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Etapas do desenvolvimento do pensamento

3.6 Sobre o processo funcional pensamento

3.6.2 Etapas do desenvolvimento do pensamento

conhecimentos e informações de modo dedutivo exigiu do homem as complexas operações racionais, sobretudo a generalização, a partir das quais instituiu seu confronto com as dimensões universais dos fenômenos. Ou seja:

[...] foi-lhe necessário transferir imediatamente o raciocínio do plano dos processos práticos evidentemente eficazes para o campo das construções

teóricas lógico verbais para ganhar confiança na premissa básica e começar

imediatamente a ver na afirmação da segunda premissa menor um caso particular da premissa maior, genérica (LURIA, 1979b, p. 105, grifo no original).

Tornou-se necessário o “desprendimento” das premissas fundadas na experiência prática individual para que novos códigos lógicos, produzidos pela expansão abstrata dessa experiência, pudessem ser implementados e, com isso, juízos parciais e isolados fossem substituídos por sistemas de juízos, Ainda segundo Luria, dois fatores se revelaram decisivos para esse desenvolvimento, sendo um deles a complexificação das formas de comunicação advindas das relações de trabalho e o outro, a aprendizagem sistematizada, sobretudo pela educação escolar.

A partir de suas pesquisas, realizadas nas regiões de Uzbequistão e Quirguistão, Luria (2008) constatou o quanto as pessoas que vivem em formações econômico-culturais pouco desenvolvidas encontram dificuldades para suplantar o pensamento prático-visual com vista a outros parâmetros na orientação do comportamento. As operações racionais de comparação e generalização como atos abstratos revelaram-se ausentes ou altamente deficitários na resolução dos problemas experimentais propostos aos sujeitos da pesquisa. Destarte, Luria demonstrou, por inúmeros experimentos, que as formas abstratas de relação com a realidade resultam de “revolução cultural”, ou seja, as transformações culturais fornecem os elementos fundamentais para as transformações cognitivas.

3.6.2 Etapas do desenvolvimento do pensamento

Levando em conta a natureza histórico-cultural do pensamento, Vygotski (2001), Leontiev (1978a, 2005), Smirnov e Menchinskaia (1960) e Petrovski (1985) destacaram a existência de três formas de pensamento, a saber: pensamento efetivo ou motor vívido, pensamento figurativo e pensamento abstrato ou lógico-discursivo. A primeira forma aponta

as próprias origens do pensamento, tanto do ponto de vista filogenético quanto ontogenético, quando pensamento e ação se identificam no trato das situações-problema. Os embrionários processos de análise, síntese e generalização encontram-se indissoluvelmente ligados à manipulação dos objetos e as conexões estabelecidas entre eles circunscrevem-se ao campo sensório perceptual da ação. Essa forma de pensamento caracteriza o curso do desenvolvimento do pensamento por anterioridade ao desenvolvimento da linguagem – daí que também possa ser identificado, nos animais superiores, como “inteligência prática”. Cabe observar que Vygotski (2001), em anuência às proposições de K. Bühler, também considerou a existência de um tipo de pensamento apoiado na compreensão de relações mecânicas estabelecidas a partir de experiências práticas. As descobertas advindas dessas relações representam invenções primitivas para a resolução de problemas, ou seja, a descoberta de meios mecânicos para metas igualmente mecânicas presentes na manipulação prática.

O objeto do pensamento efetivo ou motor-vívido é, portanto, o ato de realização da tarefa, essencialmente condicionado pelo impulso de operação, de exploração do meio como forma de atendimento às necessidades. Assim, dota-se de um caráter pragmático circunstancial, alheio a quaisquer formas de planejamento que projetem a ação no futuro. Por conseguinte, essa forma de pensamento não ultrapassa os elos mais imediatos da atividade a que se associa.

A forma de pensamento figurativo marca o primeiro salto da atividade teórica em relação ao seu desprendimento da atividade prática. Todavia, esse desprendimento se processa gradualmente, à medida da transposição do pensamento efetivo em direção ao pensamento orientado por imagens objetivas. Essa orientação também se verifica no plano da “inteligência prática” dos animais superiores, porém, sua expressão na condução do desenvolvimento do pensamento humano adquire formas qualitativamente distintas graças ao desenvolvimento da linguagem.

O desenvolvimento da linguagem condiciona, duplamente, o desenvolvimento do pensamento figurativo. Por um lado, o domínio da fala e do significado das palavras coloca em questão a função social dos objetos – determinando novas formas de trato com eles e, por conseguinte, novas formas de generalização. Ainda que essa generalização se encontre limitada à experiência prática, ela impulsiona a formação de juízos primários apoiados basicamente nas qualidades perceptíveis e sensoriais dos objetos. Por outro lado, a designação do objeto sob a forma de palavras e a ampliação dos domínios da linguagem refletem-se

diretamente na qualidade da percepção, enriquecendo-a e conferindo-lhe papel de destaque na orientação da ação.

