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2 POPULARIZAÇÃO DA CIÊNCIA E COMUNICAÇÃO PÚBLICA DA

3.1 A organização da sociedade em mundo da vida e sistema

Para estruturar sua teoria social, Habermas recorre, inicialmente, às proposições de Popper sobre os mundos objetivo, subjetivo e social. Ele admite a interação entre os três mundos na constituição social. O mundo objetivo refere-se a tudo o que existe independentemente das

interpretações dos indivíduos; são estados de coisas materiais que podem ser verificadas quanto à falsidade ou verdade. Já o mundo social contempla as relações e os sistemas de normas que determinam o comportamento individual; nesse espaço, os fatos podem ser julgados e verificados quanto à correção normativa, o atendimento às normas. Os estados subjetivos do indivíduo, por sua vez, estão contemplados na noção de mundo subjetivo, ao qual somente ele tem acesso e que permite julgamentos e avaliações quanto à sinceridade. A ideia dos três mundos de Popper terá uma conexão importante com as pretensões de validade que Habermas apresenta na TAC, como elementos essenciais na argumentação.

Habermas (2012) então avança e estrutura sua teoria social em torno das ideias de sistema e mundo da vida (representação na Figura 1). O sistema, como já dito, é composto pelos Três Poderes, pela burocracia que marca suas práticas, e pela orientação para o dinheiro. De suas ações resultam decisões legislativas, programas políticos, opiniões, medidas, dentre outras. Nele, prevalece uma racionalidade teleológica-instrumental, estratégica, voltada para fins calculados e para a busca do sucesso. Já o mundo da vida, das relações informações e cotidianas, é palco de uma racionalidade comunicativa, em que as pessoas podem buscar o comum-acordo, o entendimento e o consenso a partir de práticas dialógico-discursivas.

Figura 1 – Representação esquemática da organização da sociedade em mundo da vida e sistema, segundo o pensamento de Habermas (2012).

As racionalidades que predominam no mundo da vida e no sistema são diferentes. No sistema, prevalece a racionalidade de tipo estratégico-instrumental, que leva a ações coordenadas por interesses egocêntricos e pela influenciação mútua entre os atores. A ação instrumental se orienta por regras técnicas, por um saber empírico, cujos resultados podem ser calculados; e a ação estratégica se orienta por um saber analítico, que opta entre alternativas de comportamento a partir da definição dos fins que se deseja alcançar para benefício individual ou de grupo restrito (HABERMAS, 1997b). Tais racionalidades distanciam-se da racionalidade comunicativa, defendida na TAC e da qual falaremos mais adiante, ao discutirmos o agir comunicativo.

A definição de mundo da vida por Habermas se fundamenta em Husserl e Heidegger. Trata-se de um universo de pré-compreensão em que o sujeito está inserido. O mundo da vida envolve um conhecimento de fundo, que está majoritariamente implícito – não se trata de algo conhecido em sentido estrito, colocado em questão, fundamentado. Apenas fragmentos desse contexto, quando se tornam relevantes para determinado caso, são tematizados. O conhecimento ainda não tematizado pode ser captado pela problematização, bastando que o horizonte da situação seja deslocado. Dessa maneira, é preciso distinguir entre o conhecimento pré-refletido, que está no entorno do processo de entendimento (não sendo, porém, tematizado), e o conhecimento que é tematizado nos atos de fala. O conhecimento implícito, pré-refletivo, é aquele dominado de forma intuitiva e exige trabalho reflexivo racional para se transformar em know-that, gerando ação comunicativa (HABERMAS, 2015), da qual falaremos mais adiante.

A maior parte daquilo que se diz nas práticas comunicativas do quotidiano mantém-se não problemático, escapa às críticas e evita a pressão da surpresa exercida pelas experiências críticas, uma vez que recorre antecipadamente à validade das certezas acordadas de antemão, por outras palavras, às certezas do mundo da vida. (HABERMAS, 1996, p. 131).

