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4) DISCUSSÃO: ampliando reflexões

4.4. Lidando com a própria finitude

O contato com a angústia, que a morte do ente querido propicia, levou os participantes desta pesquisa a ressignificações importantes. A vida, a morte, o pós-morte, passaram a ser percebidos de modos diferentes após as intensas vivências que os familiares cuidadores trouxeram em seus relatos.

Em relação a essas ressignificações, é importante apontar o papel da própria pessoa no que concerne a poder se olhar, se perceber em meio à situação tão complexa e sofrida; podendo acolher sua angústia e, enfim, crescer, de alguma maneira, com ela e por meio dela.

Discorri até este ponto mais sobre os cuidados prestados por outros ao familiar cuidador, mas é importante que ele próprio possa se ver em todo esse processo. Se perceber enquanto ser que sofre, se angustia perante a dor e, especialmente, perante a morte. E que possa cuidar de si.

Os conceitos de angústia e de morte ocupam um papel muito importante na proposta de Heidegger, em sua obra Ser e Tempo (1927/2006), apresentando a questão do esquecimento do Ser. Heidegger constrói uma densa explanação nesta célebre obra acerca do ser-para-a-morte, ou seja, sobre a consciência da nossa própria finitude. Sei que seus conceitos e ideias são complexos, porém acredito que a presente pesquisa, em especial este eixo temático, tem significativa relação com o pensamento deste importante filósofo, por isso me arriscarei a contemplá-las resumidamente neste trecho.

É possível apontar que a questão de nossa própria finitude e da finitude daqueles que amamos é complexa e difícil de ser refletida. Porém, não levar em consideração a angústia

diante da condição humana de incompletude e de finitude, é estacionar em um modo de existir impróprio, inautêntico, como afirma Heidegger, pois é o ser-para-a-morte, ou seja, a consciência da nossa própria finitude, que nos lança de novo numa existência autêntica, por isso a importância de nos percebermos como um ser-para-a-morte; sendo que há um dinamismo entre a autenticidade e a inautenticidade na existência de cada ser-no-mundo4.

Heidegger refere que, no estado inautêntico de existência, o mundo, com seus utensílios e relações, acaba por atrair o ser-no-mundo, e este acaba vendo as coisas do mundo como sua principal preocupação, o que não lhe permite uma pausa para reflexão acerca de si mesmo. As relações com os outros homens podem assumir facetas em que o autêntico relacionar-se não ocorra. A consciência da morte possui papel de destaque que, na visão do filósofo, desencadeia reações diversas, às vezes antagônicas, e desperta interpretações ambíguas. Essa visão se justifica a partir da angústia frente à realidade da morte, angústia que muitos não podem suportar, razão pela qual procuram fugir da discussão a respeito do assunto.

No seu cotidiano muitos mostram dificuldade em conversar a respeito do tema na primeira pessoa, preferindo falar sobre esta questão de maneira impessoal, como se a morte não estivesse contida no ápice das possibilidades do ser humano. A morte, desse modo, nivela-se como uma ocorrência que, embora atinja ao ser-no-mundo, não pertence propriamente a ninguém, adquirindo, assim, uma conotação pública. Essa postura revela uma maneira de fugir da angústia da possibilidade de morrer, constituindo uma característica do estado inautêntico, impróprio de existência.

É fato que a morte é fenômeno que não podemos vivenciar enquanto estamos vivos, porém há oportunidades que nos chamam a refletir sobre nossa finitude, tirando-nos das ocupações cotidianas. A morte de um ente querido é uma dessas oportunidades em que

4 Da relação de copertinência entre mundo e homem, Heidegger definiu o homem com a expressão ser-no-

experimentamos a finitude indiretamente. Nesses momentos, o homem que consegue considerar a angústia da possibilidade de morte, percebe-se como sendo um ser-para-a-morte, o que não significa pensar constantemente na morte, e sim encará-la como algo que se manifesta na própria existência.

A tomada de consciência de que é um ser-para-a-morte faz com que o ser humano projete o seu Ser, elaborando os momentos constitutivos de sua existência em direção à sua concretude, que é a morte. A angústia, que para muitos é motivo de fuga, para outros é o fundamento para assumir a sua existência e atentar para as possibilidades que emergem da vida.

Assim, é possível afirmar que a consciência da morte (geradora da angústia) fundamenta a existência e abre o leque de possibilidades para que o homem se faça, se construa. No dizer de Sartre, Heidegger acredita que “ao projetar-se livremente em direção à possibilidade última (morte), é que o ser existente tem acesso a uma existência autêntica, que o faz deixar a banalidade cotidiana para alcançar a unicidade insubstituível da pessoa” (Sartre, 1943/2000, p. 654).

Um exemplo que pode ilustrar essas análises de Heidegger é encontrado no romance de Sartre, O muro (1939/2005). Este romance se passa no interior de uma prisão na Espanha, na época da guerra civil espanhola, e tem como personagens prisioneiros políticos que estão prestes a ser executados. O personagem principal, Pablo Ibbieta, na noite anterior à sua execução, recapitula toda a sua vida diante do fato iminente da morte. E a reflexão sobre o seu fim e sua vida como um todo, o leva a uma clareza sobre a sua existência; ainda que não fosse executado (como não o foi), a vida nunca mais seria a mesma. Sobre essa questão, ele diz: “No estado em que me achava, se viessem me avisar que eu poderia voltar tranquilamente para casa, que a minha vida estava salva, ficaria indiferente; algumas horas ou alguns anos de espera dá na mesma, quando se perdeu a ilusão de ser eterno” (p.24).

