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2 NEGOCIAÇÃO COLETIVA

2.7 A negociação coletiva como instrumento de precarização dos direitos

A negociação coletiva cumpre função precípua de geração de normas trabalhistas e pacificação dos conflitos coletivos de trabalho. A negociação coletiva, como instrumento do direito coletivo do trabalho e, conseqüentemente, também do direito individual do trabalho, deve observar o caráter finalístico e teleológico desse ramo do direito, qual seja, a melhoria das condições de trabalho.

No entanto muitas vezes os acordos e convenções coletivas têm sido utilizados não para conquista de melhores condições de trabalho, mas sim para flexibilização e precarização de direitos legalmente assegurados, com base na premissa de que a negociação coletiva pode flexibilizar direitos trabalhistas.

Nos últimos anos, várias foram as investidas do Governo Federal neste sentido. Como exemplo, citamos o “contrato por prazo determinado” (tempo parcial), figura de contratação anômala criada pela Lei 9.601 de 1998. Essa lei prevê que as “convenções e os acordos coletivos poderão instituir contrato de trabalho por prazo determinado” nos quais haveria redução de alíquotas de contribuição para o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e, “as partes”, também através da

229 PICARELLI, Márcia Flávia Santini. A Convenção Coletiva de Trabalho: São Paulo. LTr. 1986, p.

150.

negociação coletiva, estabeleceriam, a seus critérios, indenizações para hipóteses de rescisão antecipada de contrato diferente daquelas previstas na CLT.

A mesma legislação (Lei 9.601/98) também cria o “banco de horas”, modificando o §2º do art. 59 da CLT, que passa a prever a possibilidade de compensação anual de jornada, o que seguramente mostra-se inconstitucional porquanto nenhuma vantagem traz ao trabalhador 230.

A jurisprudência tem admitido que o acordo ou a convenção flexibilize alguns direitos legalmente assegurados, como é o caso acima citado de compensação de jornada de 12h de trabalho por 36h de descanso ou redução de intervalos de jornadas de trabalho legalmente assegurados, ou ainda para atribuir natureza indenizatória a utilidades ou benefícios concedidos pelo empregador231.

Esse fenômeno é explicado por Maurício Godinho Delgado232 através do princípio da “adequação setorial negociada”, segundo o qual:

[...] as normas autônomas juscoletivas construídas para incidirem sobre certa comunidade econômico-profissional podem prevalecer sobre o padrão geral heterônomo juslaboralista desde que respeitados certos critérios objetivamente fixados. São dois esses critérios autorizativos: a) quando as normas autônomas juscoletivas implementam um padrão setorial de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável; b) quando as normas autônomas juscoletivas transacionam setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa.

Por outro lado, a jurisprudência, inclusive do TST, muitas vezes tem admitido validade de negociações coletivas, flexibilizando, sem amparo no princípio acima aludido, direitos trabalhistas com assento constitucional. Exemplo disso é a

230 Diferentemente da compensação semanal, possibilitada expressamente na Constituição, ou mesmo da compensação mensal – jornada 12 x 36 -, que embora afronte norma da CLT quanto ao limite máximo da jornada diária, mostra-se benéfica ao trabalhador.

231 Notícia na página do Ministério Público do Trabalho na internet (www.pgt.mpt.gov.br) em 25/01/06 informa liminar em ação civil pública que suspendia a eficácia de várias cláusulas da convenção coletiva 2005/2006 firmada entre o Sindicato dos Trabalhadores em Estabelecimentos Comerciais de Roraima (SINTECO/RR) e a Federação do Comércio do Estado de Roraima (FECOMÉRCIO). As cláusulas previam os seguintes “direitos” aos trabalhadores: a) retiravam-lhe o direito à indenização adicional prevista na Lei 7238/84; aumentariam a jornada mínima semanal dos técnicos em radiologia prevista na Lei 7394/85; c) impunham “desconto assistencial” aos não associados, sem autorização expressa, em afronta ao art.545, da CLT.

232 DELGADO, Maurício Godinho. Obra citada, p. 159/160.

recente decisão no processo ROAA 242/2002-000-08-00.0, na qual o TST admitiu a flexibilização, via negociação coletiva, de multa do FGTS e aviso prévio233.

