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3.4 Sobre o processo funcional memória

3.4.1 A natureza e os tipos de memória

Segundo Luria (1991b, p. 39), a memória pode ser definida como:

[...] o registro, a conservação e a reprodução dos vestígios da experiência

anterior, registro esse que dá ao homem a possibilidade de acumular

informações e operar com os vestígios da experiência anterior após o desaparecimento dos fenômenos que provocaram tais vestígios (grifo do autor).

Ainda segundo esse autor, os estudos acerca dos mecanismos responsáveis pela formação da imagem mnêmica, receberam significativo destaque no transcurso do século XX. Tiveram o mérito de demonstrar a complexidade dessa função, mas, ao mesmo tempo,

evidenciaram a prevalência dos enfoques que privilegiam os mecanismos biológico-naturais nas explicações de seu funcionamento e desenvolvimento.

A organização cerebral, ainda hoje, tem sido apontada como a grande responsável pelas “marcas da experiência” e, com isso, o entendimento sobre a memória tem avançado pouco, além de sua identificação com padrões de ligação entre células nervosas. Contudo, tanto Vygotski (1996) quanto Luria (1981) não julgaram de menor valor a compreensão das bases neurofisiológicas da memória, mas dirigiram suas críticas ao estabelecimento de relações causais mecanicistas – entre elas e o ato de memorização ou ato mnésico.

Grosso modo, tais bases podem ser, segundo Ballone (2010, p.2), assim resumidas: sempre que um estímulo é captado, ativa-se um conjunto de neurônios que formam uma “assembleia neural”, isto é, inúmeros neurônios se unem funcionalmente instituindo entre si padrões de ligações neuronais. Tais “assembleias” tornam-se substratos para a realização de dada tarefa ou apreensão de determinados estímulos. Uma vez concluída a tarefa ou estimulação, a “assembleia” se dissolve deixando os neurônios disponíveis para novas junções, requeridas por outras demandas.

A atividade mnésica desponta, então, na dinâmica entre formação e dissolução das assembleias neuronais. Caso esse conjunto funcional de neurônios não seja reutilizado, dilui- se sem deixar marcas mais substantivas. Porém, se essa rede neural é ativada repetidas vezes, as ligações sinápticas nela presentes se fortalecem e se estabilizam, criando um padrão de ligações que se incorpora cada vez mais aos tecidos nervosos. Esse processo é responsável pela fixação e armazenamento estável dos conteúdos mnêmicos e possibilidades para sua evocação. A qualidade desses processos depende, também, da quantidade de neurônios “recrutados”, ou seja, quanto maior a “assembleia”, maior a intensidade e tempo de duração do conteúdo memorizado.

Em relação a esse tipo de explicação, Leontiev (1978a, p. 196) já destacava, a partir dos seus estudos sobre a memória, que:

[...] não é a função de um grupo isolado de células corticais que está na sua base, mas um sistema cerebral complexo, cujos elementos, dispostos em diversas zonas do cérebro, muitas vezes bastante afastados uns dos outros, formam todavia uma constelação única” (grifo nosso).

Esses sistemas alcançam distintos patamares de desenvolvimento e complexidade, expressos tanto nas diferenças radicais que existem entre o psiquismo humano e o psiquismo animal, quanto nas expressões elementares e superiores do psiquismo humano. Apenas ao

nível animal a função psíquica circunscrever-se-á pelas construções biológicas fixadas por hereditariedade, posto que, para o homem, tais formações aparecem no transcurso da vida como resultado de apropriações efetivadas pela atividade que o vincula ao mundo físico e social.

Luria (1991b), dedicando-se ao estudo das complexas relações entre registro, conservação e reprodução de vestígios de experiências prévias, também colocou em questão a participação dos diferentes sistemas cerebrais, isto é, dos três blocos aos quais nos referimos no capítulo 2 deste trabalho, afirmando que cada qual, de maneira própria, contribui para a realização da atividade mnésica. Graças à participação desses sistemas, o cérebro humano não apenas capta os estímulos como também os discrimina, registrando na memória os vestígios de influências percebidas.

