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Sobrecarga e decadência do ritmo das Horas (século X-XVI)

No documento Maria da Gloria Melo de Souza (páginas 59-62)

7. Elementos de Inculturação

2.1. Descrição do instrumental de análise

2.1.1.5. Sobrecarga e decadência do ritmo das Horas (século X-XVI)

Observamos um crescendo, ao percorrer a história da Liturgia das Horas até o século VI: o Ofício vai tomando forma, vai-se estruturando e a sua teologia começa a se esboçar. Porém, não podemos dizer o mesmo sobre o período que vai do século X ao XVI, que passaremos a estudar de maneira bem mais detalhada que o anterior.

Na Idade Média, o Ofício Divino deixou de ser a oração de todo o Povo de Deus, como o era nos primórdios, tornando-se excessivamente clerical e monástico; isto se deve, entre outras razões, ao uso exclusivo do latim, que afastou não só os fiéis, mas até os irmãos leigos,

126 Cf. TAFT, Robert. op.cit. p. 281-282. São Bento conheceu as duas tradições: a recitação dos salmos, um após o outro,

numericamente, como faziam os monges, e também o costume das Igrejas de selecionarem alguns salmos de acordo com o seu conteúdo e estilo para cada ofício.

que começaram, então, a buscar formas alternativas mais populares de oração, como o “Anjo do Senhor”, o Rosário e outras sobre as quais falaremos mais adiante.

Como se não bastasse esta forma erudita que o Ofício foi adquirindo, e que o tornou incompreensível para o povo, no correr dos séculos, o ideal de oração foi obscurecido por duas tendências: por um lado, foram introduzidos elementos novos e apêndices ao Ofício cotidiano, sobrecarga que o transformou em um pesado dever ou mesmo em uma obrigação insuportável, primeiro no meio monástico e depois nas outras igrejas, e, certamente também por este motivo, deixou de ser celebrado em comunidade pelo clero passando a ser rezado em particular. Por outro lado, desapareceu a referência ao ritmo natural das horas, a correspondência ao tempo que indicavam ou, usando uma expressão do Concílio Vaticano II, a “verdade das horas” (veritas horarum) (cf SC 88). Esta distorção resulta, entre outras razões, do fato de o Ofício ter deixado de ser celebrado em comunidade e ser recitado em particular.

Foi Santo Tomás de Aquino que estabeleceu o princípio pelo qual se confirmou teologicamente a recitação “privada” do Ofício. Mais tarde também se justificará sua obrigação a partir desse princípio. Santo Tomás distingue no clérigo dupla obrigação: perante Deus e perante a Igreja. A obrigação perante Deus é pessoal e permanente. A obrigação para com a Igreja regula-se por leis positivas e determinações eclesiásticas. Quanto à residência, a obrigação pessoal pode ser substituída por alguém que a supra128.

Neste período129, era inconcebível, e mesmo impossível, uma uniformidade

absoluta, pois, deixando-se arrastar pela tendência devocional própria da época, o Ofício Romano tinha-se carregado muitíssimo com orações suplementares, como sufrágios, preces, procissões com o canto de antífonas e responsórios. Não existia, portanto, um livro único para o Ofício Divino. Os coros catedrais e monacais se viram obrigados a usar vários volumes que continham diversos livros litúrgicos: saltérios, hinários, lecionários, antifonários, martirológios... Devido a este acúmulo de livros, começava-se, no século XI, a fundir o conteúdo dos vários livros litúrgicos em número mais restrito de volumes. Com certeza, o surgimento das ordens mendicantes, que não tinham stabilitas loci, como os monges, teve também sua influência no aparecimento do breviário. No entanto, se deverá esperar até o século XIII para o término desta obra de fusão, em um só livro – o breviário - de todos os formulários usados na celebração do Ofício: este único volume continha os elementos básicos do Ofício e se destinava

128 Cf. GONZÁLEZ, R. A oração da comunidade cristã (século II-XVI). In VV.AA. Liturgia das Horas, p. 315.

129 Apoiamo-nos, nesta parte do nosso trabalho, dedicada a este período da história do Ofício Divino, no tratado, sobre a Liturgia

das Horas, do grande estudioso desta matéria, Jordi Pinell, por nós já citado. Cf. PINELL, Jordi. Liturgia delle Ore (Anàmnesis 5), p. 198 - 200.