Como explica Luiz Carlos Amorim Robortella234: “desde que presentes certos pressupostos, reconhece-se à negociação coletiva a aptidão de modificar as condições contratuais, inclusive reduzindo determinados direitos, mediante negociação coletiva”. Para o autor, esta prerrogativa decorre do dinamismo do mercado de trabalho, que não mais convive com normas rígidas e intocáveis.

Mas não podemos nos esquecer de que são justamente as rígidas leis trabalhistas tão criticadas que garantem um mínimo de proteção e impedem que os trabalhadores brasileiros cheguem à precariedade de condições de vida alcançadas em alguns países asiáticos (jornadas de 12 horas, sem descanso semanal ou anual e baixa remuneração).

A filosofia da flexibilização através da negociação coletiva é de integrar o Brasil numa economia globalizada, incrementando a competitividade de nossas empresas. Não obstante esses fundamentos pressupõem algumas premissas necessárias, geralmente ocultas nos discursos dos defensores da flexibilização, quais sejam: a) para melhorar a condição de vida do país, é preciso aumentar a competitividade de nossos produtos; b) para tornar nossa produção mais competitiva, é preciso baratear seu custo; c) para baratear o custo, é preciso diminuir as despesas com mão-de-obra; d) nossas leis trabalhistas acarretam muita despesa com os trabalhadores; e) para cortar despesas, é preciso eliminar ou, pelo menos, afastar a aplicação das leis trabalhistas; f) para atenuar as despesas com aplicação das leis trabalhistas, é preciso substituí-las por normas contratuais; g) como as leis são de aplicação obrigatória e sua revogação encontra obstáculo insuperável, é

233 Notícia publicada em 31 de Outubro de 2005 no site do TST (www.tst.gov.br):

TST admite flexibilização da multa do FGTS e aviso prévio:

A Seção de Dissídios Coletivos (SDC) do Tribunal Superior do Trabalho assegurou a validade de cláusula de convenção coletiva que previu a dispensa do aviso prévio e o pagamento proporcional da multa de 40% do FGTS (demissão sem justa causa). A possibilidade de flexibilização e seu respaldo constitucional levou a SDC a deferir recurso ordinário em ação anulatória ao Sindicato das Empresas de Vigilância, Transporte de Valores, Curso de Formação e Segurança Privada do Estado do Pará (Sindesp/PA). (ROAA 242/2002-000-08-00.0)

234 ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. Obra citada. p.241.

preciso criar a alternativa de regular as relações entre empregados e patrões por meio de acordos entre as partes235.

Todavia o acordo entre as partes, dentro de um ambiente de autonomia coletiva privada, deve servir tão somente para elevar a qualidade de vida dos trabalhadores.

A globalização acarreta mudanças nas condições técnicas de organização do trabalho e na forma de contratação que fragmentaram o operário, minando sua identidade ocupacional e enfraquecendo-o politicamente 236.

Os exemplos de desregulamentação e flexibilização já experimentados são indicativos das práticas neoliberais demolidoras do poder do Estado, erodindo sua soberania e esvaziando seu espaço político237.

Cumpre registrar que não se podem admitir outras hipóteses de flexibilização, via negociação coletiva, dos direitos trabalhistas assegurados no artigo 7º da constituição brasileira de 1988, além das três contidas nos incisos VI, XIII e XIV (irredutibilidade de salário, duração normal do trabalho e jornada para trabalho em turnos ininterruptos de revezamento).

Há, entretanto, entendimentos contrários a este sob o argumento de que, se a Constituição já autoriza a flexibilização em matéria de salário, estaria implicitamente autorizando quanto às demais, pois o salário é o direito alimentar maior do empregado e, por isso, não faria sentido negar o menos e autorizar o mais.

Mas se fizermos uma apreciação sistemática, ainda que limitada ao artigo 7º da constituição, poderíamos concluir de outra forma. Se o referido artigo possibilitou a redução de direitos apenas nas hipóteses daqueles três incisos, evidenciou que não admitiu nos demais ali constantes.

É justamente no caput do art. 7º da Constituição Federal que reside o princípio basilar do direito do trabalho, o princípio protetor, que agasalha o

235 GIGLIO, Wagner D. A prevalência do ajustado sobre a legislação, p. 403. Revista LTr. São Paulo.

LTr. v. 66, n. 4, abril, 2002.

