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Capítulo II – A viragem quântica: Wendt

2.7. Wendt II revisita Wendt I

Desde o marco inicial de sua virada quântica, Wendt deixou clara sua autocrítica a STIP. Resumidamente, a despeito dos méritos – mencionados ao final do capítulo I – sua obra central teria pecado, em termos mais abrangentes, por se ater aos moldes de cientificidade oriundos da física clássica (mas não por sua insistência positivista em fazer ciência)161. Em termos mais específicos, o principal problema de STIP teria sido o dualismo cartesiano, implícito e explícito em praticamente toda sua argumentação, constatação esta que o autor tomou ciência, em grande parte, pelas críticas levantadas (WENDT: 2006, 182).

157 Cf. Capítulo III. Nas palavras de Wendt: “[…] before the act of measurement the observer and

observed are non-locally entangled – in the social context, by shared meanings – and as such parts of a larger whole. The ‘cut’ of measurement destroys this whole, and in so doing creates the distinction between subject and object.” (WENDT: 2006: 216 e 217).

158 Que nega a objetividade na acepção positivista, mas não a objetividade, per se (WENDT: 2006:

217).

159 O referido modelo de observação participante possuiria uma forte dimensão normativa, em função

das consequências éticas impostas ao pesquisador, com possíveis ganhos em termos de reflexividade: “If IR scholars are irreducibly participants in the super-organism that is world politics, ‘performing’ or instantiating it holographically in our work, then we have ethical responsibilities to the other subjects of those politics in measuring them, responsibilities which we do not necessarily have if facts and values can be clearly separated as in the classical worldview. But with those responsibilities comes a capacity for collective self-consciousness that is otherwise largely missing in day-today international life, and as such is a basis for reflexivity and progressive change.” (WENDT: 2006, 217).

160 “[...] the quantum revolution in general points toward a process ontology, in which events (or

practices?) are more fundamental than – and irreducible to – either the agents or the structures from which they are usually thought to ensue.” (WENDT: 2010a, 304).

161 Nesse sentido, Wendt admite como equívoco apenas a utilização de um fundamento físico

A seu ver, o cartesianismo se basearia em quatro premissas: (i) distinção radical entre sujeito e objeto; (ii) possibilidade exclusiva de aquisição de conhecimento sobre a realidade externa através do método científico; (iii) separação rigorosa entre fatos e valores como garantia do status científico de uma investigação; (iv) res cogitans (mente) e res extensa (matéria) concebidas como substâncias irredutíveis (WENDT: 2006, 188).

Assim, STIP seria uma forma de ciência cartesiana em “31/

2” desses quatro

aspectos: dicotomia sujeito-objeto, compromisso com o método científico tradicional, distinção entre fatos e valores. Porém, com relação à relação entre mente e matéria, se é verdade que Wendt assume um dualismo tácito, igualmente o é que, na linha interpretativista, o autor postulou um holismo metodológico, no qual a mente também se compõe a partir de fatos sociais, e não apenas de aspectos individuais. Daí a parcela (ainda que pequena) anticartesiana de seu livro. Acrescente-se que o cartesianismo subjacente à STIP não retira o mérito de W1, no sentido de quebrar um consenso enraizado no debate acadêmico à sua época, relativo à aceitação do poder e do interesse como produtos exclusivos de forças materiais brutas.

Feitas estas considerações, cabe analisar como Wendt responde aos principais questionamentos tecidos contra STIP, a partir da perspectiva de uma ciência social quântica. Mantendo o paralelismo, apresentaremos seus comentários com base nos quatro núcleos indicados no capítulo I.

Epistemologia

As críticas epistemológicas se resumem a considerações decorrentes da adoção do realismo científico por Wendt e de sua incompatibilidade com o construtivismo, em especial: (i) a forma incoerente, segundo Kratochwil, como Wendt aborda o tema da verdade na pesquisa científica; (ii) o fato de que, no âmbito das ciências sociais, teorias podem ser exitosas ainda quando não digam respeito a algo real, diversamente, pois, do que é aventado pelo realismo.

