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2 NEGOCIAÇÃO COLETIVA

3.7 O Poder Normativo na Constituição de 1988

Muito se discutiu na elaboração da Constituição de 1988 sobre temas ligados ao direito sindical. Estávamos prestes a iniciar um período novo, em que se almejava uma democracia plena, alterando-se paradigmas até então vigentes.

A estrutura sindical existente era ainda praticamente aquela herdada de mais de meio século de uma concepção unitária da soberania, própria dos governos totalitários e autoritários. Aos rumos democráticos que o país já vinha trilhando, isso se mostrava desajustado.

Embora a maioria dos autores concordasse que organização sindical vigente era incompatível com um regime democrático e que o Poder Normativo era de certa forma um desestímulo à negociação direta, muitos entendiam que o País ainda não estava amadurecido em sua plenitude para uma prática de negociação direta em matéria de conflitos coletivos de trabalho e, portanto, não se podia abrir mão do Poder Normativo como forma de solução desses conflitos. Anna Acker313, em livro publicado pouco antes da Constituição de 88, intitulado “Poder Normativo e Regime Democrático”, asseverava que “há atividades em que, por sua pequena expressão numérica e qualitativa, os empregados não dispõem de qualquer poder de barganha, nem mesmo se houver possibilidade de se chegar à greve, dada a fraca repercussão social que teria o movimento”.

313 ACKER, Ana Brito da Rocha. Obra citada, p. 68.

Um dos maiores argumentos daqueles que sustentam a manutenção do Poder Normativo reside mesmo no fato de os trabalhadores, em sua maioria, não estarem organizados a ponto de enfrentar os patrões em pé de igualdade.

Tarso Genro314, por exemplo, destaca a extrema desigualdade do movimento operário brasileiro ao estimar que 90% da classe trabalhadora é inorgânica e sem capacidade de barganha. A seu ver, suprimir o Poder Normativo seria retirar do Estado sua “função de promover novas condições para o exercício da liberdade, da igualdade e da participação social”.

Argumentava-se que os sindicatos fortes e com capacidade para negociar em equilíbrio de forças com as empresas eram poucos, localizados especialmente em regiões industriais de grandes concentrações operárias e bom desenvolvimento econômico, como os metalúrgicos do ABC paulista. A capacidade de negociação de um sindicato de cortadores de cana de uma região do nordeste não era a mesma.

A par disso, sustentava-se ser pressuposto para um sistema de negociação coletiva direta, sem a interferência estatal para a solução dos conflitos através do Poder Normativo, a existência de um sindicalismo combativo, diferente do que se via na grande maioria dos sindicatos existentes à época. E não se poderia imaginar a existência de um sindicalismo combativo num ambiente que não fosse de liberdade sindical plena, o que também não existia no Brasil.

As discussões que permearam a Assembléia Nacional Constituinte de 1988, quanto ao modelo de estrutura sindical que se deveria implantar, esbarravam em pontos chaves, todos necessários para a ruptura do sistema anterior: a manutenção ou não da unicidade sindical, da contribuição sindical e do Poder Normativo.

Os resultados obtidos com a Constituição de 1988 já foram de certa forma analisados no primeiro capítulo deste trabalho. Não foi possível remover a unicidade sindical, nem a contribuição sindical, nem tampouco o Poder Normativo.

314 GENRO, Tarso. Em defesa do Poder Normativo e da Reforma do Estado. Revista LTr. São Paulo.

LTr. v. 56, n. 04, abril, 1992, p. 414.

Afastou-se apenas a interferência e intervenção do Estado na organização sindical, mas não na solução dos conflitos coletivos de trabalho. Valorizou-se a negociação coletiva em vários dispositivos, mas manteve-se a possibilidade da interferência estatal através do Poder Normativo.

Ao tratar do Poder Normativo, manteve-o praticamente intacto, alterando-se apenas a redação de sua previsão no texto constitucional. O teor do

§2º do art. 114 passava a ser a seguinte: “Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho”.

