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3.3 Sobre o processo funcional atenção

3.3.1 A natureza social da atenção

Segundo Luria (1981), os estudos sobre a atenção, por sua importância nas explicações acerca do comportamento, ocuparam amplo espaço na história da psicologia, tangenciando concepções ora biologizantes, ora psicologizantes, que visavam desvelar os mecanismos que subsidiam a voluntariedade desse processo. Esse autor destacou que coube a Vigotski o grande mérito de solucionar esse problema – um dos maiores desafios presentes nos estudos sobre atenção levados a cabo pela psicologia tradicional – ao fornecer a “chave científica” para a compreensão das formas complexas de atenção, isto é, ao identificar suas raízes sociais.

Vygotski (1996) demonstrou que a atenção responde a um complexo processo de desenvolvimento, constituindo-se como traço imanente do desenvolvimento cultural da humanidade, ultrapassando estágios primitivos em direção a estágios altamente organizados e complexos. A luta pela vida, as formas de relação entre o homem e a natureza consubstanciadas sob a forma de trabalho, impuseram-se como fatores determinantes do desenvolvimento psíquico e, imperiosamente, exigiram transformações nas expressões naturais da atenção.

Se os processos puramente orgânicos asseguram reações atencionais primitivas, elementares e, nesse sentido, elas representam estratégias de adaptação do organismo ao meio,

a vida em sociedade exigiu reações atencionais dirigidas, voluntárias, tornando-as “instrumentos” imprescindíveis à construção da cultura e, consequentemente, do próprio ser humano. Do ponto de vista filogenético, o desenvolvimento da atenção é causa e efeito do trabalho.

Todavia, ciente da inexistência de um paralelismo entre os planos filogenético e ontogenético e, referindo-se às pesquisas sobre atenção, Vygotski (1996, p. 139) alertou que: “[...] devemos encarar seu estudo como o de um produto do desenvolvimento cultural da criança, devemos considerá-la como um modo de adaptação à vida social superior [...]”. Optamos por essa brevíssima explanação acerca da natureza social da atenção antes mesmo de apresentar seus aspectos constitutivos e características gerais, tendo em vista dirimir, de imediato, interpretações sobre o desenvolvimento da atenção na direção que tem se revelado hegemônica na atualidade, qual seja, que subjuga o referido processo a mecanismos estritamente cerebrais e se limita a interpretá-lo na centralidade intrapsíquica. Consequentemente, tal entendimento corrobora a medicalização dos indivíduos, sobretudo das crianças, quando suas reações atencionais fogem aos padrões esperados.

Tecidas essas considerações, avançamos, primeiramente, em direção à definição do processo funcional em pauta. A atenção é uma das formas pelas quais a percepção se torna consciente, compreendendo, pois, a seleção de dados estímulos, a inibição de seus concorrentes e a retenção da imagem selecionada na consciência. Essa função, ao elevar o nível de atividade sensorial, cognitiva e motora – isto é, por sua participação em outras funções, a exemplo do pensamento, da memória, da imaginação, afetos, dentre outras –, abre as possibilidades para o comportamento orientado por fins específicos. Ou seja, orienta programas seletivos de ação ao destacar racionalmente dadas propriedades percebidas e abstrair outras. Nas palavras de Luria (1981, p. 223):

O caráter direcional e a seletividade dos processos mentais, base sobre a qual se organizam, geralmente são chamados de atenção em psicologia. Com esse termo designamos o fator responsável pela escolha dos elementos essenciais para a atividade mental, ou o processo que mantém uma severa vigilância sobre o curso preciso e organizado da atividade mental (grifo do autor).

Selecionando aspectos básicos, imprescindíveis a determinados comportamentos, a atenção institui a dinâmica figura/fundo, isto é, um processo dinâmico em que dados estímulos emergem como dominantes (figuras) em relação aos demais simultaneamente presentes, que permanecem retidos na consciência de forma secundária (fundo). A dinâmica

figura/fundo constitui o campo perceptual do qual emerge o comportamento e pelo qual se orienta.