Todos os colaboradores desta pesquisa afirmaram terem experienciado, de algum modo, ressignificações e mudanças expressivas em sua maneira de olhar e de dar sentido à vida, após o longo processo em que passaram junto aos entes queridos. Assim como o personagem de Sartre, experienciaram de certa forma a morte em vida, passando a se perceber como seres finitos e a elaborarem os momentos constitutivos de suas vidas, de suas existências, em direção à possibilidade última do ser humano, que é a morte.

Algumas das falas mais significativas quanto a essa temática foram:

“Morrer é inevitável, não é mesmo? E por isso eu acho que depois de ter vivido tudo isso, eu mesma mudei muito. Eu não me preocupo mais com o amanhã, não me preocupo. Eu gosto de viver bem o dia de hoje. Não estou dizendo que não penso no amanhã. Penso, sim, mas com muito menos preocupação do que era antes.” (P1)

“Eu aprendi com ela, com o processo dela, o aprender a viver um dia de cada vez e viver sempre como se fosse o último. [...] comecei a enxergar as coisas de uma maneira mais especial, porque eu acho que a gente hoje leva a vida de uma maneira muito superficial.” (P4)

“Eu ainda não consegui encontrar uma resposta, e acho que isso talvez seja mais sofrimento do que não acreditar em nada, porque eu tenho que conviver com a dúvida o tempo inteiro. Eu gostaria muito de ter uma religião, de acreditar de verdade, porque a religião traz um conforto. Eu não achava que essa era uma questão tão importante pro ser humano, tentar entender um pouco o que acontece depois da morte. Antes eu não me preocupava muito com isso, acho que a morte pra mim tava muito distante, agora não.” (P5)

“Aí eu comecei a refletir mais sobre essa ideia se a vida continua ou não depois daqui, e uma religião que me ajudou muito a entender mais isso foi o kardecismo [...] me ajudou a ver o outro lado da vida. Então hoje eu acredito naquilo ali sim. Tem um outro lado sim, não acabou aqui não. Então eu acredito que ele está lá me esperando, e continua sendo o meu filho. Antes eu tinha muito, muito medo da morte, mas eu perdi esse medo, porque eu sei que eu ainda vou estar com ele, porque ele vai estar me esperando...” (P6)

Os discursos dos colaboradores revelaram que a intensa vivência ao acompanhar seu ente querido no processo de fim de vida e morte, foi capaz de remetê-los à insuperável possibilidade de sua própria finitude. O que os levou a repensar sua existência, rever valores, crenças e prioridades; transformando sua maneira de compreender a vida e estar no mundo.

Assim, apesar de a vivência de acompanhar um ente querido em seu processo de fim de vida e morte ser um evento penoso para os cuidadores, ela propiciou a construção de novos significados em sua existência, a partir da noção da própria finitude.

Ferrell e Baird (2012), em sua pesquisa que tem como foco cuidadores familiares de pessoas com câncer, também concluiu que os cuidadores entraram em contato com a própria finitude; o que os levou a adquirirem um novo tipo de valorização da vida, pautado no desapego material e ampliação do campo espiritual, na busca pela harmonia consigo mesmos e com os outros, visto que passaram a compreender sua vida na terra como transitória.

Outros estudos também corroboram com os achados desta presente pesquisa, e apontam para a possibilidade de contato com a própria finitude na vivência do cuidador principal, e de ressignificações advindas dessa experiencia:Koerner et al., 2009; Attig, 2010; Fratezi e Gutierrez, 2011; Sena et al., 2011; Ferrell e Baird, 2012; Nietsche et al., 2013.

É preciso destacar que me deparei com mais dificuldades para encontrar estudos que comunicassem sobre ganhos/ressignificações, que podem ocorrer ao se ter contato com a angústia da finitude humana, do que quando pesquisei os outros eixos temáticos. Talvez porque as pesquisas que têm sido realizadas estejam mais voltadas para as dificuldades e como encontrar melhores maneiras de ajudar as pessoas nos problemas relatados, sendo mais difícil focar em qualquer forma de ganho. E/ou talvez porque angústia, sofrimento e finitude sejam conceitos muito difíceis de associar a algo positivo, principalmente nos dias atuais. Não é possível saber ao certo.

Após o exposto neste eixo temático, é importante enfatizar a necessidade do cuidador, em sua intensa vivência, poder se ver/se perceber em todo esse processo. Se perceber como um ser lançado na facticidade da vida e, portanto, um ser que sofre, pois, ao mesmo tempo em que cuida do outro, precisa cuidar de sua dor ao presenciar a morte do outro e de sua angústia ao tomar consciência da própria finitude. Se perceber enquanto ser que se angustia perante a

dor e, especialmente, perante a morte. É importante que acolha a própria dor e angústia e, assim, possa crescer/projetar-se para as inúmeras perspectivas que o poder-ser da existência humana possibilita.