de significado, ainda expressas na linguagem cotidiana dos participantes.

Nesse segundo passo li lenta e atentamente a entrevista, detendo-me em partes do relato que pudessem conter os elementos mais significativos em relação à vivência de

cuidados e à perda do colaborador. Então os assinalava com três barras. Abaixo destaco um pequeno trecho da entrevista de P1 a fim de exemplificar:

E: Como foi pra você ter acompanhado, ter cuidado da sua mãe em todo esse processo da doença, até sua morte? E como você sentiu, viveu a perda dela?

P1: A perda da minha mãe foi triste, sofrida e dolorida. /// A minha consciência é de que não somos eternos. Só que nos últimos tempos a doença, do jeito que foi evoluindo, judiou, maltratou muito ela... Tanto ela, como a gente, que convivia do lado dela. /// Ela teve um câncer em 2004, ela fez uma cirurgia em dezembro de 2004, fez um quadrante no seio, fez um ano de quimioterapia, radioterapia e estabilizou. Em 2005 tivemos a perda da mãe dela, de câncer, assim, em um prazo de só dois meses. Foi um baque. Ela caiu no banheiro, levaram para o hospital, ela estava com câncer no cérebro, descobriram na hora que fizeram a tomografia para ver o que é que tinha acontecido, e em dois meses ela se foi... /// Aliás, minha avó foi em março, mãe da minha mãe. Em janeiro, já tinha falecido um tio nosso, de câncer também, irmão da minha avó. Aí essa história de câncer aqui, pra nós, ficou pungente, porque eles, meus avós, vieram da Y [país de origem]. Até então a gente não sabia de nenhum caso de câncer na família. Começou com a minha mãe, depois o meu tio faleceu e depois minha avó faleceu. /// Minha mãe continuou o tratamento. Ela veio morar para cá, porque em L., onde foi a última cidade que ela morou, eles foram assaltados, e foram judiados. Bateram muito nela e no meu pai. E como eles estavam lá sozinhos, nós decidimos trazê-los para cá. É apenas eu e minha irmã. Nós duas somos casadas. Trazendo eles para cá é que se descobriu o câncer da minha mãe. Então já vinha o processo dolorido do que aconteceu em L., do assalto. Depois a descoberta do câncer... /// Bom, conseguimos uma casa para ela morar e tivemos que pôr no nome do meu marido e no meu nome porque meu pai tinha feito uma sociedade com um primo que deu tudo errado e o banco estava atrás dele e o meu primo fugiu. Então isso já causou, assim, muita depressão, tanto no meu pai como na minha mãe... teve também o assalto, depois a notícia do câncer, e mais essas perdas... /// Passou 2005, 2006, em 2007 foi meu pai que faleceu.

Passo 3 – Transformação das unidades de significado em expressões de caráter psicológico

Nesse momento o pesquisador busca, com o auxílio da redução fenomenológica- psicológica e da redução eidética (variação livre imaginativa), por transformar as unidades de significado que estavam em uma linguagem cotidiana em expressões de caráter psicológico.

Transformar as expressões do colaborador não significa dizer através de outras palavras o que esse relatou, mas implica retirar os aspectos contingentes e particulares que não são essenciais para poder desvelar os significados relativos ao fenômeno estudado em questão, que estão implícitos nos depoimentos.

Dado que o objetivo do estudo fenomenológico em psicologia é alcançar sínteses de significado psicológico de um fenômeno; e que os relatos dos colaboradores surgem em linguagem individual, que dizem da vida pessoal de cada indivíduo, é preciso desvelar e explicitar descritivamente os significados que se apresentam. Porém, agora, relacionados ao foco do estudo, em busca de uma estrutura geral do fenômeno, que possa ser partilhada intersubjetivamente.

Giorgi e Sousa (2010) assinalam que o passo 3 é o mais importante do método, pois “irá descrever as intenções psicológicas que estão contidas em cada unidade de significado” (p.88), sendo, portanto, uma etapa bastante exigente para o pesquisador, que tem a tarefa de refletir, intuir, desvelar e descrever os significados psicológicos essenciais.

Nesse passo organizei e redigi as unidades de significado em uma tabela e, então, em um esforço reflexivo, intuitivo, buscando a ajuda da redução fenomenológica e da variação livre imaginativa, na busca pelos sentidos essenciais, passei a transformar cada uma das unidades em expressões psicológicas, que fui descrevendo na coluna ao lado. Abaixo apresento dois exemplos, destacados das entrevistas de P2 e P3, respectivamente:

O que eu fiz? Pra não trazer uma cadeira de rodas tradicional para ele andar, eu providenciei uma cadeira de madeira com estofado, mas que na perna dessa cadeira tinha uma rodinha. Era uma cadeira de estofado, uma cadeira quase comum, mas de madeira, um pouquinho maior, com estofado no assento e no encosto e com rodinha nas pernas. Quando ele não estava conseguindo mais andar de andador, aí passou a usar aquela cadeira. E assim que ele começou a usar essa cadeira, eu já trouxe a tradicional e deixei lá. Não insisti para ele usar, mas deixei lá para a hora que precisasse... [se emociona]

P2 procurava a todo momento formas/estratégias do pai ir assimilando as perdas, as limitações que a doença estavam a lhe impor, e a proximidade da morte, de forma mais gradual possível, na tentativa de amenizar sua dor.

