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As sensações e a estrutura da atividade

3.1 Sobre o processo funcional sensação

3.1.2 As sensações e a estrutura da atividade

A formação dos órgãos dos sentidos condiciona-se diretamente à exposição dos estímulos ambientais, de modo que a qualidade desse desenvolvimento não resulta apenas de sua base fisiológica, mas, sobretudo, da cultura sensorial no qual ocorre. Essa condicionabilidade verifica-se tanto no plano filogenético quanto ontogenético. Os analisadores, ao operarem como “canais” de acesso do mundo na consciência, por si mesmos, pouco podem assegurar ao organismo. Sob privação de estímulos, sobretudo exógenos, o organismo substitui o estado de vigília pelo adormecimento, pela letargia, resultando em um déficit global da tonicidade cortical necessária a qualquer atividade.

Segundo Leontiev (1978a, p.19-20), filogeneticamente, a resposta específica de cada órgão dos sentidos aos estímulos advém das repetidas relações que estabeleceram entre si por exigência das atividades que vincularam o homem ao mundo. O desenvolvimento histórico conduziu o surgimento de diferentes tipos de estímulos bem como a necessidade de sua discriminação e, nesse processo, a atividade prática, em especial o trabalho, desempenhou um papel decisivo. Consequentemente, a própria exigência de preservação da vida que, progressivamente, assumiu a forma de trabalho determinou o desenvolvimento das sensações. Tomemos como exemplo o alto grau de refinamento sensorial encontrado nos degustadores que, pela natureza da atividade realizada, adquirem alto aperfeiçoamento das sensações gustativas e olfativas.

Luria (1991a, p. 7) também considerou que mesmo em termos fisiológicos as sensações possuem caráter ativo e seletivo, integrando, inclusive, componentes motores à sua composição. Ou seja, dada sensação comporta em si um tipo de movimento, manifesto sob a forma de reações vegetativas, a exemplo do reflexo cutâneo-galvânico da pele, ou em forma de reações musculares tais como reações motoras do braço, tensão nos nervos do pescoço, movimento dos olhos, dentre outros. Essa unidade primária entre reações sensoriais e reações motoras adquire, por sua vez, outras formas, dando margem à apresentação da sensomotricidade como um todo fisiológico único.

A unidade sensomotora foi objeto de atenção por parte de Vygotski (1997, p. 73) no tratamento que dispensou ao caráter sistêmico do psiquismo, analisando-a, fundamentalmente, do ponto de vista de sua formação e desintegração. A questão levantada por esse autor

apontava na direção da natureza da referida unidade e os efeitos exercidos sobre ele pela participação de outras funções.

Primeiramente, recorreu às conclusões experimentais de Köhler com primatas, segundo as quais a sensomotricidade como um todo se confirma inclusive, na resolução de problemas por parte dos animais, que, todavia, não ultrapassam o âmbito da sensorialidade. Em face desses estudos, Vigotski levantou duas questões – a primeira, afirmativa, e a segunda, negativa, em relação às referidas constatações experimentais. Ele partiu do pressuposto que a unidade sensomotora se confirma de fato, desde que o processo seja analisado em sujeitos animais, no estágio inicial de vida da criança e em adultos sob forte impacto emocional ou transtornos psicopatológicos. Destarte, se é fato que a motricidade constitui-se como uma extensão dinâmica da estrutura do campo sensorial, tal fato não se aplica como parâmetro de análise ao longo de todo o percurso do desenvolvimento humano. Como produto das transformações promovidas pelo desenvolvimento, as conexões entre sensorialidade e motricidade se tornam altamente complexas e, nesse processo, a conexão absoluta é substituída por uma conexão relativa. Vigotski afirmou como um dos produtos do desenvolvimento psíquico exatamente a “destruição” da conexão absoluta, quando então os processos envolvidos conquistam um funcionamento próprio, especializado e, consequentemente, passíveis de independência.

