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Capítulo III – Sobre a relação entre as ciências naturais e as ciências sociais: do

3.2. Newtonianismo: principais características

A despeito do nome, o newtonianismo representa uma seleção, não raro simplificada, de princípios científico-filosóficos das teorias de Sir Isaac Newton e de seus antecessores: “Newtonian physics along with Cartesianism are thus seen as the two themes that form the ‘powerful conduits of modernist narrative’ informing the ‘cogito rationality’ of the seventeenth century and subsequent developments of modern philosophy of science.” (AKRIVOULIS: 2002, 6).

Não se pretende, portanto, analisar o pensamento de Newton per se, de maneira que referências diretas às suas obras serão realizadas na medida em que contribuam para o esclarecimento do termo em estudo.

163 Ao se tratar do positivismo sociológico, no subitem 3.4, será feita a diferenciação entre fisicalismo

Tanto a filosofia como a ciência, ao longo do século XVII, seguiram diretrizes de tendências cognitivas até então consideradas mais que opostas, incompatíveis: empirismo e racionalismo. Francis Bacon e René Descartes anunciaram uma nova era que se iniciava, regida pela certeza epistemológica, fundamentada na identidade humana autônoma, resultante da aliança entre ciência, razão e progresso.

Não obstante o notável empenho destas personagens, ainda vigorava um hiato entre práxis e teoria, entre experimentação sistemática e matematização analítica, cuja superação representava conditio sine qua non para a efetivação do caráter paradigmático que haveria de permear a cultura científica moderna.

Mediante uma combinação magistral de rigor indutivo e pensamento dedutivo, sir Isaac Newton operou a grande síntese ocidental do positivo com o

racional – anteriormente delineada por Galileu Galilei – unificando, enfim, sob uma

regra única toda a diversidade do mundo natural. Sua contribuição metodológica reside menos na proposição de algo inteiramente novo que no remanejamento do manancial intelectivo existente.

O hódos newtoniano não é exatamente o da pura dedução cartesiana; a resolução cognitiva deve necessariamente ser seguida da reconstrução lógica dos acontecimentos:

“Como na matemática, também na filosofia natural a investigação das coisas difíceis pelo método de análise deve sempre preceder o método da composição. Essa análise consiste em fazer experiências e observações, em tirar conclusões gerais deles por indução e em não admitir objeções contra as conclusões exceto aquelas que decorrem das experiências ou de algumas outras verdades.” (NEWTON: 2002a, 292).

A realidade empírica seria, portanto, regida por leis invioláveis, eternas e imutáveis, inscritas em todos os fenômenos naturais. Trata-se de um mundo homogêneo passível de ser decifrado em termos matemáticos pela via da experimentação.

Tal premissa acompanha todo desenvolvimento subsequente das teorias propostas por Newton, sejam elas relativas ao princípio de gravitação universal –

Gravidade ou peso é uma força que existe em um corpo e que o impulsiona a ir para baixo. Todavia, com o termo ‘ir para baixo’ não se entende aqui exclusivamente

o movimento em direção do centro da terra, mas também em direção a qualquer ponto ou região, ou mesmo a partir de qualquer ponto.” (NEWTON: 1987, 232) –, à concepção de espaço e tempo – “Absolute, true and mathematical time, of itself, and from its own nature flows equably without regarding to anything external. [...] Absolute space, in its own nature, without regarding to anything external, remains always similar and immovable.” (NEWTON: 2002b, 738) – ou à natureza corpuscular da matéria e suas respectivas leis do movimento, expressas da seguinte forma:

“Law I. Every body perseveres in its state of rest, or of uniform motion in a right line, unless it is compelled to change that state by forces impressed thereon. [...] Law II. The alteration of motion is ever proportional to the motive force impressed; and is made in the direction of the right line in which that force is impressed. [...] Law III. To every action there is always opposed an equal reaction: or the mutual actions of two bodies upon each other are always equal, and directed to contrary parts.” (NEWTON: 2002b, 743-744).

