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A oração comunitária do século IV ao século VI

No documento Maria da Gloria Melo de Souza (páginas 55-59)

7. Elementos de Inculturação

2.1. Descrição do instrumental de análise

2.1.1.4. A oração comunitária do século IV ao século VI

Em nosso itinerário histórico, chegamos à primeira metade do século III e agora passaremos ao período que se estende do século IV ao século VI, cujo ponto de partida é a paz

111 De oratione 25, CCL 1, p. 273.

112 La Tradition Apostolique de Saint Hipplyte 25, p.66-67. 113 De oratione 25, CCL 1, p. 273.

de Constantino, em 313. Nesta época, a Igreja adquiriu a liberdade para desenvolver os aspectos externos e públicos de sua vida. Os efeitos se tornaram imediatamente visíveis na organização da Igreja, na arte, na arquitetura a na liturgia: dioceses eclesiásticas e províncias foram erigidas, mosteiros foram fundados, basílicas e batistérios construídos e adornados com belos mosaicos... As celebrações litúrgicas, até aquele tempo realizadas furtivamente por uma minoria perseguida, tornam-se, então, parte integrante da vida pública cotidiana do Império Romano. Nesta época favorável para a vida litúrgica, as horas de oração começam a se organizar e as suas fórmulas a se fixar. Como dissemos, no período anterior, já tinham sido introduzidos alguns cânticos, salmos e hinos, algumas leituras bíblicas e uma breve pregação, no Ofício 115.

À proporção que se multiplicavam os santuários, o culto foi-se organizando conforme duas tendências que se completam: uma vem das comunidades paroquiais ou catedrais, a outra, das comunidades monásticas.

Estas duas tradições, que vão se firmando a partir do século IV, têm a sua origem em dois modos diferentes de computar o tempo do dia. O Ofício Catedral inspirou-se no cômputo do tempo dos judeus: a experiência pascal diária à tarde e pela manhã. Surgiu, então, o ofício diário dos Louvores Matinais, chamados depois de Laudes, e dos Louvores Vespertinos, depois chamados de Vésperas. Além destas duas reuniões, havia ainda as Vigílias ou assembléias noturnas para as quais os fiéis podiam ser convocados a participar. Semelhantemente à Vigília Pascal, outras grandes festas como o Natal, a Epifania e Pentecostes, eram celebradas com uma Vigília na qual havia leituras, orações, cantos, terminando com a Eucaristia. Em muitas igrejas, as Vigílias eram celebradas cada domingo, embora estas não fossem tão prolongadas como em dia de festa, e, algumas vezes, às sextas-feiras . As Vigílias mais populares eram as dos mártires, que eram celebradas junto a seus túmulos 116.

Este era o Ofício das igrejas locais do qual participava todo o povo: bispo, presbíteros, diáconos, eremitas, virgens consagradas, e leigos em geral, como o descreve Egéria, em seu Itinerarium ou diário de viagem117, testemunho particularmente significativo, descrição que revela a grande capacidade de observação e o fervor religioso dessa mulher, que devia ser monja ou virgem consagrada. A oração descrita por Egéria era, de fato, a oração da Igreja reunida em sua expressão mais plena, a oração pública do povo de Deus, em torno do bispo e dos presbíteros.

115 Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. op.cit. p. 161. 116 Cf. Ibid. p. 161.235.

O Ofício Monástico, por sua vez, inspirou-se na maneira romana de computar o tempo do dia: as vigílias. Cada vigília era constituída de três horas (cf Lc 2,8; 12,.38). Hipólito de Roma fala dessas horas e liga a oração dos cristãos a elas 118. Este Ofício, que é completo e

cotidiano, é celebrado apenas pelos monges, quer nos oratórios dos mosteiros, quer nas basílicas servidas por eles119.

Quando dizemos que o Ofício Monástico é completo, significa que o mesmo compreende - além de Laudes e Vésperas – Terça, Sexta, Noa, às quais se acrescentaram, mais tarde, a Prima e as Completas. Além disso, os monges institucionalizaram as Vigílias como ofício cotidiano. O primeiro texto que fala um tanto detalhadamente sobre a existência de ofício regular encontra-se no diário de viagem de Egéria, ao qual acenamos acima. Como testemunha esta monja, no fim do século IV, existe, em Jerusalém, um conjunto de reuniões piedosas, umas cotidianas, outras dominicais. Este ofício não é celebrado por inteiro em nenhuma igreja da cidade, mas cada uma celebra parte dele. De todo o “cursus” das Horas, há dois eminentemente populares: o da manhã e o da tarde. Este conjunto de orações pode ser considerado o Ofício da comunidade da igreja local, ampliado e prolongado pelos ascetas120.

O diário de Egéria não nos informa, pois, somente sobre o “cursus” de oração de todo o povo de Jerusalém, mas nos fala também da evolução deste Ofício: a oração das comunidades monásticas121. Entre os cristãos piedosos havia aqueles que não se contentavam com reuniões periódicas, embora frequentes; eles aspiravam a uma vida de perfeição e se consagravam ao Senhor na ascese e na oração, permanecendo na cidade, levando uma vida menos isolada. Eles eram assíduos ao louvor divino, realizando, na medida do possível, uma salmodia ininterrupta, fazendo a síntese entre o louvor e a meditação da Palavra.