Para esse autor, a maturação orgânica dos processos psicofísicos envolvidos e a experiência social, promovendo o estabelecimento da “rede interfuncional”, com especial destaque ao desenvolvimento da linguagem e do pensamento, demonstram que a característica central dos processos sensoriais e motores não reside na preservação de sua constituição inicial, mas em sua transformação, isto é, na formação de: “[...] novas conexões, novas relações que se estabelecem entre motricidade e as demais esferas da personalidade, entre as demais funções” (VYGOTSKI, 1997, p. 75).

Portanto, a conexão direta, própria ao estágio inicial do desenvolvimento, encontra-se a caminho de sua “destruição revolucionária”, sem a qual o novo não se institui. Apenas a dissolução da sensomotricidade absoluta possibilitará, por exemplo, a superação do pensamento empírico, subjugado à captação sensorial imediata do objeto, em direção ao pensamento por conceitos, cuja lógica interna demanda uma relação indireta, isto é, abstrata e mediada, com o objeto captado sensorialmente. Da mesma forma, apenas essa dissolução tornará possível o autocontrole da conduta.

Com isso, o autor destacou, por um lado, a necessidade de análise tanto de cada função quanto do conjunto do qual fazem parte, lembrando que nenhuma função específica limita-se

à sua expressão isolada. Por outro, e ao mesmo tempo, evidenciou a impropriedade de se subsumir as “partes” no “todo”, haja vista que tanto na função global quanto na parcial ocorrem divisão e unidade, verificando-se a complementaridade entre atividade integradora e a diferenciação funcional. Esse dado abre possibilidades para a compreensão dinâmica do sistema psíquico, do qual uma mesma função participa em diversos níveis.

Em suma, o desenvolvimento das sensações de cada indivíduo condiciona-se, por conseguinte, pela relação sujeito–objeto, ou seja, pelos diferentes aspectos de sua atividade e, sobretudo, por situações nas quais o êxito da execução da ação depende da diferenciação das propriedades sensoriais do objeto. Este fato demanda ter-se a sensação, também, como objeto da educação desde a mais tenra idade. Luria (1991a, p. 2), referindo-se à relação interdependente entre sensorialidade e experiências destacou, a partir de observações experimentais, que a interrupção da afluência de informações (estimulações) circundantes advindas de lesões ou perdas sensoriais – ainda que parciais, como a cegueira ou a surdez –, provocam profundas contenções do desenvolvimento psíquico global. Assim, afirmou que apenas uma educação por métodos especiais, promotores da criação de vias sensoriais alternativas, a exemplo do desenvolvimento compensatório do tato, poderá assegurar um desenvolvimento mais próximo ao normal.

Conforme analisado por Smirnov et al. (1960, p. 141), no momento do nascimento os analisadores já possuem um alto grau de desenvolvimento, possibilitando à criança respostas motoras, visuais, táteis, gustativas e auditivas, além de respostas à dor, fome, sede, movimento do corpo no espaço etc. Entretanto, tais respostas no recém-nascido assentam-se sobre a base de reflexos incondicionados, integrando o aparato morfofuncional requerido à sobrevivência. Gradativamente, graças às experiências sociais e desenvolvimento das estruturas cerebrais, as sensações constitutivas dos reflexos incondicionados assumem nova expressão, qual seja, uma expressão reflexo condicionada.

Uma vez que o córtex cerebral continua se desenvolvendo, a qualidade progressiva das respostas reflexas condicionadas, posteriormente suplantadas pelas respostas advindas da aprendizagem social, subordina-se à existência de diferentes estímulos atuantes sobre os órgãos dos sentidos, promotores da complexificação e aperfeiçoamento sensorial, bem como outras conquistas advindas do desenvolvimento das demais funções.

Portanto, não obstante tratar-se de uma função psíquica, em sua origem, primitiva, o pleno desenvolvimento da sensação – a acuidade sensorial – resulta da natureza das ações realizadas pelo indivíduo, posto que nelas radica, do ponto de vista genético, a dimensão interfuncional do psiquismo, responsável pela requalificação da sensorialidade. Assim, pela

própria natureza das sensações, sua expressão psicológica alia-se às condições de vida e educação disponibilizadas, ou seja, desenvolve-se sob completo condicionamento social, expressando-se, sob tais condições, como sensações humanas culturalmente formadas.

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