O campo perceptual, por sua vez, não se reduz à percepção sensorial imediata, constituindo-se tanto por fatores objetivos, exógenos, quanto por fatores intrapsíquicos, subjetivos, que mobilizam a consciência em um dado momento. A eleição da figura sobre o fundo corresponde à instituição do foco da atenção. Essa dinâmica evidencia, portanto, o alto grau de condicionabilidade entre atenção e percepção.

Dirigindo-se sempre para o foco, representado pelas excitações que se destacam em relação ao campo, cuja estimulação se expressa de modo mais difuso e mais fluido, a atenção condiciona qualitativamente as percepções, posto que aquelas contidas no alvo serão claras e precisas enquanto as percepções do fundo, vagas e imprecisas. A concentração no alvo é um dos mais importantes critérios na análise do processo atencional.

Smirnov et al. (1960, p. 177) afirmam que a atenção atende à “lei da indução negativa”, segundo a qual a excitação concentrada em dadas áreas cerebrais se faz acompanhada de uma inibição simultânea das demais áreas. O foco atencional resulta, por conseguinte, de uma excitabilidade específica que aumenta de modo localizado o tônus cortical. Essas são, grosso modo, as bases fisiológicas da dinâmica figura/fundo e, por conseguinte, da atenção primária.

Ainda segundo os autores supracitados, o foco de excitação é temporal, não permanece por muito tempo em um mesmo lugar do córtex. Tal fato decorre, fundamentalmente, de duas razões: por um lado, qualquer estimulação continuamente repetida conduz à saciedade, inibindo sua continuidade. Por outro, a própria organização do campo perceptual induz relações entre o foco e as regiões circunvizinhas, em um processo que altera a excitabilidade cortical e que visa, inclusive, à ampliação do alvo.

Considerando que todo foco é limitativo, ou seja, destaca apenas uma parcela da realidade perceptual, sua ampliação se torna, inclusive, necessária à qualidade da atenção. Portanto, a atenção é um processo dinâmico e altamente complexo que pressupõe contínuos deslocamentos, ademais, pelos próprios limites de se apreender da realidade, exterior e/ou interior – muita coisa ao mesmíssimo tempo. Tais deslocamentos, por sua vez, são condicionados pela atividade em curso, em relação à qual se definem os “níveis de atenção”. Posto que a atenção é uma condição requerida à realização exitosa da atividade, sua principal característica consiste no esclarecimento consciente de um todo significativo apreendido da realidade na qual a atividade ocorre. Contudo, pelo dinamismo que lhe é próprio, ela pode voltar-se para um único objeto, estar difusamente distribuída no campo

perceptual, sem que predomine um foco específico, ou ainda distribuir-se entre um número relativo de alvos. Disso resulta as suas principais propriedades, expressas nos distintos níveis de atenção.

Entre essas propriedades, Smirnov et al. (1960, p. 185) destacam: sua concentração, intensidade e distribuição. A concentração da atenção, isto é, a sua tenacidade, resulta da seleção limitada de estímulos aos quais se dirige, em uma relação de dependência inversa entre a quantidade de estímulos e a qualidade da atenção. Quanto menor o círculo de objetos, maior será a concentração e sua intensidade. Não obstante, lembrando que a concentração em um foco é temporal, quanto maiores as relações simultâneas estabelecidas entre eles, maiores serão as possibilidades de captação de um todo ampliado e integrado, ou seja, maior a eficiência da atenção pela expansão da figura sobre o fundo, e decorrente ampliação do volume atencional.

