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Parte I: Fundamentos da Retórica

3.1 A morte da Retórica

Com a linguagem, o homem cria realidades e, no mundo, com e por meio dela, percebe, pensa e age. Com a Retórica, estuda como conferir eficácia à linguagem.

Em época alguma, o homem deixou de criar realidades e interferir no mundo usando a linguagem, bem como jamais deixou de refletir sobre como fazê-lo de modo cada vez melhor. Assim, causa estranhamento alguém propor que uma atividade tão vital, a Retórica, seja, em algum instante da história, relegada a uma posição subalterna entre as atividades humanas.

Perelman, no entanto, decreta que estabelecia as bases de uma “nova Retórica”, pois a antiga havia sido descurada. Entretanto, a qual Retórica se referia? Que discurso privilegiava?

[...] faz três séculos que o estudo dos meios de prova utilizados para obter a adesão foi completamente descurado pelos lógicos e teóricos do conhecimento.

(PERELMAN, 1996, p. 3)

O que ele mencionava não era a morte da Retórica, mas a falta de atenção mais ampla dada a ela por parte de uma classe de estudiosos, os lógicos e epistemólogos, que se aprofundaram em apenas uma das dimensões, o lógos. Porém, é aceitável e até desejável que, ao enveredar no aprofundamento de determinados pontos de uma área tão ampla, quem o faça, de fato, relegue a um segundo plano outras possíveis linhas de investigação. Trata-se de uma especialização sobre a qual não há o que lamentar, pois necessária ao progresso da investigação científica. Delimitar bem o objeto de estudo é uma tarefa essencial. Assim fez, por exemplo, a fonoaudiologia, cujo notável grau de especialização a diferencia, já em larga medida, da Retórica.

conhecedores dos princípios que regem o fenômeno linguageiro. Na passagem a seguir, por exemplo, o ideal do vir bonvs prepondera sobre a técnica vocal.

O importante é ter algo a dizer ao mundo [...] mesmo quando se fala mal, mesmo quando a voz é anormal, mesmo quando se tropeça nas palavras. O importante é ter uma mensagem profunda, pessoal, verdadeira, autêntica a transmitir.

Claro que o ideal é transmiti-la com boa voz. Mas ninguém deve se deixar embalar pela sonoridade magnífica, pela música das palavras, mais do que pela música das ideias, do sentimento, do conhecimento.

Já se foi a época em que se procuravam no grande orador os chamados grandiloquentes, aquela “vibrante” monotonia melódica, tocando a mesma música em todas as frases, desde a descrição de uma célula até a defesa de um réu inocente.[...]

O principal, ao falar, é não trair a própria natureza, a própria alma. A voz pode melhorar sempre. A alma, também.

(BLOCH, 1977, p. 156 e 157)

Perelman tem o mérito de alertar sobre a necessidade de não se perderem de vista contribuições que uma visão mais geral da Retórica traria para os estudos da lógica. Cabe destacar quão grande foi a influência dessa percepção de Perelman, e o quanto continua forte, em especial na Análise do Discurso. Tornou-se lugar-comum repetir o conceito, ainda que as próprias percepções sejam diversas, de “morte da Retórica”.

Observe-se a contradição, no mesmo parágrafo, de um especialista que parece reconhecer a importância da Retórica ao longo da história, mas que logo retoma a ideia de morte da Retórica.

A disciplina constituída pela retórica, na verdade, jamais foi abandonada ao longo de sua história. Segundo as épocas, porém, ela teve estatutos, ou objetos, bem diferentes. [...] constantemente oscilou entre uma concepção social e uma concepção formalista, e que ela acabou por morrer, antes de renascer, de maneira espetacular, no século XX.

(KLINKENBERG apud MOSCA, 2001, p.130; grifos nossos)

Evidentemente, só pode renascer o que tenha morrido. Como o positivismo precisava posicionar-se contra qualquer coisa indigesta ao império do puramente racional e controlável, indispôs-se violentamente contra a Retórica, pelo fato de ela se dedicar ao estudo − nem sempre possível de se fazer com pura racionalidade − sobre a ferramenta mais poderosa para a criação de

realidades pelo homem, a linguagem. Entretanto, procurar ferir, vilipendiar e tentar calar pela força da ridicularização seriam estratégias insuficientes para sufocar tão vigorosa disciplina.

Destaque-se que Klinkenberg se redime da interpretação anterior, quando afirma, de forma aguda e pertinente:

Cada uma das partes do grande edifício que ela constituía adquiriu, na verdade, a sua independência, tanto no domínio das disciplinas teóricas como no das disciplinas práticas. [...] essa fragmentação não fez desaparecer o projeto retórico primitivo. [que é] [...] contribuir para constituir uma ciência do discurso dos homens em sociedade.

