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Capítulo II – A viragem quântica: Wendt

2.6. States are not people too: a realidade virtual da política internacional

2.6.3. A natureza holográfica do estado e do sistema de estados

Considerada a linguagem como quântica, a etapa seguinte seria constatar que, sendo constituídos o estado e o sistema internacional149, em parte, pela linguagem, devem os mesmos manifestar propriedades quânticas. O que quer dizer isso? Antes de mais nada, tais “objetos” possuem duas descrições não equivalentes, porém

148 Na verdade, a analogia entre a mudança de Cambridge e o emaranhamento quântico é no mínimo

inadequada, crítica esta a ser desenvolvida no capítulo IV. Para um exemplo hipotético do que poderia ser um emaranhamento quântico em escala macro, cf. capítulo III.

149 Wendt advoga que tanto o estado quanto o sistema internacional são possuidores de uma realidade

virtual, sem distinguir, por enquanto, entre a constituição de um de outro. Por tal razão, mencionaremos, a partir de agora, apenas o estado, estando implícito que as considerações sobre sua natureza se estendem ao sistema internacional.

complementares – partícula e onda150 –, de modo que a plena compreensão de um

fenômeno ocorre justamente ao se levar em conta ambas versões da realidade.

Enquanto onda, o estado representa uma estrutura socialmente compartilhada

de potencialidades (diferença entre W1 e W2), não sendo reais, portanto, no sentido

clássico. Na qualidade de função de onda, a atualização do estado, por exemplo, pode ocorrer de diversas formas, sendo que apenas uma delas poderá ser considerada como o estado “verdadeiro” do estado (WENDT: 2010a, 293).

Enquanto partícula, o estado possui sim uma realidade definida, a qual, contudo, apenas se concretiza e se manifesta por meio do comportamento efetivo dos indivíduos: “From a quantum perspective, the phenomena of world politics we can

actually see – individuals talking, shooting and so on – are local realizations of broader structures of social potentiality.” (WENDT: 2010a, 293). Logo, o comportamento serve como instância mediadora para a existência do estado: “In effect, objects like the state are continuously popping in and out of existence with the material behaviors through which they are instantiated.” (WENDT: 2010a, 293).

À primeira vista, considerações dessa ordem parecem legitimar a inferência de que o estado, assim como qualquer outro fato social, é apenas uma ficção útil, visto que tudo retorna ao indivíduo. Portanto, a dualidade partícula-onda não basta, por si só, para advogar a existência do estado. É preciso adicionar um elemento de coesão: a realidade virtual.

Na realidade virtual, os indivíduos interagem com um mundo fora de seus corpos, ainda que, de fato, não haja nenhum mundo fisicamente real lá fora. Mais ainda, os objetos de uma realidade virtual aparentam ter propriedades tridimensionais, como localização e extensão, e em certos casos mesmo propriedades físicas (VELMANS: 2009, 143). Velmans, entretanto, por uma questão de coerência151, propõe igualmente um uso da realidade virtual enquanto metáfora: “Virtual reality also provides a useful metaphor for understanding how the contents

150 O correspondente epistemológico da dualidade partícula-onda seria o binômio positivismo-

interpretativismo.

151 Pois se o mais específico (modelo holográfico de percepção) não é real, conforme Velmans propõe,

não haveria como o mais geral (realidade virtual e funcionamento da consciência) o ser, na medida em que aquele serve de base para este.

of consciousness relate to the entities, events and processes that they reflexively ‘model’.” (VELMANS: 2009, 297).

Assim, a defesa do estado enquanto realidade virtual não é tão fácil quanto parece, até porque os objetos virtuais produzidos artificialmente, como um holograma, são imagens definidas que podem inclusive ser visualizadas pelos seres humanos (o estado, conforme dito, não o pode).

O contra-argumento de Wendt aqui é bem claro: se o princípio holográfico é geral o bastante para incluir mesmo todo o universo – ponto este questionável, mas que o autor toma como verdadeiro, ou ao menos como uma premissa razoável –, então não parece ser o caso de considerar a capacidade dos indivíduos de efetivamente enxergarem uma imagem do estado (e dos demais fenômenos da política internacional), como uma condição indispensável para sua existência holográfica:

“What matters, rather, is that there should be a projection of information from ‘pixels’ in an

n-dimensional space to an n+1 dimension. In the case of the state the relevant pixels are individuals, who stand in a holographic relationship to each other by virtue of the fact that their language can only be used for communication if it is shared by more than one individual. What these monads project when they collapse the wave function of the state is an ‘Idea’ of the State, without which the state cannot be ‘seen’. When we look at individual behavior, therefore, we do not literally see the state, but neither do we see just an individual; what we see is the virtual state, as actualized in that moment and place.” (WENDT: 2010a, 294).

