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Parte I: Fundamentos da Retórica

4.2. Princípios e prescrições da Retórica

Um dos propósitos dos atuais estudos sobre pedagogia retórica consiste em rearranjar princípios e prescrições retóricos de diferentes épocas, refletindo sobre sua aplicabilidade a diversos campos.

Cabe, primeiramente, diferenciar princípios de prescrições. Vejamos como os termos se encontram dicionarizados. Princípios, como se verá, estariam mais próximos de leis que podem ser depreendidas do estudo de fenômenos naturais ou sociais, enquanto as prescrições se aproximariam de regras concretas, estabelecidas para facilitar a relação do ser humano com a realidade, mas que poderiam ser seguidas ou não.

princípio Datação: sXIV substantivo masculino

1 o primeiro momento da existência (de algo), ou de uma ação ou processo; começo, início

Exs.: p. da vida na Terra no p. do casamento

2 o que serve de base a alguma coisa; causa primeira, raiz, razão 3 ditame moral; regra, lei, preceito (tb.us. no pl.)

4 proposição elementar e fundamental que serve de base a uma ordem de conhecimentos

Ex.: princípios da física, da matemática 4.1 Rubrica: física.

lei de caráter geral com papel fundamental no desenvolvimento de uma teoria e da qual outras leis podem ser derivadas

5 proposição lógica fundamental sobre a qual se apoia o raciocínio Ex.: partir de um p. falso

6 Rubrica: filosofia. fonte ou causa de uma ação 7 Rubrica: filosofia.

proposição filosófica que serve de fundamento a uma dedução

(HOUAISS, 2001)

prescrição Datação: 1450 substantivo feminino ato ou efeito de prescrever 1 ordem, determinação 2 norma, preceito, regra

3 aquilo que se prescreve, se recomenda, se receita Exs.: a p. de um antibiótico

seguir as p. do médico 4 Rubrica: termo jurídico.

esgotamento de prazo concedido por lei; perda da ação atribuída a um direito, que fica juridicamente desprotegido, em função do não uso dela durante determinado lapso de tempo; caducidade

4.1 Rubrica: termo jurídico.

extinção da possibilidade de o Estado punir o autor de um crime ou contravenção, por não haver exercido no tempo legal o seu direito de ação, ou por não ter efetivado a condenação imposta.

(HOUAISS, 2001)

Deixadas de lado acepções que tendem à sinonímia ou restritas a áreas técnicas, temos para princípios “o que serve de base a alguma coisa; causa primeira, raiz, razão” e para prescrições, “aquilo que se prescreve, se recomenda, se receita”.

Portanto, os princípios de Retórica seriam o substrato que rege a linguagem, enquanto as prescrições da Retórica seriam a conversão dos princípios em regras práticas para atuação. O mesmo ocorre com concepções de gramática, diferenciando-se em estudos gramaticais questões normativas e “filosóficas”.

Claro, princípios e prescrições não são antagônicos. Pelo contrário, sendo a oratória uma arte do instante, as prescrições têm melhor proveito se preservada a liberdade do orador para

decidir, dentro de uma gama considerável de possibilidades, como agir, o que exigirá o profundo entendimento dos princípios, que, em última instância, norteiam sua enunciação.

Quanto aos princípios, caberia à pedagogia retórica, entre inúmeros outros objetivos possíveis, buscar as leis que regulam o funcionamento da construção discursiva; sua recepção por variados públicos; as interligações entre a subjetividade e o caráter social do discurso; os elementos que lhe conferem eficácia.

Quanto às prescrições, caberia à pedagogia retórica associar prescrições a gêneros textuais; buscar as interseções entre os conjuntos de prescrições válidas para cada gênero verificando quais se sustentam em qualquer gênero, sendo portanto, prescrições gerais, e quais se sustentam apenas em algum ou poucos gêneros, próximos entre si, sendo, pois, prescrições específicas.

Além disso, a pedagogia retórica se encarregaria de estabelecer as relações entre princípios e prescrições, considerando a liberdade do indivíduo para compor seus discursos, naturalmente delimitadas pelas injunções sociais que criam, moldam, cristalizam, transformam, atualizam gêneros.