A intensidade da atenção resulta da delimitação precisa do foco, uma vez que dela advém a possibilidade de direção a dados estímulos em detrimento de outros, que são, então, abstraídos. A concentração e a intensidade têm implicações diretas no volume da atenção, ou seja, na quantidade de objetos apreendidos simultaneamente com nitidez, culminando, segundo Luria (1991b, p. 27), na relação entre o “campo de atenção nítida” e o “campo de atenção difusa”, entre os quais a atenção se distribui.

A distribuição corresponde, então, à própria fluidez da atenção, pela qual os focos se substituem rapidamente, transferindo a centralidade de dados estímulos para outros. Uma vez que, quanto maior o fracionamento, maior a perda de qualidade da atenção, a distribuição frequentemente corrobora para a superficialidade atencional. Entretanto, na dependência da organização e do agrupamento dos estímulos, dos nexos cognitivos estabelecidos entre eles, a distribuição também poderá fomentar a atenção dirigida com nitidez para um maior número de material, operando positivamente em sua qualidade.

Portanto, a organização do campo perceptual facilita a captação integradora sem a necessidade de atenção pontual a cada uma de suas partes isoladamente, podendo aumentar a sua eficiência. Destarte, concentração, distribuição e amplitude se interpenetram, mas nenhum desses mecanismos pode ser substituído entre si, dado que nos permite concluir: atentar é construir conexões simultâneas entre focos.

Também tomando como referências as características descritas, Ballone (2010, p. 4) afirma a importância das correlações existentes entre a capacidade de concentração no foco, ou, orientação tenaz em uma determinada direção com o mecanismo de vigilância, isto é, com a possibilidade de desviar a atenção para um novo objeto, especialmente advindo do exterior.

Essas qualidades, tenacidade e vigilância, tendem a se comportar de maneira antagônica e se expressam no fenômeno da distração, que é representativo de déficits no trânsito entre elas, posto que a hipertenacidade induzirá à hipovigilância e vice-versa. O autor alerta, portanto, para os equívocos presentes na identificação da “boa atenção” com a tenacidade em detrimento da vigilância. A alternância entre esses mecanismos é condição para a apreensão precisa da realidade e igualmente para a alternância entre as ações realizadas pelo indivíduo. Para tanto, a atenção deve ter a fluidez necessária para colocar rapidamente em foco, também, fatos novos e, sobretudo, inesperados.

Diante do exposto, verifica-se que a atenção mantém uma relação de dependência bastante estreita com as propriedades externas dos estímulos aos quais responde, porém, seu desenvolvimento coincide exatamente com a complexificação da relação entre estímulos externos e internos e, consequentemente com as mudanças dos fatores que a mobilizam. Luria (1991b, p. 2), referindo-se a essa questão, distingue dois grupos de fatores:

[...] Situam-se no primeiro grupo os fatores que caracterizam a estrutura dos

estímulos externos que chegam ao homem (ou a estrutura do campo

exterior), situando no segundo grupo os fatores referentes à atividade do

próprio sujeito (estrutura do campo interno) (grifo do autor).

No primeiro grupo, a atenção é mobilizada por atributos de dimensões perceptuais do campo exterior e nele se estabelecem as mais estreitas alianças entre percepção e atenção. Entre os fatores pertencentes a esse grupo destacam-se: a intensidade, o contraste, a alternância, a novidade, a incongruência, a repetição e o movimento do estímulo, que, em última instância, ao reconfigurarem o respectivo campo se destacam como alvo, determinando a direção da atenção. Todos esses princípios são recorrentemente explorados pelas campanhas publicitárias, cujos resultados são sobejamente conhecidos.

Diferentemente, o segundo grupo congrega fatores atinentes ao próprio sujeito e à sua atividade. Se no primeiro grupo a força da estimulação resulta de características das informações advindas do meio exterior, de aspectos exógenos, no segundo, condiciona-se pelos estados internos, por aspectos endógenos. As necessidades – de ordem biológica ou social, os interesses, os sentimentos e, sobretudo, os motivos humanos – destacam-se dentre esses fatores.

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