àqueles que, devido a viagens ou ausências justificadas, não podiam participar da celebração comunitária. Sim, esta era a preocupação principal que movia a reforma: encontrar o modo de modernizar, simplificar ou abreviar o livro de Oração das Horas, tendo em mente, em particular, os clérigos ocupados em ministérios pastorais, e que, portanto, deviam recitar o Ofício em particular.

Em 1215, o Papa Inocêncio III (1198-1216), por ocasião do IV Concílio de Latrão, ordenava uma revisão do Ofício, da qual tem origem o Breviarium Romanae Ecclesiae Curiae. Este breviário foi logo adotado por outras igrejas. Na segunda regra de São Francisco (1223), está determinado que os frades menores devem adotar o Breviário da Cúria Romana. E foi graças aos franciscanos que este breviário se difundiu rapidamente por toda parte.

Contudo, o breviário de Inocêncio III tinha seus limites, por exemplo, as leituras da Sagrada Escritura e da Patrística se tornaram muito longas. Nos breviários do século XVI, ao contrário, as leituras foram muito abreviadas, mas houve um crescimento progressivo das festas do calendário e também uma crescente complicação no modo de se estabelecer os graus de solenidade das festas.

Entre as várias tentativas de reforma do breviário que caracterizaram o século XVI, vale mencionar especialmente o Breviarium Sanctae Crucis (1535), conhecido como o breviário de Quiñonez, e a edição definitiva, reformada por Pio V (1568).

A obra do cardeal Quiñonez, ordenada por Clemente VII (1523-1534), demonstra uma grande coragem em romper com os liames da tradição mais imediata – o período do barroquismo de um ofício canonical, a sobrecarga de orações suplementares... – e segue critérios objetivamente válidos. Neste sentido, são dignos de nota a importância dada à Sagrada Escritura, o espírito crítico com o qual submeteu à revisão as leituras hagiográficas e o grande empenho em preparar um livro de oração breve e substancial.

O Breviarium Sanctae Crucis teve um grande sucesso: em vinte anos foram feitas mais de cem edições! No entanto, representava um corte brusco demais com a tradição, o que ocasionou reações contrárias, certamente motivadas por princípios históricos que a reforma de Quiñonez não havia levado em consideração.

A nova edição do breviário foi obra de Pio IV (1559-1565) e Pio V (1566-1572). O novo breviário – o Breviarium romanum - aprovado com a bula Quod a nobis, por Pio V (9 de julho de 1568), foi publicado no mesmo ano de 1568, como um fruto do Concílio de Trento.

Pio V manteve substancialmente a mesma estrutura do Breviário da Cúria do século XIII, mas foram introduzidas algumas simplificações, no novo breviário, e reduzidos os

ofícios adicionais. Durante os anos sucessivos à reforma de Pio V, como veremos, o calendário foi de novo excessivamente acrescido por festas e oitavas.

Recapitulando o que estudamos do século X ao século XVI, podemos dizer que, o aparecimento do breviário - termo que não tem absolutamente nenhuma relação com a natureza da oração da Igreja - que conheceu várias reformas, até chegar àquela rígida uniformidade, ratificada no Concílio de Trento e imposta para o mundo inteiro, e que durou quase quatro séculos, tornou-se mesmo a nota característica deste período da história da Liturgia das Horas. Lamentavelmente, a esta altura, a Oração das Horas já tinha perdido o seu caráter de celebração comunitária, exceto nos mosteiros. A bula de Pio V, pela primeira vez, equipara a recitação privada do Ofício à sua celebração comunitária. A quase generalização da recitação privada contribuiu para o esmaecimento da relação entre a celebração do Ofício e o ritmo natural das Horas. Após o final do século XVI, este ritmo se manifestará em outras formas populares, especialmente com a oração do Angelus ou da Ave Maria, ao nascer do sol, ao meio-dia e ao cair da tarde. A dimensão comunitária do Ofício e a “verdade das horas”, que haviam sido progressivamente abandonadas, serão reencontradas no Movimento Litúrgico e pelo Concílio

No documento Maria da Gloria Melo de Souza (páginas 59-62)