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O desenvolvimento cultural da linguagem

3.5 Sobre o processo funcional linguagem

3.5.1 O desenvolvimento cultural da linguagem

Segundo Vygotski (1995), o desenvolvimento da linguagem representa, antes de tudo, a história da formação de uma das funções mais importantes do desenvolvimento cultural, na medida em que sintetiza o acúmulo da experiência social da humanidade e os mais decisivos saltos qualitativos dos indivíduos, tanto do ponto de vista filogenético quanto ontogenético.

Vygotsky e Luria (1996), em análise desse desenvolvimento do ponto de vista filogenético, destacaram que, ao denominar os objetos e fenômenos da realidade por meio das palavras, o homem ultrapassou o nível de captação sensorial, fato determinante de profundas transformações em seu psiquismo. No plano das percepções, toda captação é particular mas, no plano das designações28, isto é, das representações por meio de signos, toda percepção se converte em generalização.

Logo, ao representar os objetos e fenômenos por meio da palavra o homem deu o primeiro e mais decisivo passo em direção à sua libertação do campo sensorial imediato, isto é, em direção ao desenvolvimento de sua capacidade para pensar. A palavra é, fundamentalmente, uma forma socialmente elaborada de representação e para que os indivíduos se apropriem dela é requerida a mediação de outros. Sua função generalizadora radica na vida social, nos intercâmbios entre os homens e os objetos pela mediação de outros homens.

Ademais, nesses mesmos intercâmbios radica o surgimento da palavra como forma de comunicação e expressão, como possibilidade de influência sobre o outro, o que a torna o mais específico instrumento das relações interpessoais. Não obstante os gestos e a mímica

também participarem dessas relações, o fazem como meios auxiliares e, até certo ponto, são dependentes da comunicação oral.

Os autores afirmam, assim, que a função comunicativa primária da palavra é o controle do comportamento do outro. Orientando-se para o exterior ela visa, no ponto de partida, a influência sobre outras pessoas, dirigindo-lhes a ação. Entretanto, é exatamente no exercício dessa função que a palavra se transforma. Da mesma maneira que os demais processos, a linguagem aparece primeiramente como processo interpessoal para, na sequência, instalar-se como manifestação intrapessoal, intrapsíquica.

Ainda segundo Vygotsky e Luria (1996), do ponto de vista ontogenético, o desenvolvimento da linguagem sintetiza, emblematicamente, as linhas naturais e culturais do desenvolvimento. Na base de seu percurso de formação reside o reflexo incondicionado das reações vocais, sobre o qual se edifica seu curso ulterior. Tais reações apontam, pois, a pré- história da linguagem oral.

Em suas origens, as reações vocais dispõem de duas características centrais. A primeira aponta seu caráter generalizado, ou seja, tais reações não se manifestam como resposta a um estímulo isolado, específico. Apenas por exposições a situações nas quais dados sinais aparecem com maior frequência, tem início a diferenciação das respostas vocais, ou seja, a vida social modela essas reações instituindo as palavras.

Por outro lado, a reação vocal é sempre parte orgânica de toda uma série de reações, de tal forma que sua expressão se insere, sempre, em um conjunto mais amplo de respostas, sobretudo, de maneira conexa com os movimentos corporais. Paulatinamente, a reação vocal se destaca e se diferencia desse todo difuso, principiando a conquista de um significado próprio, mas ainda associado a expressões corporais – especialmente, à mímica facial.

No substrato desse processo encontram-se mecanismos fisiológicos, reações instintivas que cumprem a função de revelar externamente os estados emocionais do organismo. As mudanças que se produzem, perturbando o equilíbrio do indivíduo com o meio – ao modificarem o conjunto de reações emocionais – alteram o conjunto de reações vocais. Daí que, para Vigotski, a primeira função das reações vocais seja, fundamentalmente, emocional.