O Homo sapiens deve ter tido um conhecimento intuitivo de como as alavancas funcionam desde o momento em que começou a utilizar certos instrumentos para a sua sobrevivência. No entanto, a lei das alavancas apenas foi descoberta enquanto lei, e recebeu a sua forma de conhecimento específico, graças à interrogação metódica por parte da ciência moderna do nosso conhecimento pré-teórico (HABERMAS, 1996, p. 133).

Habermas (2015, p. 13) destaca, no mundo da vida, as chamadas “situações de ação”, inseridas no âmbito tematicamente aberto de alternativas de ação. O mundo da vida é, assim, um contexto formador de horizontes dos processos de entendimento, no qual vão se delimitando situações de ação.

Enquanto o ator mantém sobre as suas costas o mundo da vida, como um recurso da ação orientada ao entendimento, as restrições que as circunstâncias impõem à execução do seu plano se colocam como ingredientes da situação. Ingredientes esses que, no sistema de referência dos três conceitos formais de mundo, podem ser classificados como fatos, normas e experiências.

A ação comunicativa proposta por Habermas persegue o consenso linguístico no mundo da vida, o que é necessário quando ocorrem experiências que perturbam os aspectos rotineiros, contribuindo para o deslocamento de horizontes e a tematização de questões (HABERMAS, 1996). O risco de desacordo é constitutivo, mas o mundo da vida fornece certa cobertura protetora contra riscos, devido convicções partilhadas e não problemáticas. A inquietação que surge com a experiência e a crítica choca com - segundo parece - “a grande e imperturbável rocha que se projeta das profundezas dos padrões interpretativos previamente acordados, fidelidades e competências” (HABERMAS, 1996, p. 127).

Habermas (1997b) esclarece que o mundo da vida não tem só a função de formar contexto. É ele que garante a provisão de convicções que os participantes da comunicação utilizam para fazer as interpretações necessárias à formação do consenso. Logo, ele tem papel constitutivo nos processos de entendimento.

O autor defende, ainda, que o mundo da vida é formado por três grandes componentes estruturais, entrosados e co-originários: cultura, sociedade e personalidade. Esses componentes formam contextos de significado complexos, que mantêm comunicação entre si, embora estejam incorporados em substratos diferentes. O conhecimento cultural materializa-se em formas simbólicas - em objetos utilitários e tecnologias, em palavras e teorias, em livros e documentos, etc. Refere-se ao estoque de saber e aos valores. Quanto à sociedade, toma forma nas ordens institucionais, nas normas legais ou nas redes de práticas e costumes normativamente regulados, ordens legítimas que regulam os grupos sociais. Por fim, as estruturas de personalidade tomam forma, literalmente, no substrato dos organismos humanos, envolvendo competências que formam o sujeito capaz de falar e agir, formando sua identidade. (HABERMAS, 1996, p. 141). Atuando pela racionalidade comunicativa e praticando a proposta da TAC nesse cenário (interação ego-alter), os atores acessam esses componentes e utilizam deles o saber cultural disponível, as habilidades e motivações que impulsionam as pessoas e as lealdades estabelecidas que regulam a sociedade. O produto das interações ocorridas vai também retornar com novas informações para esses componentes: vão garantir a perpetuação de tradições e/ou a renovação do estoque cultural; o estabelecimento de laços de solidariedade que terão impactos na organização social e o desenvolvimento de identidades pessoais por meio

da socialização. As situações de ação, assim, são conectadas com as condições existentes do mundo da vida por meio de processos de reprodução cultural, integração social e socialização. Os sujeitos podem ser identificados tanto como iniciadores quanto como produtos de tradições culturais já existentes, dos grupos de solidariedade em que está inserido e dos processos de socialização e aprendizagem por que passou.

