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A nostalgia e a gratuidade na hospitalidade

Mapa 22 – Mapa de conforto físico e ambiental da Avenida Engenheiro

1.1. AS ORIGENS DO CONCEITO

1.1.1. A nostalgia e a gratuidade na hospitalidade

Certos acontecimentos do século passado, tais como a intensa urbanização, a explosão demográfica, o desenvolvimento cientifico e tecnológico, as novas estruturas econômicas e, principalmente, a ampliação do poder aquisitivo de uma parcela considerável da população das sociedades contemporâneas, mudaram a relação entre visitantes e receptores, hóspedes e anfitriões (GRINOVER, 2007). Esses fatores marcam definitivamente a passagem da hospitalidade para o acolhimento mercantilizado afirmando o turismo como uma atividade econômica e rentável (CAMARGO, 2002).

Mas, ao desenvolver e planejar o receptivo turístico, os estudiosos do setor buscam alcançar a qualidade máxima nos serviços para atender com excelência aos visitantes. Dessa forma, a hospitalidade vem sendo percebida atualmente dentro do fenômeno turístico por meio da reflexão entre quem recebe e quem é recebido e como isso pode influenciar a sensação de hospitalidade ou de hostilidade.

Contudo, essa hospitalidade que passou a ser paga cria um certo tipo de paradoxo, uma vez que sua essência está amarrada na gratuidade. Dessa forma, para muitos autores, ocorre hoje a instrumentalização da hospitalidade pelo dinheiro, trocando a gratuidade da cama, da mesa e da segurança a uma troca mediatizada (CAMARGO, 2008).

Para Darke e Gurney (In LASHLEY e MORRISON, 2004, p. 112), a hospitalidade representa em sua essência à mercantilização do trabalho doméstico e o uso do termo abrange uma metáfora ampliada, sugerindo que a prática adequada na hospitalidade comercial é uma simulação da visita ao lar de um anfitrião ideal, atendo a todas as necessidades da visita, mesmo que esse ideal seja muito difícil de ser alcançado.

Mas será que a comercialização da hospitalidade e do acolhimento implica obrigatoriamente em uma depreciação dessa atividade? É verdade que o serviço ao cliente e sua exploração financeira são de tal modo imbricados um no outro, que se tornou quase impossível separá-los. Mas se um hospedeiro comercial atende bem aos seus hóspedes, cobrando-lhe um preço justo e razoável, não extorsivo por aquilo que oferece, suas atividades podem sim ser chamadas de hospitaleiras. Para Telfer (2004), não se pode dizer que um hospedeiro comercial se comporta com hospitalidade só pelo fato de ser pago por seu trabalho.

Assim, parece que a hospitalidade se tornou um tema nostálgico e, ao mesmo tempo, um artigo da moda, uma qualidade que se busca na hospitalidade comercial e na hotelaria. Como se vê, alguns autores insistem em repetir que a hospitalidade era praticada antigamente de uma bela maneira e que atualmente ela não é “mais que um ritual praticamente caído no esquecimento ou pervertido pelo materialismo e pelo egoísmo que caracterizam a sociedade contemporânea” (Montandon in Dencker, 2003, p. 135). Para Abre (In DENCKER, 2003, p. 39):

A vida das pessoas e das organizações tornou-se quase totalmente rotinizada, devendo ter a precisão de um relógio. As pessoas têm um determinado tempo para efetuar cada ação, planejada previamente de maneira minuciosa, para que seja cumprida no prazo certo e com sucesso. Em muitas organizações da área da hospitalidade, nota-se que a maneira mecânica como só funcionários trabalham é baseada na imagem das máquinas ou quase robôs. Em muitas organizações, um turno de trabalho substitui outro de maneira metódica, de forma que o atendimento de ‘alto padrão aconteça 24 horas por dia. Novamente se volta à questão: isso pode ser caracterizado como hospitalidade? Ou ainda: estaríamos dentro de um sistema técnico de hospitalidade?

Para Montandon (In Dencker, 2003, p. 139), a ideia de uma hospitalidade original, arcaica, pode estar suportada em três momentos: nas narrativas dos viajantes que mantinham um contato com povos primitivos ou arcaicos, pela literatura bíblica e pelos poemas épicos da Grécia antiga, através do nome de Homero. Ou seja, todos os exemplos acima mencionados se baseiam em uma falsa representação uma vez que deixam claro o desejo pela hospitalidade original e pela nostalgia.

Ao ler a Odisseia e a Bíblia, parece bastante claro que a nostalgia faz parte da hospitalidade e do desejo de hospitalidade. A

viagem de Ulisses6

é movida pela nostalgia de uma hospitalidade fundamental, a qual ele prova a cada encontro:

Quando Ulisses, ao atravessar os mares, fazia de cada uma de suas aventuras a prova da hospitalidade, tanto para o herói quanto para o anfitrião (que não sabia se estava recebendo o filho de um rei ou um pirata). Assim, tratava-se de conhecer a que tipo de humanidade ele pertencia, se ele reverenciava os ritos e os deuses ou se era um ser sem fé e sem lei, um selvagem. Quando Ulisses aporta a uma nova casta, vem em sua mente a mesma pergunta, incessantemente: “Encontrei brutos, selvagens sem justiça, ou homens hospitaleiros, tementes aos deuses? (13:200-202).

Ou seja, os encontros de Ulisses marcam uma sucessão de fracassos das cenas hospitaleiras, que nos fazem questionar se há realmente um modelo ideal de hospitalidade. No poema é possível ver a decepção do protagonista a cada encontro, ou seja, a acolhida só pode ser efêmera e parcial. Ao apresentar outras narrativas de viajantes, Montandon (2003, p. 141) questiona a legitimidade da

6 Personagem principal da Odisséia de Homero, um dos principais poemas épicos

da Grécia Antiga, Ulisses, ou em grego Odisseus, leva dez anos para chegar em sua terra Natal depois da Guerra de Tróia.

hospitalidade, colocando-a como um mito, um ideal muito difícil de ser atingido:

À imagem de uma hospitalidade universal, geral, única, se opõe a realidade de praticas muito especificas e muito diferenciadas, ligadas à divisão do trabalho social, e que uma de suas origens seria historicamente uma primeira separação entre a hospitalidade e a caridade. A ideia ou o sentimento de declínio do elo hospitaleiro nasce dessa quebra, divisão, desaparecimento daquilo que constitua em elo paradigmático da relação social.

Assim, Montandon (2004, p. 141-142) constata que a hospitalidade forma um sistema instável, jamais satisfeito plenamente, ela é sempre uma prova e um risco. Diferente da “acolhida” ou da “recepção”, que, segundo o autor é uma performance que se realiza inteiramente. Dessa forma, a hospitalidade à qual recorremos nas diferentes formas do turismo e do comércio hoteleiro é entendida como um sinônimo de “boa acolhida” ou “boa recepção”. A utilização comercial desses termos indica, em todo caso, como a hospitalidade permanece uma marca, uma perspectiva e um horizonte para uma interação bem sucedida entre os homens, quer seja clientes, amigos ou estrangeiros.