A grande novidade era que o novo texto explicitava que o Poder Normativo não mais dependia de especificação legal infraconstitucional e seus limites eram fixados pela própria Constituição que exigia apenas o respeito às

“disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho”.

Outro aspecto importante se poderia extrair da redação daquele dispositivo. Se por um lado o Poder Normativo parecia ter sido ampliado, o legislador constituinte já apontava uma inclinação para o seu fim ao indicar expressamente no texto constitucional, como condição do ajuizamento do dissídio, a tentativa da negociação direta. Com isso, estava-se privilegiando a negociação coletiva em detrimento do Poder Normativo.

Para Otávio Brito Lopes315, “o texto constitucional deixava claro que o Poder Normativo, até mesmo por sua excepcionalidade, não poderia ser utilizado indiscriminadamente como sucedâneo da negociação coletiva exercida diretamente pelos atores sociais”.

O STF, embora reconhecendo que a competência normativa dos tribunais trabalhistas teria sido alargada pela Constituição de 88, impunha limites ao conteúdo da nova disposição constitucional, asseverando que, no contexto do

315 LOPES, Otávio Brito. O Poder Normativo da Justiça do Trabalho após a Emenda Constitucional nº.

45 Revista LTr vol. 69, nº 2, fev de 2005, p. 166.

regime político que a Carta Magna pregava, o Poder Normativo jamais poderia ser alçado ao grau de um poder irrestrito de legislar. O Poder Normativo só poderia ser exercido no vazio da lei e quando sobre o tema a constituição não adotasse o princípio da reserva legal.

Sob o velho argumento de que por intermédio do Poder Normativo o Judiciário estaria invadindo a esfera de competência do Legislativo, criando o direito, a jurisprudência do STF passou a distinguir matéria de lei e matéria de dissídio coletivo, asseverando que, havendo lei, não poderia a Justiça do Trabalho fixar normas e condições de trabalho em desacordo com seus dispositivos. Ou seja, segundo jurisprudência do STF (RE 19.7911-9-PE, j. 24.9.96, Rel. Min. Octávio Galloti), o Poder Normativo previsto no art. 114 da Constituição permite aos Tribunais do Trabalho criar normas através do dissídio coletivo “desde que atue no vazio deixado pelo legislador e não se sobreponha ou contrarie a legislação em vigor, sendo-lhe vedado estabelecer normas e condições vedadas pela Constituição ou dispor sobre matéria cuja disciplina seja reservada pela Constituição ao domínio da lei formal”316.

No TST a jurisprudência também caminhou neste sentido317, embora não seja esta a opinião de todos os seus membros. Ives Gandra Martins Filho318, enquanto ministro daquela corte, ao tratar da amplitude do Poder Normativo previsto no texto constitucional de 1988, assevera que o patamar é formado pela Constituição e demais normas legais e convencionais, que tem como teto a “justa retribuição ao capital” (CLT, art. 766) e que o magistrado poderá decidir como legislador, sem apoiar-se em norma jurídica, mas criando-a, utilizando como critérios a eqüidade e o bom senso.

316 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Obra citada, 2001. p. 297.

317 Jurisprudência do TST: DISSÍDIO COLETIVO. “No julgamento de dissídio coletivo de natureza econômica, poderá a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, conforme dispõe o artigo 114, §2º, da Constituição da República. Todavia, o estabelecimento de normas e condições pressupõe a inexistência destas, ou serem elas de conteúdo mínimo. Se a legislação disciplina matéria e não sendo a norma legal de conteúdo mínimo, não há que se falar na incidência da competência normativa. Por outro lado, a competência normativa não é uma imposição, mas uma faculdade, que deve ser exercida levando em conta o equilíbrio das relações entre o trabalho e o capital, sem uma interferência minuciosa no poder de comando da empresa, pois isto não contribui para o fortalecimento da negociação coletiva direta, que deve premiar sobre o sistema jurisdicional de criação da norma. Recurso parcialmente proviso” (TST-RO-DC 180.734/95-2, Rel. Min. Indalécio Gomes Neto, DJU de 7.12.95, p. 42).

