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Capítulo II – A viragem quântica: Wendt

2.5. Elementos para uma ciência social quântica

2.5.1. O modelo quântico de indivíduo

Homo economicus, homo reciprocans, homo sociologicus, são alguns dos

modelos de indivíduo produzidos pela teoria econômica e pela sociologia. Muito embora diversas em suas particularidades – homo reciprocans, por exemplo, foi concebido para se contrapor à noção de sujeito racional guiado exclusivamente pelo autointeresse, típica do homo economicus – tais concepções, na medida em que condizem com o fechamento causal do mundo físico em termos clássicos, compartilham premissas comuns (WENDT: 2006, 197):

(i) Seres humanos são, em última instância, objetos materiais.

(ii) Os sujeitos possuem propriedades determinadas, gerando previsibilidade. (iii) O comportamento humano é causado por processos situados no cérebro. (iv) Os modelos de indivíduo são incompatíveis com o livre-arbítrio134.

Uma abordagem quântica poria por terra cada um desses postulados. De

início, mediante a ênfase na função exercida pela consciência no comportamento

humano (ou, para que não haja dúvidas, no comportamento de um sistema quântico).

De acordo com Wendt, a partir do modelo Penrose-Hameroff, o colapso geraria não

134 Em seu último livro, ainda em elaboração, Wendt amplia o rol de premissas clássicas que seriam

afetadas por uma ciência social quântica: “1) the properties and states of human beings, including our mental states like desires and beliefs, are set by our micro-physical constitution; 2) those properties and states are always physically well-defined even if unknown to us consciously; 3) consciousness is epiphenomenal and as such need not be considered in explanations of human behavior; 4) the mind is like a computer; 5) reasons are causes in the same sense that physical causes are; 6) there is no action at a distance in social life; 7) macro-social phenomena like groups and institutions can be reduced to the properties and interactions of independently existing individuals; 8) time flows from past to future only; 9) time and space are objective background conditions for human action; and 10) social scientists can observe social life without necessarily interfering with it.” (WENDT: 2010b, 31 e 32). Porém, o autor não se refere aqui tão somente às premissas associadas ao modelo clássico de indivíduo, mas também às ciências sociais como um todo. Outro dado interessante, na mesma linha dos comentários tecidos no subitem 2.2 sobre os postulados centrais da física clássica, é que Wendt reconhece que nem todos os cientistas sociais obedecem pontualmente cada uma dessas premissas. As principais exceções, novamente, viriam do interpretativismo, especialmente de autoras feministas e pós-modernistas, entretanto, sem uma justificativa quântica correspondente.

somente a consciência em um determinado instante, mas, principalmente, a base para nossa experiência, qual seja, o fluxo de consciência, decorrente este de reduções objetivas sucessivas (WENDT: 2006, 197).

Nesse sentido, as funções de onda de um indivíduo corresponderiam ao inconsciente, entendido não na acepção freudiana, mas em sentido mais amplo, enquanto conhecimento de fundo que uma pessoa possui sobre si mesma e sobre seu meio, do qual ela não estaria ciente durante os estados de consciência. Para a teoria computacional predominante nas ciências cognitivas, seria no nível inconsciente que os seres humanos realizariam a maior parte de seus raciocínios. Ocorre que, conforme a QCH, a computação efetuada no inconsciente é de ordem quântica, contendo, pois, possibilidades consideravelmente superiores às previstas pela computação tradicional (WENDT: 2006, 198).

Em seguida, com relação à identidade, o conhecimento que temos de nós

mesmos não pode ser mais visto como detentor de propriedades específicas em qualquer momento, uma vez que tais características apenas se tornam determinadas quando interagimos com o mundo, resultando no colapso de nossas funções de onda: “The desires and beliefs which the rationalist model of man sees as causing behavior actually do not exist until behavior takes place – before that point the Self is a superposition of multiple and mutually incompatible desires and beliefs.” (WENDT: 2006, 198).