Entretanto, os mecanismos de registro e conservação dos vestígios não se identificam, ou seja, a ocorrência do registro ainda não significa que ele esteja consolidado. Ainda segundo Luria (1991b), foram os estudos sobre a conservação de vestígios que possibilitaram a identificação dos dois estágios no processo de formação da memória, que vieram a ser designados como “memória breve”, ou de curto alcance, e “memória de longo alcance”.

A primeira caracteriza-se pela formação de vestígios e suas expressões circunscritas ao lapso de tempo da respectiva formação, ou seja, no lapso de tempo da “assembleia neural”, o que a torna essencialmente circunstancial. Esse é o caso da memorização operacional, necessária ao atendimento de uma demanda pontual e transitória. A segunda, pela formação seguida de consolidação dos vestígios por muito tempo, resistindo, inclusive, a possíveis efeitos destrutivos de outras ações de registro.

Luria destacou, ainda, que apesar de diferentes mecanismos fisiológicos operarem sobre a memória de curto ou de longo alcance, a memorização atende, sobretudo, a influência de três fatores: organização semântica, estrutura da atividade e peculiaridades individuais. Foram as investigações acerca dos fatores operantes na memorização em geral, isto é, independentemente da existência ou não da intenção de memorizar, que conduziram à distinção entre “memória imediata”, involuntária, e “memória mediada”, voluntária.

Em relação à organização semântica, Luria asseverou que tal como ocorre no campo da percepção, a organização dos elementos em estruturas lógicas integrais, quer por associações, relações de causa e efeito, por contiguidade, semelhança etc., otimiza substancialmente as possibilidades da memória e a estabilidade de seus vestígios. Ilustrou esse fato com o exemplo de uma tarefa experimental de recordação de 18 números isolados de zeros e unidades. Sequencialmente, tais números foram unificados em pares, triplos e

posteriormente em grupos ainda maiores, de tal forma que se chegasse a apenas quatro grupos (em vez de 18). Como resultado, verificou-se a redução do esforço despendido – bem como significativa ampliação na margem de acertos da tarefa mnésica quando os numerais foram agrupados.

Outro fator que subordina a memorização, mesmo em situações nas quais inexiste a intenção volitiva para tanto, diz respeito à finalidade da atividade na qual o ato de recordar ocorre ou não. Luria (1991b, p. 78) esclarece:

[...] o homem memoriza antes de tudo aquilo que está relacionado com o fim de sua atividade, aquilo que contribui para atingir o objetivo ou serve de obstáculo. Aquilo que está relacionado com o objetivo ou objeto da atividade motiva a reação orientada, torna-se dominante e é memorizado, não se observando nem se conservando na memória os detalhes secundários que não tem relação com o objeto principal da atividade. É por isso que a pessoa que participa de uma discussão recorda cada pronunciamento de seus participantes, a posição de um, o caráter das objeções; mas ela pode não se lembrar se as janelas do auditório estavam abertas ou fechadas, em que lugar estava o armário, se havia jornais nas mesas etc.

O autor afirmou, assim, que a inserção da memorização como ato vinculado à orientação da atividade tem grande importância na compreensão da memória involuntária, imediata, que, diferentemente da memória voluntária, mediada, ocorre à margem da intencionalidade do sujeito que a realiza, mas não à margem daquilo que é realizado. Tanto Luria (1991b, 1981) quanto Smirnov et al. (1960) conferiram destaque à distinção entre memória de fixação intencional e não intencional, em suas relações com o desenvolvimento cultural dos indivíduos.

Smirnov et al. (1960) consideraram que a memória de fixação involuntária representa a forma inicial de registro e, nela, está ausente o planejamento do ato futuro de recordar e, por conseguinte, a utilização de meios auxiliares que o facilitem. Afirmaram, ainda, que grande parte do material mnêmico resulta desse tipo de fixação, posto que o homem memoriza uma quantidade imensa de dados ao longo de suas experiências. Exatamente por isso a nitidez acerca dessas informações será distinta.