Antigamente, dada a pequena quantidade de gêneros reconhecidos, tratava-se de tarefa mais fácil. As reflexões sobre Retórica na antiguidade, por serem as primeiras, consideraram poucos gêneros textuais. Debruçaram-se sobre aqueles em que, de modo mais evidente, diferenciavam-se as funções sociais do texto. Por isso, Aristóteles classificou os gêneros em deliberativo, epidítico e judicial.8 À época, havia muitos outros gêneros. O recorte aristotélico, pois, deixou de lado inúmeros gêneros. A rigor, sua classificação se referia mais à finalidade do discurso que à sua condição genérica. Hoje, os recortes se tornam mais sofisticados, dada a imensa variedade dos textos, já que uma sociedade mais complexa produz gêneros mais complexos. Muitos critérios, combinados de variados modos, para classificação de gêneros, estão estabelecidos: função, forma, suporte, tipo textual predominante. Isso torna a tarefa a que se propõe a pedagogia retórica mais desafiante, por um lado, e mais produtiva, por outro.

Muitos dos manuais – de Retórica, de gramática, de produção textual – devem ser entendidos tendo-se em consideração suas pretensões quanto ao ponto em que se colocam, na larga e gradual escala que segue de prescrições a princípios.

Muito da crítica à Retórica se refere, em verdade, à crítica contra a aplicação cega de prescrições e à falta de raciocínio sobre os princípios que as regem. Há situações práticas em que podem ser quebrados preceitos, desde que se atendam a princípios. Há situações em que princípios se chocam, sendo necessário estabelecer uma hierarquia entre eles. A escolha de qual princípio prepondera atende a ditames das crenças e dos valores, individuais e sociais. Algumas vezes, congela-se a hierarquização de princípios, o que transforma a ordem hierárquica adotada em mais uma prescrição cega.

Também é comum, estabelecido um princípio, desejar-se encaixá-lo à força em situações às quais não se aplica. Para justificar o procedimento, generalizam-se acusações contra quem defende a utilização de uma norma específica. As mais comuns, atualmente, são de “preconceito”.

Bom exemplo se obtém com o acompanhamento da polêmica sobre livro didático. Em 2011 houve larga discussão quanto à recomendação, por alguns, do uso de modalidades menos formais do idioma. A polêmica surgiu porque a autora do livro Por uma vida melhor, Heloísa Ramos, em determinado capítulo, citou como aceitável, numa determinada circunstância, dizer “nós pega o peixe”. Os que logo se apressaram em defender o posicionamento da autora diziam que as críticas eram devidas a preconceito linguístico e que era natural o uso de variantes linguísticas consideradas incorretas pelos puristas, esquecendo-se da sábia lição do mestre Said Ali: explicar um fenômeno linguístico não significa abonar o seu uso.

O fundamento capaz de solucionar a contento tais impasses é buscarem-se princípios com uma ampla percepção de todas as variáveis envolvidas na decisão e entender uma recomendação normativa no estrito âmbito em que vale.

Consequentemente, a pedagogia retórica tende a validar não prescrições cegas e deslocadas, mas a formação ampla do ser humano, de modo a consolidar sua capacidade de julgamento sobre quando, como e onde aplicar os princípios retóricos na produção textual, oral ou escrita.

5 A Retórica na prática

É comum encontrar nos livros didáticos prescrições quanto à necessidade de clareza em um texto. Porém, tomada isoladamente, a prescrição “o texto deve ser claro” confere ao texto

uma propriedade que desconsidera contexto e intencionalidades do orador, como se todos os textos produzidos devessem possuir igualmente tal característica.

Privilegiar princípios levaria a transformar a prescrição acima em algo como: “uma das qualidades do texto que cabe ao orador regular é a clareza”. Abrir a possibilidade ao orador para que ele regule uma característica exige aprofundamento quanto aos critérios de seleção dos parâmetros que considerará para fazer suas escolhas e lhe concede, portanto, maior responsabilidade e liberdade.

Caberá, portanto, à pedagogia retórica desenvolver reflexões sobre que parâmetros utilizar para mensurar a clareza, que critérios usar para aumentar ou diminuir o grau de clareza e em que circunstâncias será aceita socialmente a regulagem escolhida.

Determinar a competência do orador para decidir sobre o texto não implica desprezar determinações sociais que contribuem para a eficácia do texto. Assim, devem estar presentes na mente do orador questões como as seguintes, seguidas de possíveis respostas entre parênteses:

 que tipos de texto devem ter a clareza como princípio norteador? (legislação, receitas, manuais de instruções)

 que tipos de texto não exigem clareza? (literários, reminiscências)

 que tipos de texto exigem não haver clareza? (profecias, 'falar em línguas', mensagens cifradas próprias de determinados grupos sociais)