Conquistando maior acuidade, a imagem perceptual se destaca no campo de ação, conferindo ao pensamento a possibilidade de orientar-se por ela. Nessa forma de pensamento ocorrem as primeiras generalizações baseadas em signos e, consequentemente, as mais primitivas expressões de abstração. Entretanto, o pensamento figurativo permanece essencialmente concreto e subjugado à experiência sensorialmente dada. Nele, o lugar ocupado pela ação no pensamento figurativo passa a ser ocupado pela imagem sensível e seu grande avanço reside exatamente no fato delas representarem uma importante forma de reflexo psíquico da realidade.

A terceira forma de pensamento corresponde ao pensamento abstrato ou lógico- discursivo, considerado pelos autores como pensamento – na exata expressão do termo. Ultrapassando a esfera das ações práticas e das imagens sensoriais, o pensamento abstrato apoia-se em conceitos e raciocínios abstratos operando, fundamentalmente, por mediação. Segundo Leontiev (1978a), a mediação é o traço distintivo central entre a “inteligência prática” dos animais e o pensamento humano. Se a primeira se impõe como forma de adaptação às condições dadas pela situação, na qual o objeto percebido orienta a ação animal no atendimento de suas necessidades, no pensamento humano se dirige pela intenção ou finalidade da ação, que exige, na maioria das vezes, a própria transformação da situação. Por meio do pensamento abstrato: “[...] submetemos as coisas à prova de outras coisas e, tomando consciência das relações e interações que se estabelecem entre elas, julgamos a partir das modificações que aí percebemos, as propriedades que nos são diretamente acessíveis” (LEONTIEV, 1978a, p. 84). Para tanto, urge a formulação e assimilação de conceitos que possibilitem a superação do conhecimento sensorial em direção ao conhecimento mediado, a rigor, lógico-discursivo.

As operações por meio de signos, ao promoverem profundas transformações em todas as operações psíquicas, conduzem as formas de pensar a outro patamar, cujo estofo se identifica com outras modalidades de atividade externa, a exemplo da fala, da leitura e da escrita, do cálculo, por meio das quais se instituem os conceitos verbais e as operações lógicas do raciocínio.

Essa forma de pensamento visa, por essência, à superação do conhecimento aparente, sensorialmente dado, em direção à descoberta de relações internas, ocultas à percepção – porém, fundantes da existência do objeto ou fenômeno. Segundo Vygotski (2001, p. 296):

[...] todo pensamento trata de unir algo com algo, de estabelecer uma relação entre algo e algo. Todo pensamento possui movimento, fluidez, desenvolvimento, em uma palavra, o pensamento desempenha uma função determinada, um trabalho determinado, resolve uma tarefa determinada.

A tarefa desempenhada pelo pensamento abstrato consiste exatamente na transformação do que é imediatamente acessível com vista ao mediatamente possível. Essa transformação, por sua vez, se realiza com base nas interações práticas entre sujeito e objeto bem como por meio de amplas e complexas mediações teóricas, dado que coloca a teoria como instrumento indispensável à superação do pensamento sensorial, concreto, em direção ao pensamento teórico.

Nesse processo de transformação, as internalizações realizadas pelo indivíduo do acervo de conceitos e juízos, as leis gerais que regem o movimento da realidade, elaborados e sistematizados histórico socialmente, despontam como variável imprescindível ao desenvolvimento do pensamento, tornando-os instrumentos psicológicos requeridos à qualidade do pensamento no desempenho de suas tarefas em face da realidade.

Davídov (1988), dedicando-se às diferenças qualitativas existentes no pensamento lógico-discursivo, propôs uma caracterização diferencial entre o que chamou de “pensamento empírico” e “pensamento teórico”, considerando que o segundo representa sua forma mais completa e mais desenvolvida. O autor inicia sua exposição colocando em destaque, também, as bases materiais do pensamento e os vínculos que se instituem entre ele e os sistemas verbais, dados que o colocam em relação direta com a ação social do homem sobre a natureza. Portanto, na base do pensamento, como função psicológica que utiliza o sistema verbal para elaborar operações racionais sintetizadas em forma de conceitos e juízos, reside a atividade prática. Todavia, como resultado do processo cognitivo, a experiência sensorial, prática se amplia imensamente, instituindo-se como universalidade abstrata. O pensamento empírico assenta-se nesse processo, que transforma as imagens captadas pelos sentidos em uma expressão verbal, possibilitando a construção do conhecimento do imediato na realidade. Por essa via, a representação da realidade conquista importantes dimensões, tais como quantidade, qualidade, propriedades, medida etc.; aspectos esses ligados diretamente ao plano concreto das imagens. Do movimento que se inicia com as impressões de algo que se expressa cognitivamente surge a determinação qualitativa e quantitativa do objeto captado, a identidade e a diferença se tornam acessíveis. Destarte, as possibilidades cognitivas do pensamento empírico são muito amplas, assegurando ao indivíduo um vasto campo de discriminação e designação de propriedades dos objetos e suas relações.