A segunda função dessas reações resulta da sua conversão em reflexo condicionado e, sob tal condição, assumem o papel efetivo de instrumento de contato social. Forma-se no indivíduo uma nova resposta, condicionada pelas manifestações vocais das pessoas de seu entorno. Sobre essa questão, Vygotski (1995, p. 171) esclarece:

O reflexo vocal condicionado, educado, juntamente com a reação emocional ou no lugar dela, começa a cumprir, como expressão do estado orgânico da criança, o mesmo papel em relação ao seu contato com as pessoas de seu entorno. A voz da criança se converte em sua linguagem ou em instrumento que substitui a linguagem em suas formas mais elementares. Portanto, também em sua pré-história, ou seja, ao longo do primeiro ano de vida, a linguagem infantil está inteiramente baseada no sistema de reações incondicionadas, fundamentalmente instintivas e emocionais sobre as quais, por meio da diferenciação se elabora a reação vocal condicionada mais ou menos independente. Graças a isso, se modifica também a própria função da reação: se antes essa função fazia parte da reação geral orgânica e emocional manifesta pela criança, agora, começa a cumprir a função de contato social.

Todavia, o autor afirmou, também, que tais reações não correspondem ainda à linguagem propriamente dita, tratando-se de uma etapa “pré-linguística”. Esse momento do desenvolvimento é marcado por um traço importante: linguagem e pensamento desenvolvem- se independentemente e, a princípio, no âmbito da linguagem, a criança assimila apenas que a cada objeto corresponde uma palavra que o denomina. Contudo, nesse momento, a palavra que identifica o objeto se revela, meramente, como mais uma de suas propriedades, como extensão do próprio objeto.

Vigotski postulou, então, a existência de uma relação primária entre palavra, percepção e representação, ou imagem, a partir da qual umas palavras vão dando origem a outras. Ademais, com base na constatação do percurso histórico de formação da palavra, o autor afirmou o significado figurado da linguagem infantil, esclarecendo que nela: “[...] os signos não aparecem como invenções das crianças: os recebem das pessoas que as rodeiam e apenas depois tomam consciência ou descobrem as funções de tais signos” (VYGOTSKI, 1995, p.179), ou, em última instância, estabelecem relações entre signo e significado.

A princípio do desenvolvimento da linguagem ocorre, simplesmente, uma conexão externa entre palavra e objeto e não uma conexão interna entre signo e significado. Referindo- se a esse fato, Vygotsky e Luria (1996) reportaram-se à artificialidade dos estudos que tomaram a palavra como imagem sonora do objeto ou ação, ou como mera associação de uma imagem a um sistema acústico condicionado a ela. Para eles, esse equívoco era mais um resultado da análise atomística, incapaz de levar em conta dimensões interfuncionais do psiquismo, especialmente as conexões que se instalam entre linguagem e pensamento.

Por conseguinte, conferem grande destaque ao processo no qual a palavra, gradativamente, vai deixando de ser mera extensão ou propriedade do objeto e, ultrapassando a conexão direta objeto-designação, promove a conversão da imagem do objeto em signo. Porém, para tanto, urge que o indivíduo abarque em uma mesma imagem cognitiva vários

elementos que com ela se relacionam, o que corresponde à formação embrionária dos equivalentes funcionais dos conceitos.

Esse momento, que corresponde à etapa “linguística-fonética”, marca os primórdios da interconexão entre linguagem e pensamento, de tal forma que:

[...] em um determinado momento, na idade infantil, até os dois anos, as linhas do desenvolvimento do pensamento e da linguagem, até então independentes uma da outra, se encontram e coincidem, iniciando uma forma totalmente nova de comportamento, exclusivamente humana (VYGOTSKI, 2001, p. 172).

Vigotski afirmou que esse fato caracteriza a transição da primeira etapa do desenvolvimento da linguagem, fundamentalmente afetivo-volitiva e pré-linguística, para outra, na qual a criança descobre a função social dos signos. A partir dessa nova etapa, a palavra passa a ocupar um outro lugar na vida da pessoa, imposto tanto pela necessidade de comunicação em si, quanto pela necessidade de compreensão sobre o mundo. Com isso, inicia-se a etapa da tagarelice e das interrogações infantis.

Pelo exposto, constata-se que para a psicologia histórico-cultural a palavra aponta a pré-história tanto da linguagem quanto do pensamento, ou por outra, revela-se fundante das relações internas entre esses processos.

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