Quanto ao primeiro ponto, Wendt discorda de Kratochwil e afirma que a interpretação feita por este de STIP é ao menos superficial. Assim, o realismo científico apenas rejeita a versão fundacionalista forte, para a qual os cientistas

poderiam simplesmente ler a verdade a partir da realidade (WENDT: 2006, 215). Isso não significa que a verdade seja irrelevante, mas apenas que, por ser a observação nas ciências sociais carregada de teoria, o discurso possui um papel importante na definição da verdade, a qual possui sempre a realidade como fonte de restrição. Interessante notar que Wendt rebate essa crítica sem recorrer ao marco W2. Quanto ao segundo ponto, o autor reconhece que teorias podem ter sucesso ainda que não se refiram corretamente à realidade. O problema seria que a realidade, em certos casos, resiste às teorias, “[...] and by probing this resistance scientists can bring the deep structure of reality more clearly into view. It would be hard otherwise

to explain the quantum revolution. [grifos nossos]” (WENDT: 2006, 215).

Com isso, Wendt deixa claro que sua aposta não é apenas na hipótese da consciência quântica, mas também no fechamento causal do mundo físico. Nesse contexto, o autor dá indícios que sua guinada quântica apenas pode ter significado a partir da aceitação do CCP. No último capítulo, defenderemos entendimento diverso, sugerindo a possibilidade de se considerar a QCH como uma situação contrafática, sem que isso, por si só, invalide eventual contribuição de algumas das proposições desenvolvidas por W2.

Mais importante que as respostas a Kratochwil, são as consequências epistemológicas de uma ciência social quântica, especialmente no que se refere ao debate entre positivistas e interpretativistas. Explicação e entendimento são concebidos, quanticamente, como complementares. Positivistas preocupam-se com o aspecto partícula da vida social, enquanto interpretativistas preocupam-se com o aspecto onda. Todavia, isoladamente, ambos não são capazes de prover uma plena compreensão dos fatos sociais, razão pela qual seria necessária uma Paz de Westfália

epistemológica, reconhecendo, tanto positivistas quanto interpretativistas, o caráter parcial do conhecimento produzido por cada uma das correntes (WENDT: 2006, 216).

Materialismo/idealismo

Wendt foi questionado, a este respeito, seja ao propor, supostamente, uma falsa distinção, seja ao supervalorizar o papel das ideias. De fato, a distinção seria falsa, mas não pelos motivos apontados por Behnke, e sim porque mente e matéria,

conforme a metafísica pampsiquista adotada por W2, constituem aspectos diversos de um substrato comum. Reside no monismo neutro a razão principal da

inviabilidade do referido dualismo, e não em uma contradição de ordem lógica,

como pretende Behnke.

Sobre a supervalorização das ideias, Wendt discorda de Copeland ainda que admitidas as premissas de W1. Ocorre que, a partir de uma perspectiva quântica, a crítica de Copeland torna-se simplesmente despropositada:

“Instead of distinct substances that somehow interact, mind and matter are now complementary aspects of an underlying reality that is neither. When thinking about world politics from the standpoint of ideas we are in the realm of wave descriptions, and from a material standpoint in the realm of particle descriptions. Each is essential in IR scholarship, since human beings live in both worlds simultaneously. The relationship between the two is therefore not one of interaction (dualism) or reduction (materialism), but correlation. From this perspective it makes no more sense to compare the relative importance of ideas and material conditions than to compare that of waves and particles.” (WENDT: 2006, 214).

Agência/estrutura

O ataque aqui se deu por três flancos: (i) falácia da prioridade ontológica do estado (fundada na noção de estado essencial); (ii) equivalência entre agente e estrutura decorrente da mútua constituição; (iii) corroboração da visão neorrealista da anarquia devido a incertezas quanto ao futuro (supostamente incrementadas pelo fato do construtivismo conceber identidades e interesses como passíveis de mutações).

Uma vez que tanto o estado como o sistema de estados passam a ser projeções holográficas, a ideia de precedência ontológica perde boa parte de sua razão de ser. Conforme abordado antes, a relação entre partes e todo não se dá mais de forma clássica, o que implica a necessidade de revisão mesmo do conceito de emergência. E, principalmente, o abandono dos níveis de análise, assim como de sua correspondente ontologia verticalizada, legitima a crítica em questão, ainda que por outra via.