Outro grupo de cristãos se retirava para o deserto, vivendo sozinhos ou em pequenos grupos. A oração destes monges (anacoretas) era mais livre, mais simples, menos organizada: repetiam os mesmos versículos à maneira dos responsórios da salmodia responsorial, revolviam no coração o nome de Jesus ou alguma palavra da Escritura, o que mais tarde se chamou jaculatórias... Os cenobitas, porém, aceitando a proposta da Igreja, se reuniam nas diferentes horas do dia para rezar: tinham horas fixas para as orações comunitárias e fórmulas estabelecidas. Estes grupos de monges, que viviam em comunidade, começaram com

118 Cf. La Tradition Apostolique de Saint Hippolyte 35; 41. p. 82-83; 88-97.

119 Cf. BECKHÄUSER, Alberto. O sentido da Liturgia das Horas, p. 20-21; SÁLMON, Pierre. A Oração das Horas, p. 926. 120 Cf. Itinerario de la Virgem Egeria, p. 257-258; 260-265.

121 Por monges não se entendem aqui apenas os discípulos dos Santos Pacômio, Basílio, Columbano ou Bento, mas também a

multidão dos cristãos piedosos, não menos fervorosos que os monges, e que se agrupavam em torno das basílicas, para assegurarem nelas o serviço da oração. Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. op.cit. 162.

a recitação integral e “por ordem” de todo o saltério, num período de tempo determinado, variando de um a quinze dias, pois acreditavam que os salmos fossem uma verdadeira escola de oração. A oração comunitária dos mosteiros tem o caráter de uma calma meditação da Palavra de Deus. A nota mais característica e universal do monaquismo era a oração noturna, que iniciava ao cantar do galo e terminava às primeiras horas do dia122. A finalidade principal, porém, do rezar comunitariamente, em determinados momentos do dia, permanecia a mesma: viver a oração contínua.

Merece um destaque especial a estrutura do ofício beneditino, descrita na Regula

monasteriorum. São Bento (+ 547) dedica grande número de capítulos de sua Regra ao chamado “código litúrgico” 123, no qual, inspirando-se no ofício monástico-basilical romano, ele apresenta uma estrutura quase perfeita da Oração das Horas124. Entre todas as regras monásticas, a Regra Beneditina é a que apresenta uma descrição mais detalhada do Ofício. No capítulo 16, São Bento cita a Escritura para justificar as sete Horas de oração durante o dia: “Sete vezes por dia Te louvo”(Sl 119 (118),164).

A estrutura do ofício beneditino compreende: Matinas (ofício noturno), Laudes, Prima, Terça, Sexta, Noa, Vésperas e Completas. Os 150 salmos são distribuídos em uma semana, da seguinte maneira: doze para o ofício noturno, três para as horas diurnas, sete para as Laudes e quatro para as Vésperas. São Bento, seguindo o exemplo de São Cesário de Arles, admite o uso dos hinos, proveniente do rito ambrosiano. Inclui também alguns elementos bizantinos, como o evangelho da ressurreição no final das vigílias dominicais e o hino ou doxologia Te decet laus (A Ti convém o louvor) 125.

Além da grande difusão e influência que o ofício beneditino teve, a partir do século VIII, no monaquismo do Ocidente, houve também repercussão do mesmo, embora em menores proporções, no Ofício Catedral. No início do segundo milênio, o ofício beneditino se tornou o Ofício Monástico por excelência da Igreja Ocidental.

Pelo que pudemos observar, o Ofício Popular (da Catedral ou Paroquial) e o Monástico não se opõem, mas se completam. O ofício dos monges, mais completo, adotou todas as Horas, tornou-as cotidianas e acrescentou Prima e Completas. Nas igrejas, paroquiais ou catedrais, nas quais está presente a comunidade, sob a presidência e com a colaboração ativa

122 Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. op.cit. p.162-163. 123 Regra de São Bento. cap. 8-18, p. 48- 65.

124 Cf. AUGÉ, Matias. op.cit. p.260-261. 125 Cf. PINELL, Jordi. La liturgia delle Ore. p. 62.

das várias ordens do clero, celebrava-se diariamente um Ofício mais simples, pela manhã e ao entardecer.

O Ofício Monástico tem, como próprio, a recitação seguida dos salmos, enquanto o Ofício Popular é rico em antífonas, responsórios e orações.

Segundo Taft, os ofícios monásticos não tinham uma relação particular com os momentos do dia nos quais eram celebrados, mas eram considerados simplesmente um estímulo para a oração contínua dos monges. As Laudes e as Vésperas no Ofício Catedral, no entanto, tinham clara relação com os tempos da celebração: salmos, cantos, símbolos eram escolhidos de modo que se adaptassem à hora 126.

Ao concluir o estudo sobre a história da Liturgia das Horas do século IV ao VI, período marcado por essas duas tendências complementares – Ofício Catedral e Ofício Monástico – verificamos que cedo desapareceu, no Ocidente, a distinção entre o Ofício Catedral e o Ofício Monástico, como resultado da “mosteirização” geral da Oração das Horas; tal “mosteirização” se deve à importância que as grandes abadias assumiram naquela época em que a sociedade romana se desmembrou dando origem a numerosos reinos bárbaros e ao crescimento da sociedade agrícola feudal127. Seria, pois, incorreto opor o Ofício Catedral ao Ofício Monástico. Sobretudo nas cidades onde residiam monges e ascetas, os dois Ofícios se uniam com frequência. Ao menos nas Horas principais, monges e fiéis rezavam juntos. A união harmoniosa destas duas expressões e ritmos de oração – Ofício Catedral e Ofício Monástico – constitui o patrimônio tradicional da Liturgia das Horas, tanto no Oriente como no Ocidente.

No documento Maria da Gloria Melo de Souza (páginas 55-59)