Ancorado em prescrições lógico-formais, esse tipo de pensamento cumpre um importante papel na construção do conhecimento, corroborando a formulação de deduções ou juízos bastante complexos, isto é, para a formulação de representações da realidade. Com isso, o autor alerta para a necessidade de não se tomar o produto do pensamento empírico como conhecimento simples ou de senso comum. Cumprindo, sobretudo, a função de analisar e estabelecer diferenciações primárias na realidade ele possibilita domínios abstratos de razoável amplitude.

Todavia, o pensamento empírico não se revela suficiente para apreender a realidade como movimento e síntese de múltiplas determinações, tarefas requeridas ao pensamento teórico. Davídov afirmou que o sensorial e o racional não são dois processos isolados da construção do conhecimento, mas momentos de um mesmo processo, integrando-o permanentemente, e nisso reside a essencialidade do pensamento teórico. Em suas palavras:

[...] o presente e observável deve ser considerado mentalmente com o passado e com as possibilidades de futuro; nestes trânsitos está a essência da mediação, da formação de sistemas, do todo a partir das diferentes coisas interatuantes. O pensamento teórico ou o conceito deve reunir as coisas dessemelhantes, diferentes, multifacetadas, não coincidentes e assimilar seu peso específico neste todo (DAVÍDOV, 1988, p. 131).

Ou seja, o pensamento teórico visa a representar o real como algo em formação, tendo em vista chegar à complexidade de manifestações do todo. Por conseguinte, seu objetivo é reproduzir o processo de desenvolvimento e formação do sistema que o objeto do pensamento integra, expressando encadeamentos, leis e, fundamentalmente, as relações necessárias entre as coisas singulares e o universal. Esse tipo de pensamento, cujo estofo reside na lógica materialista dialética, mostra-se como condição para uma forma de conhecimento apta a penetrar e identificar as tendências de movimento da realidade e, assim sendo, operar por meio de conceitos é sua principal característica.

Como forma “superior”, isto é, como a forma mais desenvolvida de pensamento produzida histórico-culturalmente, o pensamento teórico subjuga-se à apropriação de conceitos voltada à superação do pensamento empírico pelo teórico. Condiciona-se, pois, ao ensino desses conceitos, uma vez que suas especificidades não se desenvolvem espontaneamente ou pelo simples trato de representações circunscritas à sensorialidade. A qualidade do ensino dos conceitos sistematizados histórico-socialmente é, portanto, o requisito fundante do desenvolvimento do pensamento teórico.

Por conseguinte, constata-se pelas proposições de Davídov (1988) que o pensamento abstrato comporta diferenças qualitativas expressas nos tipos de pensamento empírico e teórico, dos quais resultam conhecimentos igualmente empíricos ou por conceitos propriamente ditos, respectivamente. Os primeiros derivam diretamente da atividade sensorial em relação aos objetos e fenômenos da realidade, conduzindo ao conhecimento do imediato, vinculado ao plano concreto das imagens. Operando nesse plano, centra-se na aparência dos fenômenos.

O pensamento teórico e o conhecimento dele derivado abarcam aspectos que não são observáveis na existência do presente imediato, apreendendo o fenômeno no complexo sistema de relações que o sustentam. Visando reproduzir o processo de formação e desenvolvimento do dado tomado como objeto do pensamento, opera necessariamente por meio de conceitos. O pensamento teórico, por incorporar o pensamento empírico, possibilita a apreensão da identidade do fenômeno, daquilo que ele é. Contudo, seu objetivo reside na identificação de como chegou a sê-lo e como poderá ser outra coisa. Sendo assim, consiste a base real da verdadeira imaginação e dos atos criativos.

Até o presente momento dessa dissertação acerca do processo funcional pensamento, procuramos colocar em questão os aspectos característicos gerais requeridos à sua compreensão como conquista do desenvolvimento histórico, graças a qual o trato humano com a realidade avança do plano prático, sensorial e concreto em direção ao plano teórico ou abstrato. O salto qualitativo promovido por essa aquisição do psiquismo foi exaustivamente analisado por Vygotski (1995, 1996, 2001), que o introduziu como um dos mais importantes critérios para a análise do desenvolvimento psíquico e, especialmente, do comportamento complexo culturalmente formado.

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