• Nenhum resultado encontrado

4) DISCUSSÃO: ampliando reflexões

4.2. Questões ético-relacionais

Os cuidadores entrevistados se mostraram significativamente dependentes da relação com os profissionais de saúde, em especial, com os médicos. Todos relataram estarem buscando uma relação de confiança e transparência com eles. P2 e P6 encontraram o que buscavam nessas relações, enquanto a maioria (P1, P3, P4 e P5) sentiu pouca confiança e transparência, especialmente devido aos cuidados pouco humanizados que receberam da parte dos profissionais.

O processo de morrer traz consigo a necessidade de tomar certas decisões éticas difíceis. Nesses momentos, não há certo e errado, nem um protocolo a seguir. E, se o protocolo existe, em muitas situações, pode mais atrapalhar do que auxiliar, pois se apresenta com rigidez e objetividade em uma situação que exige delicadeza, sensibilidade, flexibilidade. Nesse cenário, quanto mais claras forem as informações passadas às pessoas com doença

potencialmente fatal e seus familiares responsáveis, mais subsídios terão para poder se posicionar sobre os tratamentos a serem seguidos ou não, e sobre o prolongar ou não a vida.

Nesta pesquisa, os colaboradores destacaram a necessidade de serem melhor esclarecidos pelos médicos a respeito da situação em que a pessoa doente se encontrava, sem escamotear informações. Pois, a falta ou distorção dos esclarecimentos necessários dificultou ainda mais a tomada de decisão, principalmente nos momentos finais de vida, quando o ente querido já estava incapacitado de se posicionar.

P1 referiu que os médicos não foram claros em relação à proximidade da morte de sua mãe em momento algum. A colaboradora acredita que eles não se posicionaram para não serem responsabilizados mais tarde. Dessa forma, não recebeu informações suficientes e não percebeu que a mãe foi encaminhada para morrer em casa. Assim que a mãe passou mal, foi pega de surpresa, se desesperou e chamou o resgate. P1 e a mãe não queriam e pediram que não fosse realizada a intubação, porém ela foi intubada, pois os profissionais que a atenderam na emergência disseram ter que seguir protocolos, que são regidos pela busca do salvar as vidas a qualquer custo. Assim, houve um prolongamento da vida de sua mãe desnecessário e com muito sofrimento, o que constitui o que se conhece como distanásia.

Segundo Pessini (2009), a palavra distanásia tem origem grega: o prefixo dys significa ato defeituoso ou errado, e a palavra thánatos significa morte. Nesse sentido, a distanásia se refere a “uma ação, intervenção ou procedimento médico que não atinge o objetivo de beneficiar a pessoa em fase terminal e que prolonga inútil e sofridamente o processo do morrer” (p.319). Prolonga-se, dessa forma, de modo exagerado o sofrimento e morte, através de meios artificiais e invasivos, em situações clínicas irreversíveis e terminais. Essa conduta tem sido chamada também de ‘tratamento fútil e inútil’ ou ‘obstinação terapêutica’.

P3 também sofreu com a distanásia praticada com sua esposa. Teve uma sensação diferente da de P1; acredita que houve dolo por parte dos profissionais de saúde que os

acompanharam. Por se tratar de uma instituição de saúde privada e bastante cara, os profissionais de saúde utilizaram artifícios para manter sua esposa viva a qualquer custo, ligada a diversos aparelhos, realizando ainda procedimentos invasivos quando já não havia respostas. Enquanto P3 pagava muito dinheiro pelos procedimentos aplicados, relatando que foram muitos, a instituição tinha lucros. Foi preciso um amigo que é médico intervir na situação para que o óbito de sua esposa fosse declarado.

P4 também teve uma difícil experiência com o médico nos momentos finais de vida de sua esposa. O profissional queria interromper os tratamentos/procedimentos técnicos, inclusive desligar os aparelhos, quando sua esposa já não esboçava reações na UTI. P4 não concordava com isso. Não houve conversa/escuta mais atenta para que o familiar pudesse expor suas motivações religiosas.

Por outro lado, aqueles familiares que receberam bom respaldo, foram bem informados e tiveram melhor suporte dos médicos/equipe de saúde conseguiram decidir com mais recursos sobre o que fazer nos momentos finais de vida. Os entes queridos de P2 e P6 puderam falecer em casa, com acompanhamento de equipe de saúde constante.

P2 contou que a médica ofereceu bons esclarecimentos e orientações, por isso puderam decidir pelos tratamentos não invasivos e pela chegada da morte de seu pai em casa. P6 relatou que a médica que acompanhou a ela e a seu filho “era como uma mãe”, que a esclareceu e auxiliou em todos as ocasiões a decidir pelos melhores tratamentos, até mesmo nos momentos aproximados da morte. A médica então começou a alertá-la gradativamente de que a morte de seu filho já estava bem próxima.

A maioria dos colaboradores relatou também outras experiências ruins na relação com os profissionais de saúde/médicos que os assistiram; P1 e P5 no setor público; P3 e P4 no privado. Porém, as dificuldades do serviço público e do privado apresentaram algumas peculiaridades.

P1 e P5 sofreram com as grandes filas de espera, dificuldades para marcar exames e para ter acesso a tratamentos técnicos e/ou medicamentosos, além da falta de informação e da indiferença dos profissionais que os assistiam.

P3 e P4 também sofreram com a escassez de informação, ou com informações distorcidas; e com a falta de espaços de escuta e acolhimento.