Eu jamais cometeria suicídio, mas eu fico pensando: “pra que vale isso aqui, essa vida?”. Foi muito difícil, viu? Logo depois do falecimento eu fiquei dormindo uns 15 dias aqui no sofá, eu não queria nem ir pro quarto... [silêncio]

P3 relata que com a dor e a sensação de falta que a morte da esposa lhe trouxe, a vida perdeu o sentido.

Passo 4 – Determinação da estrutura geral de significados psicológicos

Nesse último passo do método o pesquisador, sempre mantendo a redução fenomenológica-psicológica e empregando a redução eidética (variação livre imaginativa), busca transformar as unidades de significado, que já estão em linguagem psicológica, em uma síntese dos significados psicológicos, explicitando-a em uma estrutura descritiva geral do fenômeno em estudo.

A estrutura geral contém os sentidos mais invariantes que pertencem às unidades de significado dos relatos de todos os participantes, ou seja, são conteúdos psicológicos essenciais que são transversais a todos os colaboradores da pesquisa. Esses invariantes são denominados constituintes essenciais, e são interdependentes entre si. Giorgi em entrevista concedida à Applebaum (2012) aponta que a principal diferença de uma análise fenomenológica, que chega a constituintes essenciais, de uma análise qualitativa temática é a interdependência entre os eixos temáticos, necessariamente existente na análise fenomenológica. Assim, as constituintes essenciais representam momentos de um mesmo fenômeno que não se podem separar.

Dessa forma, o quarto passo tem como objetivo transmitir o que é verdadeiramente essencial do fenômeno em questão através da descrição da estrutura final.

A estrutura final tem um caráter de generalização, porém não de universalização, ou seja, pode ser observada em realidades similares, pois não é determinada por contingências e particularidades, mas precisa ser contextualizada.

É importante ressaltar que a estrutura geral final não quer dizer uma estrutura conclusiva e fechada do fenômeno em questão, pois nenhuma pesquisa produz conhecimento absoluto, ou mesmo completamente verdadeiro, pois a essência do que se procura nas manifestações do fenômeno nunca é totalmente apreendida, mas a trajetória da procura possibilita compreensões. A esse respeito Critelli (1996) aponta que há um limite em que o interrogador e o que ele busca compreender pode aparecer. “Um limite imposto pela própria perspectivação do olhar, pela ambiguidade da manifestação e pela relatividade da verdade” (p.136). Assim, “tudo o que se sabe e o que se vem a saber inclui o que não se sabe e não se vem a saber” (p.136). Nesse sentido, as falas dos participantes são falas que, como tudo o que é, mostram e escondem. Dessa forma, os fenômenos humanos “são véus, são cortinados que precisam, duplamente: ser identificados no que mostram e reconhecidos em seus limites de se mostrar como são” (p.137).

Certamente que esse mostrar e esconder dos fenômenos não retira a legitimidade e/ou benefícios que uma pesquisa pode gerar. Giorgi e Sousa (2010) referem que:

O conhecimento resultante de investigações fenomenológicas pode ser considerado geral (eidético), mas não universal, plausível e coerente, mas não apodítico. As generalidades, estruturas de significado psicológico sobre determinado fenômeno, carecem de verificação posterior, tanto ao nível de realização de outras investigações, bem como da sua aplicabilidade na práxis psicológica. Não obstante, sua utilidade é inquestionável. (p.130)

Merleau-Ponty (1948/2002) afirma que:

Não podemos gabar-nos, na ciência, de chegar, pelo exercício de uma inteligência pura e não situada, a um objeto puro de todo traço humano, tal como Deus o veria. Isto nada tira a necessidade da investigação científica; apenas combate o dogmatismo de uma ciência que se tomaria por saber absoluto e total. (pp. 24, 25) Acredito ser importante escrever sobre essa questão antes de apresentar os conteúdos aos quais cheguei. Pois, em meio ao rigor e busca pelo ideal das estruturas essenciais em todo

o processo da pesquisa, – que pode ser observado especialmente no manejo que tive com os dados e nas várias tabelas que criei seguindo o método de Giorgi – mantive sempre em mente o fato de que as vivências humanas ao mesmo tempo que se mostram, também se escondem, exigindo flexibilidade e abertura; estão sempre vindo-a-ser, sempre em movimento e, portanto, conclusões rígidas e fechadas são difíceis de lhes caber.

Além disso, os fenômenos humanos precisam ser sempre situados. Dessa maneira, os conteúdos encontrados ao final de uma pesquisa fenomenológica têm validade intersubjetiva, mas estão sempre dependentes de serem situados, representando generalidades, porém não universalidades, ou seja, não há a possibilidade de serem facilmente retirados de um contexto e aplicados a outro completamente diferente.

Dessa forma, minha busca na presente pesquisa é despertar reflexões e chegar a compreensões significativas a respeito da vivência do familiar cuidador que acompanhou seu ente querido em seu processo de fim de vida e morte, porém, sem o intuito de esgotar as problemáticas possíveis.

A seguir, no item Compreensão das entrevistas, apresento o processo todo, passando por cada um dos passos e desembocando na estrutura final. Por se tratar de material muito extenso, as entrevistas transcritas na íntegra e os passos 2 e 3 se encontram nos anexos em CD (anexos 8.1 e 8.2).