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O desenvolvimento cultural da memória

3.4 Sobre o processo funcional memória

3.4.2 O desenvolvimento cultural da memória

Em relação ao desenvolvimento da memória Vygotsky e Luria (1996, p. 184) afirmaram, da mesma forma que Smirnov et al. (1960), que a memória involuntária representa a forma primária, elementar de fixação mnêmica, estruturando-se na base das marcas deixadas pelas experiências nos processos de excitação do córtex cerebral, resultando em registros espontâneos. Sendo assim, nela inexiste a adoção de estratégias específicas para a memorização; sua ocorrência é imediata, advém do contato com dado conteúdo por força das ações empreendidas, nas quais operam a organização semântica, a estrutura da atividade e as particularidades individuais.

Diferentemente, a memória voluntária inclui em sua manifestação um apelo consciente, isto é, a “tarefa” de recordar e, para tanto, recursos auxiliares são conclamados. As diferenças qualitativas entre as expressões involuntárias (naturais) e voluntárias (culturais) da memória, bem como o curso do desenvolvimento das segundas foram objetos de especial atenção de Vygotski (2001, p. 378), para quem:

As investigações teóricas têm confirmado a hipótese de que historicamente o desenvolvimento da memória humana tem atendido, fundamentalmente, a linha de memorização mediada, isto é, que o homem criou novos procedimentos, com ajuda dos quais conseguiu subordinar a memória a suas finalidades, controlar o curso da memorização, torná-la cada vez mais volitiva, convertê-la em reflexo de particularidades cada vez mais específicas da consciência humana.

O autor defendeu, então, que o postulado básico para os estudos sobre a memória humana assente-se no reconhecimento de que a memorização mediada, isto é, fundada em signos, não resulta de transformações na estrutura interna da memória, mas de alianças que se instituem entre ela e uma série de outras operações psíquicas. Ou seja, resulta das relações interfuncionais.

É à luz desse postulado que Vygotsky e Luria (1996, p. 184) apontaram o desenvolvimento da memória como um percurso culturalmente orientado que se inicia com a prevalência absoluta da memória involuntária; antecedente ao desenvolvimento da linguagem e em unidade com a primazia da atenção espontânea; caminha na direção de uma prevalência relativa; com a ampliação dos domínios da linguagem, da atenção voluntária e desenvolvimento embrionário do pensamento; culminando na prevalência absoluta da memória voluntária sobre a involuntária, graças, fundamentalmente, ao desenvolvimento do pensamento abstrato e das demais funções que ele requer.

Todavia, esse percurso aparentemente simples encerra grande complexidade. Luria (1991b, p. 91), referindo-se a ele, afirmou que a memória passa por uma “história dramática” marcada por profundas transformações qualitativas, destacando nesse percurso dois traços distintos. O primeiro abarca as propriedades da memória imediata, presente nos indivíduos desde seu nascimento; o segundo, sua transição à memória voluntária, representativa de seu sofisticado desenvolvimento ulterior.

Luria (1991b, p. 92), Vygotski (1996, p. 289) e Smirnov et al. (1960, p. 227) afirmaram que nos primeiros anos de vida já se verifica uma grande capacidade para registrar e fixar vestígios. A memória direta, ou por imagens, predomina ao longo dos anos iniciais, possibilitando à criança, ainda em seus primeiros meses de vida, o reconhecimento de pessoas e objetos que a cercam. Ao término do primeiro ano de vida, a memorização do entorno físico e social da criança se revela com bastante nitidez nos seus atos de estranhamento ao novo.

Não obstante a ampla capacidade de registro mnêmico, a memória infantil carece organização e seletividade, o que limita sua participação efetiva na orientação do comportamento ou mesmo sua subordinação a instruções verbais. Segundo Smirnov et al. (1960, p. 228):

Na primeira infância e na primeira época pré-escolar a memória é involuntária e sem um fim determinado. Nessa idade, a criança ainda não planeja a tarefa de fixar algo e depois recordar. A criança de dois ou três anos fixa na memória apenas aquilo que tem significação no momento, o que

está relacionado com suas necessidades imediatas ou interesses, aquilo que tem forte colorido emocional. Somente na idade pré-escolar média, aos 4 ou 5 anos, a criança começa a fixar na memória de maneira voluntária.