318 MARTINS FILHO, Ives Gandra. Obra citada, p. 43.

A atuação do Judiciário no exercício do Poder Normativo tem se mostrado tímida e as razões disso são apontadas por Marcelo Lamego Pertence319:

a) entenderem que a atribuição daquele poder, embora legal, tenha algo de ilegítima, tendo em vista sua origem; b) pela influência das afirmações da necessidade de autoregulamentação pelas próprias partes envolvidas no conflito; c) pelo que podemos chamar de caldo de cultura quanto à preservação da empresa como forma de preservar os empregos; d) pela necessidade de redução de custos ou, pelo menos, de seu não crescimento; e) pelas diferenças existentes até mesmo entre empresas de uma mesma categoria econômica; e f) pelas severas críticas de que é alvo o Poder Normativo da Justiça do Trabalho.

Também contribuiram para um estrangulamento do dissídio coletivo os posicionamentos adotados no sentido de somente examinar o mérito dos dissídios coletivos após exaustivamente comprovado que as partes efetivamente empregaram todos os meios no sentido de buscar uma composição para o conflito.

Para o ajuizamento do dissídio, passou-se também a exigir o cumprimento de diversos aspectos formais, os quais foram especificados na Instrução Normativa nº.

4 do TST, expedida em 8.8.93, cancelada dez anos depois, em 20.3.03.

O TST adotou também a política de aprovar Precedentes Normativos com intuito de uniformizar suas decisões em dissídios coletivos. Tais precedentes não contribuíram para estimular a negociação coletiva direta, na medida em que impõem limites às decisões e as partes já sabem com antecedência o posicionamento a ser adotado na decisão. Outra crítica que se faz a tais precedentes é que eles planificam as decisões, desconsiderando as realidades distintas das várias categorias que recorrem ao Judiciário320.

O que se tem observado é que o Poder Judiciário não mais defere aos trabalhadores, como nos anos 80, direitos inexistentes em instrumentos normativos anteriores, tendo se restringido ou à oferta patronal ou, no máximo, respeitando as disposições convencionais anteriores, em obediência à norma do §2º do art.114, da CF/88, embora muitas vezes negue-se até mesmo a isso, sob o

319 PERTENCE, Marcelo Lamego. O exercício do Poder Normativo da Justiça do Trabalho.

(dissertação de mestrado – PUC de Minas Gerais). Belo Horizonte, 2003. p. 48.

320 PINTO JUNIOR, Dirceu Buys. O apogeu e o declínio do Poder Normativo. (dissertação de mestrado – UFPR). Curitiba, 2005. p. 34.

argumento de que as cláusulas anteriormente pactuadas não aderem aos contratos de trabalho (súmula nº. 277 do TST321).

Constatou-se, nos anos que se passaram após a promulgação da Constituição de 88 que as poucas alterações por ela impostas não foram suficientes para desenvolver um sindicalismo forte e autêntico de forma a impulsionar a negociação coletiva em detrimento do dissídio coletivo.

A vedação de interferência e intervenção estatal na organização sindical e os dispositivos que valorizam a negociação coletiva até fizeram com que com essa ganhasse alguma força. Mas, infelizmente, a via jurisdicional ainda é corriqueiramente escolhida para se solucionar os conflitos coletivos do trabalho, notadamente nos conflitos de natureza econômica. E isso se deve, em grande parte, não apenas à cultura dos brasileiros por depositarem confiança no Poder Judiciário, mas especialmente por outras vantagens específicas que vêem as partes na solução jurisdicional, quer no sentido de suprir-lhes a incapacidade e inabilidade para negociar (boa parte dos sindicatos de trabalhadores), quer mesmo no sentido de inviabilizar a negociação e a concessão de vantagens à outra parte (boa parte das empresas e seus sindicatos).

Concordamos com Magano 322 quando ele afirma que o Poder Normativo interfere no natural processo de negociação coletiva, impedindo que o conflito seja resolvido pelas partes. De fato, o Poder Normativo inibe a negociação coletiva, mas, como já se viu em capítulo anterior, não é ele, por si só, o único obstáculo do necessário diálogo entre as partes. Se torna-se necessário afastá-lo, também devem ser afastados vários outros obstáculos existentes em nosso sistema de organização sindical, pois ela está intimamente entrelaçada com o sistema de negociações coletivas, na qual projeta seus defeitos.

