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Parte I: Fundamentos da Retórica

3.2 A Retórica sempre viva

Como atividade humana, a Retórica jamais deixou de ser importante e fundamental. Perelman visava estabelecer como referência a estratégia, que considerava como perspectiva primeira o discurso cientificista, ou lógico racionalista, como base de uma ação política. Tal perspectiva não corresponde à realidade de uma Retórica humanista, sempre forte e presente nas mais variadas atividades – empresariais, comerciais, religiosas, midiáticas e mesmo científicas.

Um bom índice para se constatar a permanência da Retórica é o número de publicações na área. Não se pode confundir o fato de se deixarem de publicar certos títulos com desprezo pela Retórica. O que há, de fato, é uma alteração no modo de tratar o fenômeno da linguagem, com o consequente concentrar da atenção dos especialistas e centros de pesquisa em novas abordagens. Por exemplo, podemos incluir toda a bibliografia sobre linguística (tendo em vista o valor vigente à época de tratar todas as questões de um ponto de vista cientificista) como publicações na área de Retórica. O mesmo se dá em relação às inúmeras publicações sobre comunicação. Ao lado delas, nunca deixaram de ser publicados manuais práticos sobre a arte de fazer discursos.

Em De oratore, Cícero, com a fala de Antônio, faz talvez o mais tocante elogio à oratória do mundo clássico, justificando seu valor com base em sua utilidade e em sua beleza:

Agora proponho, por ter convicção de tal fato, o seguinte: embora não exista uma arte, não há nada mais admirável do que um orador perfeito. De fato, deixando de lado a utilidade da oratória, que é soberana em qualquer cidade livre e em paz, há tamanho deleite na capacidade oratória em si que nada pode ser percebido com maior prazer pelos ouvidos ou pelas mentes dos homens. 34. Pois que canto é possível encontrar mais agradável do que um discurso cadenciado? Que poema é mais bem construído do que um período feito com arte? Que ator, ao imitar a realidade, é mais agradável do que um orador, ao assumir um caso real? Ou que há de mais sutil do que as sentenças abundantes e agudas? Que há de mais admirável do que um tema iluminado pelo brilho das palavras? Que há de mais rico do que um discurso repleto de toda espécie de temas? E não há qualquer tema que não seja próprio do orador, desde que exposto com distinção e gravidade. 35. É próprio dele, ao aconselhar sobre os assuntos mais importantes, o pensamento exposto com autoridade; também o é animar o povo já fatigado, ou moderá-lo, quando fora de controle; por esta mesma capacidade a perfídia dos homens é levada à ruína, sua integridade, à salvação. Quem é capaz

de vituperar os maus com mais aspereza, de louvar os bons com mais distinção, de, numa acusação, derrubar a ambição com mais veemência? Quem, com sua consolação, pode aliviar a tristeza com mais doçura? 36. Quanto à História, testemunha dos tempos, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, mensageira da Antiguidade, que outra voz confia à eternidade, senão a do orador?

(CÍCERO. De oratore, II, 33-36)

Podemos dizer que o elogio à capacidade oratória proclamado na antiguidade permanece válido. Mesmo com a profusão de gêneros textuais e dos suportes da linguagem e a multimodalidade, um bom orador continua alcançando destaque social.

Nossa vivência empresarial no comércio de livros permitiu-nos constatar alguns fenômenos editoriais impressionantes ligados à oratória, como a obra do Prof. Reinaldo Polito. Somando-se vários dos títulos desse autor na área da comunicação verbal, contam-se milhões de exemplares vendidos, o que comprova o interesse do grande público pela matéria. Apenas um de seus títulos, Como falar corretamente e sem inibições, publicado pela Editora Saraiva, saltou da 45ª para a 111ª edição entre 1996 e 2006.

Destaque-se, de passagem, haver no próprio título dessa obra a pressuposição de existir uma “maneira correta” de se falar. Encontram-se em profusão representações do que é “falar bem”, de “o que o público deseja”, de “como determinado público é”, de “o que fazer para se tornar um bom orador”, de “como usar a voz, gestos, movimentos”, de “onde aplicar os preceitos da boa oratória” já em obras clássicas, como Retórica a Herênio, atribuída, em meio a polêmicas sobre a verdadeira autoria, a Cícero, e em obras recentes, das quais é exemplo Como falar em

público e influenciar pessoas no mundo dos negócios (CARNEGIE, 1994), talvez a mais

importante obra do século XX sobre o tema. Recomendações atravessam séculos e chegam com poucas mudanças e adaptações aos novos gêneros textuais, o que acarreta uma discrepância entre as expectativas sobre o valor das prescrições e os resultados obtidos na busca do “falar bem”.

No entanto, apesar de todo o interesse pelo “falar bem”, ao procurar reflexões acadêmicas na área, de modo a fundamentarmos algumas práticas e buscarmos novas maneiras de garantir bons resultados a quem procura nosso curso, defrontamo-nos com escasso material. Dentre as razões plausíveis para tal lacuna citamos uma reação ideológica, compreensível, diga-se de passagem, contra quem preconiza uma fórmula padrão para a boa formulação do pensamento, da fala e da escrita, e um preconceito contra a possibilidade de se “ensinar a falar bem”.

Fato é que a escassez de material indica a urgência de uma discussão aprofundada sobre a questão, que trará, espera-se, contribuições fundamentais para variadas esferas.

Cada especialista em uma área do conhecimento sobre linguagens, entretanto, julgando ser a sua área a mais importante ou relevante, procura conferir-lhe maior credibilidade, ampliando o embasamento científico no qual se ancora. Muitas vezes, esse processo leva a um distanciamento da aplicação prática dos avanços da área, que somente poderá ser recuperado muito mais tarde.

É oportuno rememorar as reflexões de uma especialista que, distanciada da paixão por uma área apenas, enxerga o processo numa perspectiva histórica que permite compreender bem a temática:

Vi nascerem e morrerem várias teorias. Vi como nós, de um dia para o outro, abandonamos convicções pelas quais nos batíamos, defendíamos a unhas e dentes, e as substituímos por outras que estão na moda. Passamos então não só a defender nossas novas convicções com ardor revigorado mas também a desmerecer nossas posições anteriores, que passamos a ver com muitas restrições, se não com desprezo.

Com isso aprendi algumas lições: a não ter preconceitos pelas novidades, mas a não desacreditar a tradição. Sobretudo não acreditar em dogmas de fé. As teorias não passam de exercícios intelectuais e não têm a capacidade de modificar nosso objeto de estudo, a linguagem, só o nosso olhar sobre ela.

(MENDES, 2010)

Para avançar, será preciso escolher uma definição de Retórica.