Obviamente, isto não significa que as identidades estão sempre em aberto, pois, caso assim fosse, perderiam sua razão de ser. Ao indicarem amplitudes de probabilidade, as funções de onda fazem com que alguns comportamentos sejam mais prováveis que os outros, provendo uma forma de contenção ao aumento ad

infinitum do espectro de possibilidades relativo às identidades. De qualquer modo, as

identidades só se realizam e atualizam por meio da redução do vetor de estado. Wendt exemplifica esse fato por meio do discurso, destacando que uma pessoa não sabe exatamente o que dirá até que efetivamente o faça e, assim, ela só define quem irá ser no momento em que efetivamente fala (WENDT: 2006, 198).

Tais considerações aproximariam as proposições de Wendt de modelos

qualquer precedência ontológica do agente em relação à agência. Este é um dos pontos nos quais o autor crê que sua ciência social quântica muito teria a contribuir para algumas abordagens pós-modernas, tendo em conta que a mesma fornece argumentos que terminam por ratificá-las cientificamente, algo que não seria possível em moldes clássicos:

“Since quantum theory is often seen as implying a process as opposed to substance ontology, it provides a natural basis for such a view. Of course, it might be doubted whether performativity theory needs a quantum basis, having been developed without it. However, recalling my naturalist assumption that social theories should be constrained by what physics tells us about the world, it is unclear how else performativity theory could be justified. If consciousness is not a quantum phenomenon, then agents are nothing but classical brains, and brains have determinate properties first, before they cause behavior.” (WENDT: 2006, 198).

Ademais, razões não são causas das ações; sua função é de natureza

constitutiva. Trata-se de uma inferência decorrente do fato de que crenças e desejos apenas adquirem definição clara na consciência – leia-se colapso da função de onda. Como o colapso é espontâneo e imediato, ele não pode “causar” o comportamento, na acepção usual do termo. Segundo o autor, o colapso provê um fluxo contínuo de dois efeitos constitutivos e, portanto, não causais: “[...] phenomenal effects of determinate desires and beliefs (reasons), and physical effects of bodily states (behavior)” (WENDT: 2006, 199). Não obstante irredutíveis, tais efeitos representariam aspectos correlatos de uma mesma realidade.

Além de constitutivas, as razões seriam teleológicas135, de modo que o próprio estado-fim de um sistema contribuiria para a explicação de como o mesmo é alcançado. Assim como ocorrera em seu texto de 2003, Wendt recorda que a teleologia configura um anátema para o mainstream científico-social contemporâneo, ainda vinculado ao CCP clássico. Porém, a principal contribuição da teleologia aqui decorreria do caminho por ela aberto, no sentido de compreender a ação humana como fundamentalmente antecipatória, não na acepção usual de que agimos baseados em expectativas sobre o porvir, mas em uma acepção extrema: “[...] in intentional action, we literally ‘feel’ the future through a kind of ‘temporal non-locality’.” (WENDT: 2006, 1999).

135 Para uma formulação consistente acerca da possibilidade de explicar as ações humanas a partir das

razões dos agentes – teleologicamente e sem recorrer a qualquer mecanismo causal –, cf. SCHUELER: 2005, 56-87.

Por fim, indivíduos quânticos são dotados de livre-arbítrio. Enquanto o determinismo da cosmovisão clássica faz do livre-arbítrio uma espécie de anomalia, senão um estorvo científico-filosófico, postura esta também refletida nas ciências sociais, o não determinismo inerente à mecânica quântica ao menos propicia terreno fértil para o desenvolvimento do conceito. Na verdade, a indeterminação seria uma condição necessária, mas não suficiente para a defesa do livre-arbítrio. Assim, quando incluído o pampsiquismo na equação, obtém-se uma solução mais promissora:

“Indeterminacy describes the situation facing an objective observer: we on the outside of a wave function cannot predict its collapse. What about someone on the ‘inside’? If the quantum consciousness hypothesis is true, then action could appear nondeterministic from the outside and yet freely willed from the inside. Novelty would then be an essential feature of human action, and perhaps so of society.” (WENDT: 2006, 199).