No caso de P5, ela e a tia não foram incentivadas a procurarem o serviço de Cuidados Paliativos, quando houve interrupção dos tratamentos que visavam a cura da doença, devido à difícil relação com a médica que as atendeu. Após algumas sessões de quimioterapia, a profissional referiu que o tratamento seria interrompido, e que então a tia seria encaminhada para os Cuidados Paliativos, pois já “não havia mais nada a fazer”. O que foi entendido por P5 e pela tia que não haveria qualquer diferença em serem assistidas em um programa de Cuidados Paliativos ou se aguardassem, sem nenhum suporte, a morte em casa.

Outros estudos, assim como nesta pesquisa, também discorrem a respeito da importância da relação dos pacientes/familiares cuidadores com os profissionais de saúde que os assistem. Alguns deles são: Caress et al., 2009; Hebert et al., 2009; Sulzbacher et al., 2009; Sousa e Carpigiani, 2010; Kaarbo, 2010; Rosa et al., 2010; Ambrósio e Santos, 2011; McCarthy, 2011; Schaepe, 2011; Almeida e Cardozo, 2012; Ferrell e Baird, 2012; Given et al., 2012; Lind et al., 2012; Northouse et al., 2012; Wittenberg-Lyles et al., 2012; Gallagher e Krawczyk, 2013; Queiroz et al., 2013; Silva et al., 2013.

Waldrop et al. (2012), realizaram estudo sobre a relação entre familiar cuidador e profissionais de saúde. E, corroborando com que neste presente estudo se delineou, observaram que uma atitude fria, impessoal ou mesmo superficial do profissional provocou maior dor, medo, raiva e insegurança nos familiares. Por outro lado, uma atitude transparente e continente ajudou no enfrentamento da difícil situação pelos envolvidos e, ainda, facilitou a tomada de decisões sobre o prolongamento ou não da vida do ente querido.

O exposto acima leva ao questionamento sobre o porquê se tem observado tantas dificuldades ocorridas na relação entre pessoas com doença potencialmente fatal/familiares com os médicos/profissionais de saúde que os assistem? Acredito ser esse outro tema bastante importante e que não pode ser abordado de modo simplificado.

Portanto, minha intenção, neste momento, é destacar apenas uma faceta desta questão que acredito ser importante assinalar neste trabalho: os profissionais de saúde são seres humanos, antes de qualquer papel que exercem. São pessoas com angústias e medos, encarnados nessa sociedade e no cenário em que a saúde tecnocientífica se encontra. Dessa forma, experienciam também dificuldades em lidar com a morte e seus desdobramentos.

Mesmo em equipes de saúde com princípios e incentivo à maior comunicação sobre a questão da morte, surgem obstáculos. Sousa e Carpigiani (2010) realizaram pesquisa com profissionais de saúde que trabalham em programa de Cuidados Paliativos de hospital público, com a temática da comunicação entre a equipe. Entrevistaram 7 profissionais com funções diferentes na equipe, como a médica e a secretária. Verificaram que os profissionais se comunicam entre si a respeito de procedimentos técnicos em relação aos pacientes atendidos; nesse aspecto a comunicação é eficaz. Porém, não falam sobre o que sentem, pensam, como lidam com as mortes dos pacientes, que ocorrem frequentemente. As autoras observaram que neste serviço não há tempo/espaço para essa forma de comunicação na equipe.

Também há grande dificuldade entre profissionais de saúde em lidarem com a efemeridade e finitude humanas. E estes profissionais precisam, do mesmo modo, receber atenção e serem assistidos em suas dificuldades.

Sulzbacher et al. (2009), entrevistaram profissionais de saúde que trabalham constantemente em contato com a questão da morte em suas atividades diárias e analisaram essa problemática. O que se destacou no estudo foi o sofrimento destes profissionais. Assim, a

pesquisa ressalta a importância das instituições de saúde oferecerem serviços que deem suporte aos profissionais de saúde em meio à sua prática cotidiana.

Outros estudos ainda destacam a questão das dificuldades enfrentadas pelos profissionais de saúde e a importância do cuidado ao cuidador profissional. Alguns deles são: Fontana, 2010; Saint-Louis, 2010; Júnior et al., 2011; Santos e Sales, 2011; Almeida e Cardozo, 2012; Mendonça et al., 2012; Rodrigues e Zago, 2012; Nietsche et al., 2013; Queiroz et al., 2013; Santos & Hormanez, 2013; Silva et al., 2013; Vasques et al., 2013.

Porém, cuidados como esses espaços de escuta e acolhimento aos profissionais são reduzidos nos hospitais e instituições de saúde no Brasil. Tanto na instituição pública, quanto na privada, tem-se presenciado que os profissionais precisam cumprir cargas horárias extensas, às vezes sem tempo para descansos considerados obrigatórios. A mentalidade que parece imperar é a de que não há espaço/tempo a “se perder” com momentos de escuta aos profissionais. Pois, na “perda” desse tempo, perdem-se também lucros. Ou, no serviço público, atende-se um menor número de pessoas e não se recebe a verba acordada para um certo número de atendimentos ao mês.

Assim, a relação com os profissionais é muito importante na vivência do familiar cuidador. Porém, os profissionais também apresentam suas dificuldades em lidar com o sofrimento e a finitude humanas, o que fica latente ao acompanharem pessoas com doenças potencialmente fatais. Assim, é necessário que também recebam cuidados em meio à sua prática cotidiana. Pois, também fazem parte do núcleo ‘pessoa com a doença-familiar cuidador-equipe de saúde’; que, ao mesmo tempo que se distinguem também se unem, e que não podem se separar no processo de fim de vida dos pacientes que esses profissionais assistem.