O início dessa transição é marcado pela redução dos processos mnêmicos referentes à capacidade de memorização figurativa direta, dado que resulta dos domínios já conquistados pela criança acerca da linguagem. Entretanto, essa capacidade ainda se revela preponderantemente objetiva, isto é, fixa melhor objetos e figuras do que representações abstratas, palavras, bem como aquilo que circunscreve seus interesses e emoções circunstanciais

Uma vez que a criança ainda não dispõe de conceitos plenos, sua memorização se apoia na percepção das relações concretas entre os objetos. Esse fato não significa, porém, que o desenvolvimento da linguagem não esteja impulsionando o desenvolvimento da memória lógica, mas indica, apenas, a prevalência dos fenômenos concretos sobre os abstratos.

É na idade escolar, em decorrência do ensino e educação sistematizados, que se verificam transformações decisivas em direção à conquista da memorização mediada, em um processo que paulatinamente converte a memória objetiva em memória lógica. Com isso,

Se nas etapas iniciais do desenvolvimento a memória tinha caráter direto e era, até certo ponto, uma continuação da percepção, com o desenvolvimento da memorização mediada ela perde a sua ligação imediata com a percepção e contrai uma ligação nova e decisiva com o processo de pensamento. O aluno de nível superior ou o adulto, que fazem operações complexas de codificação lógica do material suscetível de memorização, executam um complexo trabalho intelectual e o processo de memória começa, assim, a aproximar-se do processo de pensamento discursivo, sem entretanto perder o caráter de atividade mnemônica (LURIA, 1991b, p. 96).

De que forma se processam, então, tais transformações, foi objeto de destaque nos estudos de Vygotski (1995, 1996, 1997, 2001) sobre a memória. Destacou, inicialmente, que quando se memoriza algo diretamente ou com o apoio de qualquer estímulo complementar, encontram-se em curso duas operações psicológicas completamente distintas.

No primeiro caso, o produto mnêmico resulta meramente das propriedades naturais da memória em relação ao estímulo, todavia, com a interposição de meios auxiliares, isto é, de signos, outras conexões funcionais passam a ser requeridas da memória. Com isso, a exigência que na memorização imediata recai exclusivamente sobre a memória passa a incidir também sobre outras funções, que, de partida, pouco teriam a ver com o ato mnésico.

Assim, o autor explicou que na formação da memória voluntária (ou arbitrária), não é a estrutura da memória que se transforma, mas a sua integração a um sistema interfuncional, especialmente, as estreitas relações que estabelece com o pensamento. Nessa direção, afirmou que a memória é o ponto de apoio do pensamento da criança desde as suas origens e, para ela, “pensar é recordar”, isto é, pensar representa uma extensão da percepção experienciada, cujos vestígios foram fixados na memória.

Por isso, na formação primária de conceitos, o objeto do pensamento não é a estrutura lógica do próprio conceito, mas a recordação dos traços do objeto que se fazem presentes na sua memória. O lugar do conceito é tomado pela descrição do objeto, de tal forma que conceituar não deixa de ser, para a criança de tenra idade, o relato de recordações que reproduzem o objeto. Contudo, ainda que seu pensamento se apoie, sobretudo, em recordações, Vigotski salientou que as correlações entre a memória em imagens e o pensamento não apontam um significado unívoco entre ambos, uma vez que no próprio processo de desenvolvimento dessa relação seus nexos interfuncionais se transformam, conferindo diferentes posições a cada uma dessas funções e, consequentemente, novas propriedades às suas interrelações.

Com base nos estudos realizados na “idade de transição”, isto é, na adolescência, Vygotski (2001, p. 134) afirmou:

A análise do estudo das peculiaridades do pensamento da criança na idade escolar e seus vínculos com a memória nos era imprescindível para determinar corretamente as mudanças que se produzem na memória do adolescente. [...] Como hipótese, já havíamos suposto que a dedução fundamental desse estudo era que a mudança principal no desenvolvimento da memória do adolescente consiste na mudança inversa das relações que existiam entre o intelecto e a memória do escolar. Se na criança o intelecto é uma função da memória, na adolescência a memória é função do intelecto. Da mesma forma que o pensamento primitivo da criança se apoia na memória, a memória do adolescente se apoia no pensamento.