Nos fluxos de relações entre os três componentes estruturais do mundo da vida (Figura 2), que estão entrosados e são co-originários - cultura (relacionada ao estoque de saber e aos valores), sociedade (constituída por ordens legítimas que regulam os grupos sociais) e personalidade (competências que formam o sujeito capaz de falar e agir, formando sua identidade) – dão-se as condições para a reprodução de um estado de coisas ou de sua transformação (de identidade, social e/ou cultural). A reprodução simbólica ocorre pela apropriação de tradições, pela renovação da solidariedade e pela socialização, que por sua vez dependem da comunicação cotidiana, da formação linguística do consenso.

Figura 2 – Representação do entrelaçamento entre os componentes do mundo da vida: cultura, sociedade e personalidade.

Fonte: Habermas (2004).

Retomando as reflexões, temos que o mundo da vida, onde se dão as conversas do dia a dia, tem como background um conhecimento intuitivo, implícito, com certezas acordadas de antemão e que estabilizam as relações. Quando esse horizonte se desloca e um fragmento dele é destacado, tematizado, problematizado, diante de situações de ação, passa a exigir um debate

público que leve o tema a um consenso, mesmo que provisório. O processo argumentativo que permitirá o acordo intersubjetivo sobre a questão pode ocorrer, para Habermas (2015), por meio da ação comunicativa (que detalharemos mais adiante), resultando em perpetuação ou transformação dos componentes do mundo da vida, com a emersão de valores e normas cada vez mais universalizáveis à medida que novos entendimentos intersubjetivos se construam em torno do tema.

Dessa forma, dentro da organização identificada por Habermas (mundo da vida e sistema), consideraremos que a ciência é produzida, em geral, por instituições geralmente localizadas na periferia do sistema, como nas universidades públicas, mantidas pelo governo, mas detentoras de autonomia e com ampla interface com a sociedade. Às universidades cabe, então, a tarefa de compartilhar com as pessoas no âmbito do mundo da vida o conhecimento produzido. Desde o momento em que emergem como algo que demanda solução científica, podemos dizer que as questões se desprendem do pano de fundo constituído por aquilo que é intuitivamente aceito e são problematizadas, tematizadas, expostas à racionalização, à criticidade. Mas esse processo de problematização não pode ficar restrito ao âmbito de produção das pesquisas.

O papel ativo dos pesquisadores e das instituições que produzem pesquisa é essencial a esse movimento de tematização, mas ainda é desempenhado com limitações. Bentley e Kyvik (2011) quantificaram a publicação da ciência popular em 13 países (o Brasil incluído entre eles), comparando-a à publicação científica acadêmica. Os resultados mostram que a publicação científica popular é feita por uma minoria de pesquisadores e tem escala muito menor do que a publicação científica tradicional. Se mais de 90% dos pesquisadores entrevistados teve pelo menos uma publicação científica em três anos, apenas um terço deles publicou um artigo popular. A média de publicação é de oito artigos científicos por cada artigo popular. Uma reflexão dos autores diz respeito ao modo como instituições de pesquisa se relacionam com a prática da PC: na Noruega, onde a publicação científica popular é mais comum do que na maioria dos outros países, a disseminação de pesquisas para o público é incluída como uma das tarefas das universidades, além do ensino e da pesquisa.

Do mesmo modo como PC/CPC podem subsidiar a busca de entendimentos no contexto do mundo da vida, por meio do processo comunicativo, devemos também considerar que o risco de desacordo é inerente. É nesse ponto que podemos inserir as reflexões sobre as controvérsias científicas (CRICK; GABRIEL, 2010) - disputas do conhecimento científico, originadas de posicionamentos diferentes por parte de pesquisadores que têm preocupações comuns e

pensamentos divergentes. O tema passa então pela experiência real da dúvida e abala certezas até então vigentes, merecendo ainda mais atenção na discussão pública.

Aprofundaremos, na seção 3.2, a discussão sobre como a PC, na perspectiva de ser uma interação alter-ego, colabora para a atualização dos componentes estruturais do mundo da vida e sua utiliza deles para ocorrer. Também veremos, na seção 3.3, que aborda esferas públicas e deliberação, que esses movimentos de tematização no mundo da vida podem exercer influência sobre as decisões políticas no âmbito do sistema.