Daí a reformulação da citação clássica de W1, relativa ao estado quanto pessoa, que agora assume a forma “states are not people too” (WENDT: 2010a, 294), pois, seja o estado, seja o sistema internacional, ao mesmo tempo em que não possuem personalidade em termos clássicos (é sempre bom enfatizar, em W2, apenas os indivíduos figuram como pessoas), são dotados de uma realidade virtual que impede a aplicação de qualquer reducionismo, entendido em termos tradicionais.

Logo, o estado seria uma projeção holográfica composta a partir de três fatores (WENDT: 2010a, 294): (i) funções de onda que representam suas potencialidades em determinado contexto, constituídas linguisticamente; (ii) comportamentos materiais de indivíduos, geradores da atualização dessas potencialidades de uma forma específica, em detrimento das demais; (iii) “idéias” virtuais que permitem ao estado ser “visto” e posto em prática. A partir desses

postulados, é possível aprofundar algumas considerações sobre a ontologia da política internacional.

Ainda que a ciência social quântica não implique o retorno ao reducionismo, ou ao individualismo metodológico, é certo que sua nova ontologia demanda um resgate do papel dos indivíduos nas RI. De fato, seria necessário esforço inverso ao ocorrido na obra de ficção de Edwin Abbot escrita em 1884, Flatland, onde a personagem central acreditava viver em um mundo de duas dimensões, até descobrir a existência de uma terceira (e terminar encarcerado ao tentar divulgar suas ideias para seus concidadãos152) – de modo que, o mundo tridimensional das relações internacionais seria, na verdade, plano. Implicações haveria tanto para a questão das

unidades de análise quanto para a questão dos níveis de análise, a serem

considerados nas seções seguintes, respectivamente.

Por ora, é preciso voltar à Wendt I. Em STIP, a despeito do papel preponderante das ideias na política internacional, sua realidade é composta por um materialismo de fundo, que serve de base material sobre a qual uma superestrutura discursiva é erguida. Em Wendt II, o mundo físico é entendido como realização contingente de um domínio quântico subjacente (WENDT: 2010a, 294), recorrendo aqui o autor aos conceitos de ordem explicada e ordem implicada, do físico David Bohm.

Enquanto a ordem explicada corresponderia ao mundo clássico, fruto da conversão de potencialidade em realidade; a ordem implicada corresponderia justamente ao mundo quântico de potencialidades, a partir do qual aquela ordem emerge em função da decoerência: “Explicitly invoking holographic imagery, Bohm refers to the relation between the two as one of enfoldment, in which the whole is enfloded or implicated in each of its parts.” (WENDT: 2010a, 294).

Não interessa mais uma vez discorrer sobre os conceitos153. Importa notar como seria possível limitar, nas relações internacionais, a realidade física tão somente ao indivíduo – estado e demais coletividades são realidades virtuais,

152 A despeito do caráter ficcional, a obra transmite uma forte crítica ao modelo vitoriano de sociedade

na qual Abbot viveu, a qual escapa aos objetivos do estudo, por mais interessante que seja.

convém lembrar –, sem incorrer em uma limitação grosseira dos fatos sociais àquela unidade de análise.

Por mais paradoxal que possa parecer, a ontologia quântica proposta por Wendt, muito embora o teor individualista – pois apenas os indivíduos são realmente

reais – é também profunda e plenamente holista, tendo em conta o emaranhamento

quântico das subjetividades através da linguagem. Dito de outro modo, é preciso abandonar a verticalização típica de W1, na qual noções como rump materialism fazem sentido, e adotar um aporte de cunho horizontal, cuja descrição será oportunamente feita.

Basta ater-se, provisoriamente, à constatação de que a ontologia de W2 toma os indivíduos não apenas em seus aspectos físicos, mas também como sítios de consciência, cujas subjetividades inevitavelmente integram um todo. Partes de um todo, sim, porém de forma diversa daquela concebida classicamente, enquanto adição de termos separados. A subjetividade é parte em um sentido quântico, isto é, um local de concretização da ordem implicada, no qual esta se encontra envolvida:

“As such, ‘individuals’ relationship to the world is not one of passively observing reality ‘out there’, but a mirroring of that world and its potentialities, to which they are connected non- locally. While flat in its physical aspect, in short, this ontology is thoroughly holistic in its mental aspect. In saying that ‘states are nothing but people’, therefore, I mean to say also that those people are essentially ‘of the state’: subjects constituted in irreducibly relational terms by their co-participation in the wave function of the state.” (WENDT: 2010a, 295 e 296).