Destarte, na mesma medida em que o pensamento da criança se apoia em representações visuais, em imagens fixadas dos objetos, a conquista do pensamento em conceitos, próprio à adolescência e idade adulta, revela uma lógica inversa, subjugando a memorização do percebido ao que essencialmente é compreendido. Com isso, Vigotski julgou fadados ao insucesso quaisquer intentos de explicar a memória ou o pensamento – bem como qualquer outra função – tomando-os independentemente um do outro.

É, pois, no desenvolvimento cultural do pensamento que a memória se libera das imagens visuais diretas, graças à mediação da linguagem. Ou seja, por decorrência das

vinculações entre as imagens e as palavras, e ao fato de que, com o desenvolvimento da linguagem, a palavra passa a conter a imagem eidética, ocorre a primeira ruptura na memorização visual imediata. Nela se interpõe a memorização verbal que, por sua vez, descortina novas possibilidades mnêmicas ao possibilitar a memorização conceitual.

A memorização que outrora se encontrava sob a égide de registros espontâneos conquista, agora, expressões essencialmente simbólicas e, com isso, a possibilidade de relações qualitativamente superiores entre os vestígios da experiência passada, a experiência presente e possíveis projeções futuras, ou seja, institui-se como memória lógica, sendo essa aquisição um dos traços fundantes da conduta culturalmente formada.

Em suma, a diferença radical destacada por Vygotski (1997) entre a memória imediata e a mediada reside no fato de que o pensamento passa a ocupar, na segunda, o primeiro plano, possibilitando à pessoa atuar sobre a recordação não mais na dependência das propriedades naturais da memória, mas por ação da memória lógica, isto é, de conexões mentais entre imagem, signo e ato mnésico.

O pensamento no qual radica a memória lógica, por sua vez, se diferencia do pensamento em seu caráter específico, do “pensamento” no estrito sentido do termo. Sua adoção pela memória visa, arbitrariamente, a tarefa de recordar, de tal forma que o principal atributo do pensamento – a exatidão lógica – pode resultar transformado. Diante da necessidade de recordação, como afirmou Vigotski, não está em questão se as conexões entre imagem e signo são exatas ou verossímeis, importando, apenas, que sejam efetivas para otimizar a recordação. Vygotski (1997, p. 77) esclarece:

Repito, não é apenas a memória que muda quando contrai matrimônio, se nos permite dizê-lo assim, com o pensamento, mas sim que ele, ao modificar suas funções, não é o mesmo que conhecemos quando estudamos operações lógicas. Aqui se alteram todas as conexões estruturais, todas as relações, e nesse processo de substituição de funções nos encontramos com a formação do novo sistema ao qual tenho me referido.

Ocorre, pois, um processo no qual a memória se converte em “parte” interna do processo de pensamento, em memória lógica que, em última instância, representa um tipo de memória que adota métodos racionais, isto é, mnemotécnicas27, para fixar e recordar conteúdos. Trata-se, então, de um tipo de “trabalho” da memória e, como tal, só pode ocorrer de modo intencional.

27

Vigotski (1995, p. 255) diferencia os conceitos “mneme” e “mnemotécnica”, propondo o primeiro como representativo das funções naturais da memória e o segundo, das suas funções culturais, ou seja, representativo dos procedimentos e recursos socialmente adotados com vista à memorização.

Ao referir-se a essa questão, Vigotski recorreu a Spinoza, para quem a memória demonstra que o “espírito” humano não é livre e, atestando sua concordância com o filósofo, afirmou:

Nada podemos fazer, como dizia Spinoza, em relação a nossa alma se não nos recordamos dela. Com efeito, o decisivo papel da memória na investigação da intenção, demonstra até que ponto nossas intenções estão unidas a um determinado aparato da memória que mais tarde deve colocá-las em prática (VYGOTSKI, 1995, p. 262).

Assim, o autor alertou que, para maior efetividade da memorização, não basta apenas o seu planejamento, uma vez que esse processo exige a organização intencional da atividade, de tal forma que o objetivo mnemônico se insira como ação que a integra. A maior efetividade da memória requer, portanto, uma atitude ativa por parte do indivíduo.

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