236 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada.. São Paulo. Malheiros, 2002, p. 232.

237 LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização Econômica Política e Direito. Porto Alegre. Sergio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 342.

princípio da norma mais favorável. Reza o dispositivo: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”.

Como bem observa José Afonso Dallegrave Neto 238, a partir da redação do caput do art. 7º da Constituição, todos os direitos dos trabalhadores deverão ser sempre vistos como um patrimônio mínimo, além de outros que visem à melhoria de sua condição social.

Portanto também o inciso XXVI do artigo 7º da Constituição, que dispõe sobre o “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”, deve ser visto de forma a garantir que pela da negociação coletiva somente seja possível elevar a condição social do trabalhador e não precarizar ainda mais seus direitos. Os instrumentos normativos jamais podem ser utilizados contra a manutenção de normas mínimas de proteção ao trabalho.

Flexibilizar a legislação trabalhista através da negociação coletiva como forma de aumentar a competitividade das empresas, num cenário de globalização da economia, tornando precárias as mínimas condições legais de trabalho existentes, não é a melhor saída para a crise que se vive. Submeter os trabalhadores aos desígnios da economia globalizada e subordinar o Direito do Trabalho (como direito fundamental social) à lógica do capital “é a mesma doutrina que prega a desnecessidade do Direito do Trabalho como instrumento de coesão social e de prevenção de conflitos”239.

Não se nega a necessidade de ampliar o espaço para a autonomia coletiva. E a Constituição de 1988, de certa forma, deu os primeiros passos para que isso aconteça. Estimulou a negociação coletiva, até mesmo permitindo a flexibilização de alguns direitos em determinadas condições, o que vai ao caminho de fortalecer o sindicato.

238 DALLEGRAVE NETO, José Afonso. Inovações na legislação trabalhista: reforma trabalhista ponto a ponto. São Paulo. LTr. 2002, p. 44.

239 RAMOS FILHO, Wilson. Direito, Economia, Democracia e o seqüestro da subjetividade dos juslaboralistas. Revista do Tribunal do Trabalho da 9ª Região. Curitiba. ano 26, nº 46, jun/dezm 2001, p. 157.

Todavia, como nota José Augusto Rodrigues Pinto240, “o sindicato brasileiro, em seu aspecto geral, ainda não se encontra idealmente preparado para assumir o papel que a flexibilização lhe reserva”, o que somente poderá ocorrer num ambiente de plena liberdade sindical, eliminando-se resquícios do autoritarismo ainda presentes na Constituição, tais como a unicidade sindical e a contribuição obrigatória. Enquanto isso não ocorrer, todo cuidado é pouco para “impedir que a negociação coletiva se transforme em instrumento opressor do economicamente mais fraco”.

Tem razão Rodrigues Pinto ao apontar a necessidade de remoção dos resquícios do autoritarismo ainda presentes na Constituição. Como visto no primeiro capítulo, nossa organização sindical é ainda aquela preparada para um Estado absolutista, totalitarista e intervencionista, que queria o sindicato como órgão de colaboração do Estado, exigindo seu reconhecimento e nele intervindo. A ideologia, à época, era negar a luta de classes, coibindo a greve como forma de pressão dos trabalhadores em suas reivindicações e colocando nas mãos do Estado a superação do conflito.

E foi observado no decorrer desse capítulo que esse sistema de organização sindical, somado à outras incongruências próprias do nosso sistema de negociações coletivas, não permitiu que estas se desenvolvessem.

Mas como também já anunciado, há outro fator inibidor da prática das negociações coletivas, que inviabiliza o diálogo necessário (diga-se aqui, à exaustão) com vistas ao estabelecimento de normas pelas próprias partes. Trata-se do sistema de soluções de conflitos adotado na legislação brasileira, que permite (ou permitia, como será analisado no último capítulo) ao Estado interferir no conflito de forma compulsória, ditando normas que a rigor deveriam ser elaboradas exclusivamente pelas partes. Desse assunto trataremos no próximo capítulo.

240 PINTO, José Augusto Rodrigues. O sindicato e a flexibilização do direito do trabalho. Revista da Academia Nacional de Direito do Trabalho, v. 4, ano 4, São Paulo. LTr. 1996. p.122/125.

3 CONFLITOS COLETIVOS DE TRABAHO E FORMAS DE SOLUÇÃO