Por sua vez, não é possível afirmar a equivalência entre agente e estrutura em uma ciência social quântica, ao menos não nos termos de Suganami. O principal problema é a mútua constituição, que pressupõe partes separadas interagindo para construir um todo. No lugar da mutualidade, agora entra em cena o emaranhamento quântico propiciado pela linguagem. Ser inimigo e fazer parte de uma cultura

hobbesiana são duas descrições da mesma coisa, como afirma Suganami, mas por motivos holográficos, onde as partes espelham o todo, tal como na relação entre ordem explicada e ordem implicada:

“Insofar as enmity is entangled with a larger Hobbesian culture, then at the level of the collective unconscious they form a single undifferentiated system. What to do then with the fact that states experience themselves as differentiated agents that ‘inter’-act? That happens at the level of consciousness, which I have argued is distributed. Squaring this circle is what the concept of ‘intra’-action can capture – that the differential experiences of parts emerge only from ‘cuts’ in a preexisting whole.” (WENDT: 2006, 210)

Finalmente, sobre o problema das incertezas quanto ao porvir, Wendt reconhece que uma leitura superficial de sua guinada quântica poderia inclusive gerar a falsa conclusão de que Copeland está certo, pois, para a teoria quântica, a incerteza seria tanto epistemológica quanto ontológica, de modo que o futuro – e o presente também – estaria radicalmente aberto. Contudo, Wendt sustenta que a incerteza quanto às intenções alheias não implica a necessidade dos estados se preocuparem continuamente com ameaças materiais em potencial, pois mesmo em uma ciência social quântica, as culturas de anarquia sobrevivem, estruturando consideravelmente as ações dos estados:

“Even as wave functions cultures make some outcomes more likely than others. Knowing you are in a Hobbesian culture leads to one set of plausible inferences about others’ intentions, in a Kantian culture to quite another – and indeed, it is only by participating in such cultures that states could know their own intentions, which only become determinate through ongoing cuts in their web of entanglement.” (WENDT: 2006, 212).

Daí a epígrafe deste capítulo, no sentido de que a anarquia continua a ser

what states make of it, não obstante a natureza quântica da política internacional.

Estado como ator

Não custa relembrar os óbices levantados sobre o assunto: (i) personalidade do estado (ente corporativo dotado de intencionalidade), como nada mais que ficção útil; (ii) falta de espaço em STIP para o tema da reflexividade.

Quanto à primeira crítica, não é o caso de repetir o exposto neste capítulo. Wendt reconhece a inadequação do tratamento conferido à agência estatal em STIP. Sua versão quântica, mais elaborada, ainda que tome os indivíduos como a única

realidade real, considera o estado como uma realidade virtual, possuidor de uma função de onda nos termos supramencionados.

Quanto à segunda crítica, Wendt aponta que uma ciência social quântica pode gerar ganhos exponenciais em termos de reflexividade, na medida em que, por meio da publicidade e da educação, seria possível fazer com que indivíduos que não fazem parte do sistema terminem por se tornar mônadas passivas ou, eventualmente, que mônadas em modo passivo passem para o modo ativo. E um aumento da reflexividade dos pixels certamente gerará algum incremento no holograma estatal do qual fazem parte, ainda que não como mero somatório, o que ocorreria apenas a partir de uma cosmovisão clássica.

* * *

O presente capítulo procurou apresentar os principais temas de Wendt II, partindo de suas premissas, comumente não tratadas no campo das relações internacionais, ou tratadas incidentalmente na maioria dos casos, para, em seguida, investigar suas consequências no que se refere à reformulação tanto das ciências sociais, em um plano metateórico, quanto de categorias (agência, estrutura, processo) e conceitos (estado, sistema internacional) inerentes às RI, ainda em um plano consideravelmente abstrato, porém com incursões pontuais sobre a política internacional.

Ao longo do texto, deixamos evidente uma ou outra crítica ao autor, quando não correções necessárias, em função da forma como Wendt apresentou suas ideias. Retomaremos a análise de sua guinada quântica no capítulo final. Agora, cumpre oferecer um breve cenário sobre a relação entre ciências naturais e diversos ramos das ciências sociais, iniciando com o newtonianismo, porém enfatizando o desenvolvimento da física quântica e a extrapolação de seus conceitos, base esta indispensável para o esforço que se pretende realizar em seguida.

Capítulo III – Sobre a relação entre as ciências naturais e as ciências