(KLINKENBERG apud MOSCA, 2001, p. 13)

Pelo fato de ter vivido em ambiente acadêmico, onde o positivismo vigente na segunda metade do século XIX repercutiu por décadas, Perelman se referia a apenas uma parte da Retórica, aquela estudada nos meios acadêmicos, sobretudo a partir de produções científicas e jurídicas. Tanto que se refere a “lógicos” e “teóricos do conhecimento”, presentes, em geral, na academia. O que interpretou no campo jurídico se referiu a um momento em que as discussões na área se pautavam sobre a validade do positivismo para embasar julgamentos.

Porém, a Retórica está numa esfera e a lógica e a teoria do conhecimento, em outra. As duas últimas constituem uma parte apenas da Retórica. São servas da Retórica, como, aliás, as demais disciplinas. A armadilha em que sucumbiu o positivismo foi considerar que a lógica e o racionalismo preponderariam sobre a Retórica.

Perelman, deliberadamente, deixou de considerar a Retórica presente em outras instâncias sociais, como a comunicação de massas, a esfera religiosa, o proselitismo político. Perelman ou, pelo menos, seus leitores mais desavisados, generalizaram a presença da Retórica em cada uma dessas instâncias com o mesmo molde com o qual ele avaliava a argumentação – não toda a Retórica, ressalte-se – científica e jurídica.

A rigor, no entanto, mesmo a ciência e o direito jamais deixaram a Retórica de lado, até porque ela não se restringe ao problema da argumentação

Com efeito, tem-se entendido por Retórica Jurídica quer a disciplina (ou o quid sobre que se debruça) atinente a um vasto, vastíssimo, conjunto de elementos discursivos, argumentativos, ponderadores, que se manifestam pelo pensamento problemático (e não dogmático, sistemático, axiomático, etc.) com presença nas diversas formas por que se manifesta e vive o Direito. Nesta visão muito lata,

E como nem a tópica é uma só, nem a dialéctica singular, na Retórica jurídica, ao menos enquanto estudo de perspectivas e teorias, caberiam várias tópicas e várias dialécticas.

Mais ainda: vista a questão por outro lado, não há dúvida de que nesta lata acepção cabem retóricas de todas as fontes de Direito, pelo menos de todas as fontes voluntárias. Não sendo para nós claro afirmar-se que os usos ou até o costume, por exemplo, se afirmem com uma retórica (tal não poderá ser dito a não ser de forma muito metafórica...), já é evidente que a Lei está impregnada de retórica (desde as discussões políticas, parlamentares, trabalhos de comissão, até se plasmar tal retórica em exposições de motivos, preâmbulos, e até campanhas públicas de divulgação e promoção de certa legislação, etc.). O mesmo se diga, ou quase, para a jurisprudência. [...]

No Direito está viva a Retórica no seu melhor. E a defesa da Retórica é, em boa medida, a defesa do Direito, tal como a defesa do Direito a defesa da Retórica.

(CUNHA, 2003, p.1-19)

Portanto, decretar a morte da Retórica nos três séculos que o precederam seria apenas uma estratégia perelmaniana para poder se instaurar como aquele que a ressuscitaria. Afinal, em todos os campos importantes da atividade humana, a Retórica, moldando-se aos desafios sociais de cada época, mostrou-se viva e atuante. De fato, em sua longa e importante história, a Retórica já recebeu muitas definições, acomodando vários objetivos e variando muito no que incluía. Ela foi moldada e remoldada pelas diversas ênfases culturais que mudaram através dos tempos. Foi usada de diferentes maneiras: cada época, cada escola adaptou-a e continua adaptando-a até nossos dias para diferentes fins, reformulando-a à sua própria imagem. Por isso, já foi caracterizada como camaleônica.

Adiante, após estudar definições de Retórica, perceberemos que representações de morte da Retórica somente farão sentido em algumas acepções restritas do termo. O discurso cientificista com intuitos políticos e ideológicos enveredou por apenas uma parte da Retórica, o estudo da argumentação, como se possível fosse apreender o mundo usando tão somente a lógica. Entretanto, jamais deixaram de ser publicados manuais sobre Retórica, agregando aos conceitos estabelecidos na antiguidade inovações trazidas pelas transformações sociais peculiares a cada época. Concluímos, pois, com Polito, que:

Enganam-se aqueles que imaginam a extinção do estudo da oratória nos dias atuais. O que houve, na verdade, foi uma grande transformação nas exigências dos ouvintes e consequentemente na orientação do ensino da arte de falar. [...] Muito mais do que em formar oradores profissionais, os cursos atuais se aplicam em formar profissionais oradores, isto é, pessoas que possam expressar pela palavra seu conhecimento, de maneira correta e segura. Esta linha de ensino,

mais liberada, não exclui a contribuição dos antigos retores, apenas promove uma adaptação ao gosto da plateia moderna, que deseja um orador que converse com o ouvinte em vez de um orador que fale para ele.

(POLITO, 1996, p. 26)