Por isso muitos sustentam que, apesar desse mal, ele ainda se mostra necessário dado ao baixo grau de representatividade e poder de barganha dos sindicatos no Brasil.

321 Súmula 277/TST: “As condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva os contratos”.

322 MAGANO, Octavio Bueno. Obra citada, p.198.

O que restava evidente era que a Constituição de 88 contém antinomias que prejudicam o desenvolvimento da negociação coletiva direta entre as partes. Como já destacou Romita, temos uma situação híbrida inexplicável em que as normas constitucionais brigam entre si, sem uma opção ideológica no conjunto da Constituição323. E isso ocorre notadamente com relação ao monopólio sindical e o Poder Normativo em relação ao pluralismo pregado como fundamento da democracia que se queria implantar.

A manutenção da unicidade sindical e do Poder Normativo da Justiça do Trabalho continuou a preocupar boa parte dos que se envolviam diretamente com o direito sindical no Brasil. Até mesmo a OIT já pressionava o governo brasileiro, solicitando medidas:

“con miras a la modificación de la legislación con objeto de que el sometimiento de los conflictos colectivos de intereses a las autoridades judiciales solo sea posible de común acuerdo entre las partes o bien en el caso de servicios esenciales en el sentido estricto del término (aquellos cuya interrupción podría poner en peligro la vida, la seguridad o la salud de la persona en toda o parte de la población)324.

A independência das partes na negociação coletiva, sem intervenção das autoridades públicas na elaboração e conclusão dos contratos coletivos, já é apregoada pela OIT desde a Convenção 98 de 1949. O Brasil, embora tenha ratificado tal instrumento em novembro de 1952, não deu conta de que a intervenção estatal é contrária ao critério em que se inspira o artigo quarto da referida convenção325/326.

O que se põe em relevo nas modificações cobradas pela OIT é justamente a não-intervenção do judiciário na solução dos conflitos coletivos de interesse, salvo quando esta intervenção for solicitada de comum acordo entre as

323 ROMITA, Arion Sayão. O Poder Normativo da Justiça do Trabalho: antinomias constitucionais.

Revista LTr. São Paulo. LTr. v. 65, n. 03, março, 2001, p. 265.

324 MAGANO, Otávio Bueno. Modelo Político e atividade sindical. In PRADO, Ney, organizador da obra “Direito Sindical Brasileiro – Estudos em Homenagem ao Prof. Arion Sayão Romita”. São Paulo.

LTr. 1998, p. 287.

325 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Obra citada, p. 101.

326 Convenção nº. 98 da OIT, sobre direito sindical e negociação coletiva. Art. 4º “Deverão ser adotadas, quando necessário, medidas adequadas às condições nacionais, para estimular e fomentar, entre os empregadores e as organizações de empregadores, de uma parte, e as organizações de trabalhadores, de outra, o pleno desenvolvimento e uso de procedimentos de

partes ou quando o conflito colocar em risco a manutenção de serviços essenciais à população. Ou seja, o poder judiciário somente poderia atuar na solução dos conflitos quando, de comum acordo, as partes a ele recorressem como forma de arbitragem pública voluntária ou nos casos de greve com paralisação de serviços essenciais que colocassem em risco o interesse público.

Neste sentido parece ter sinalizado a Reforma do Poder Judiciário ditada pela Emenda Constitucional 45 de 2004. A referida reforma trouxe profundas alterações no Poder Normativo da Justiça do Trabalho, já sustentando algumas vozes, até mesmo a sua extinção. Cuidaremos, então, no próximo capítulo, das modificações impostas por essa reforma e as conseqüências que isso acarretará no plano das futuras relações coletivas de trabalho.

negociação voluntária, com o objetivo de regulamentar, por meio de contratos coletivos, as condições de emprego”.

4 O PODER NORMATIVO DIANTE DA REFORMA DO JUDICIÁRIO