Como dito, importa aqui antes a forma como o pensamento de Newton se disseminou e foi assimilado pelas demais áreas cognitivas do que a pura avaliação lógica de suas proposições. Deste modo, podemos afirmar que o newtonianismo apresenta o mundo como um grande maquinário, matematicamente ordenado, concretamente material, causalmente determinado, um mundo ao mesmo tempo

dessacralizado e manejável mediante a apreensão de suas leis naturais.

Por certo, o mecanicismo constitui o principal legado do newtonianismo. Ao sujeitar o universo a causas mecânicas, torna-se possível, mediante regularidades observadas, prever o comportamento futuro dos fenômenos – e, quando transposto tal raciocínio ao campo das relações humanas, dar cabo à transformação instrumental do real. Antes de continuar, dois comentários merecem ser feitos, relativos ao próprio conceito de mecanicismo e ao espectro de utilização de premissas newtonianistas.

A noção de mecanicismo exposta se baseia nas teses centrais da doutrina antes que em suas particularidades. A ressalva se justifica na medida em que existem diferenças entre o mecanicismo proposto por Newton e o mecanicismo proposto por Descartes164, que se referem basicamente à fundamentação da matéria e à natureza do movimento.

164O esclarecimento se deve aos comentários do Professor Doutor Samuel Rodrigues, por ocasião do

Com relação ao primeiro ponto, Descartes caracteriza a matéria em sua essência considerando tão somente o fato de ser uma substância dotada de extensão – “[...] a natureza da matéria ou do corpo em geral não consiste em ser uma coisa dura, pesada ou colorida, ou que afecta os sentidos de qualquer outra maneira, mas que é apenas uma substância extensa em comprimento, altura e largura.” (DESCARTES: 1997, 60) –, enquanto Newton apresenta uma versão moderna do atomismo, tradição, na verdade, existente desde a antiguidade:

“[...] parece-me que no princípio Deus formou a matéria em partículas sólidas, maciças, duras, impenetráveis, móveis, de tais tamanhos e formas, e com tais outras propriedades, e em tal proporção em relação ao espaço, como as que conduziriam mais ao fim para o qual Ele as formou; e que essas partículas primitivas, sendo sólidas, são incomparavelmente mais duras do que quaisquer corpos porosos que delas se componham e mesmo tão duras a ponto de nunca se consumir ou partir-se em pedaços.” (NEWTON: 2002a, 290).

Com relação ao segundo ponto, Descartes concebe o movimento puramente em termos de ação por contato – “[...] o movimento é a translação de uma parte da matéria ou de um corpo da proximidade daqueles que lhe são imediatamente contíguos – e que consideramos em repouso – para a proximidade de outros.” (DESCARTES: 1997, 69-70) –, enquanto Newton aceita, de certo modo165, a

possibilidade de ação à distância quando, por exemplo, analisa o movimento dos planetas e o movimento de queda dos corpos.

Por sua vez, o newtonianismo afetou não apenas saberes, considerados sob o prisma teórico, mas também foi objeto de aplicação na própria política estatal. Ainda que a análise proposta não se concentre na última hipótese, o trecho a seguir merece citação, por ilustrar bem o respectivo argumento:

“Newtonian political language had broad appeal, and it was used by men of dramatically different political persuasions. Although its imagery attracted political leaders and theorists who shared a devotion to some of the unifying clichés of the period – harmony, order, balance, natural law, and a mechanistic universe – the very same individuals frequently argued about the practical applications of such flexible concepts. Above all, Newtonian imagery was used not only by people who were susceptible to visions of an automatic social balance but also by those for whom the cosmic metaphors underscored suspicions that society’s machinery could not be made automatic and that the best results of political or constitutional engineering would still require steady vigilance and even modification by watchful citizens and statesmen.” (STRINER: 1995, 584).

165 Na verdade, Newton mostrou relutância em aceitar que a gravidade poderia agir à distância sem

alguma espécie de transmissor interveniente (STAPP: 2011, 6). De qualquer modo, a ação da gravidade representa um divisor de águas entre as representações cartesiana e newtoniana do movimento.

Cabe agora verificar a aplicação ampla e, em certos casos, irrestrita que tais concepções adquiriram, para além do terreno das ciências naturais.