Também se referindo a essa questão, Rubinstein (1967) destacou que o processo mnêmico principia com a observação difusa e involuntária requerida a uma dada atividade, cuja finalidade não é reter na memória um traço específico. Por isso, muita coisa se retém na memória sem que tenha mobilizado, para tanto, um ato volitivo – ou seja, de modo geral e

primariamente os registros se realizam de forma involuntária por seu engajamento na atividade em curso.

O ato de memorização consciente desponta apenas quando o indivíduo compreende que a retenção de determinado conteúdo é necessária à sua atividade prática ou teórica. Todavia, afirmou o autor, esse é um processo altamente complexo uma vez que a ação de memorização deve se inserir na cadeia de ações que configuram a atividade, cujo motivo fundante não coincide necessariamente com a memorização – daí que o registro mnêmico não se institui como ato isolado, mas como elemento que integra a estrutura da atividade. A ênfase conferida pelos autores supracitados à relação entre a memorização e a estrutura da atividade decorre exatamente da necessidade de explicações sobre a qualidade do conteúdo registrado/recordado sob condições espontâneas. Tais autores são unânimes na afirmação de que essa qualidade se revela condicionada pelas finalidades das ações nas quais a memorização ocorre e, sobretudo, pela importância que tais ações têm para a pessoa, aspecto que conduz ao terceiro fator operante sobre a memória.

Em relação à influência das particularidades individuais sobre a recordação, Luria (1991b, p. 83) distinguiu dois padrões: a predominância de modalidades (visual, auditiva, motora etc.) e, como era de se esperar, o próprio nível de organização da atividade. Com isso, considerando-se que os diferentes indivíduos resolvem de diferentes maneiras as atividades que os vinculam à realidade, os traços característicos da memória encontram-se imbricados a essas maneiras, sendo, ao mesmo tempo, causa e consequência de sua natureza e organização. Também se referindo às diferenças individuais de memorização, Smirnov et al. (1960) distinguiram, ainda, a prevalência de padrões de memória, quais sejam: memorização objetiva, abstrata e intermediária. No primeiro padrão, de memorização objetiva, destaca-se a facilidade pessoal para fixar coisas em relação direta com a captação sensorial de suas propriedades (imagens, cores, sons etc.). Diferentemente, outras pessoas memorizam melhor a partir de expressões verbais e formulações lógicas, tais como conceitos, fórmulas, cifras etc., do que resulta a designação memória abstrata. Contudo, é o terceiro padrão que congrega o modo mais habitual de memorização das pessoas – quando ocorre o equilíbrio entre a memorização objetiva e abstrata.

Porém, os autores deixam claro que tais padrões dizem respeito às expressões de facilidades e, em hipótese alguma, expressam limites no ato mnésico. Nessa direção, Smirnov et al. (1960, p. 226) afirmam:

As diferenças individuais de memória dependem diretamente do tipo de atividade do sujeito, que é o que determina a utilização preferencial de um ou outro analisador. Os tipos de memória são consequência do treinamento, dependem da aprendizagem, da atividade profissional, e podem mudar e desenvolver-se ao mesmo tempo que a atividade do sujeito. Quanto há uma atividade variada, a memória se aproxima da combinação harmônica das particularidades positivas de cada tipo.

Importa-nos, nesse destaque introdutório acerca das características gerais da memória, que a função mnêmica, assim como qualquer outra função humana, não seja compreendida, de partida, como manifestação pura de propriedades do cérebro – abstraindo-o da atividade engendrada na relação sujeito-objeto, ou seja, perdendo-se de vista a própria condicionalidade histórico-social da organização cerebral. A memória é, pois, um processo complexo e ativo cujo desenvolvimento, filo e ontogenético, compreende a superação de formas naturais, involuntárias, em direção a formas voluntárias, culturalmente desenvolvidas.

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