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Defesa da interconexão entre as reflexões teóricas de Habermas e a prática da Comunicação

2 POPULARIZAÇÃO DA CIÊNCIA E COMUNICAÇÃO PÚBLICA DA

3.5 Defesa da interconexão entre as reflexões teóricas de Habermas e a prática da Comunicação

Considerando as teorias e reflexões de Jürgen Habermas revisadas neste capítulo, defendemos que elas sejam utilizadas como orientação normativa para a prática de PC/CPC por meio da comunicação organizacional das universidades. Essa articulação teórica do pensamento de Habermas com a PC/CPC é algo que não encontramos em outros trabalhos científicos sobre o tema (conforme consulta à Web of Science, mencionada no início da seção 3.4), ao menos não na profundidade que nos propusemos a desenvolver. Chegamos a essa opção por entender que o autor nos oferta reflexões que contemplam uma visão de comunicação da ciência com potencial de empoderamento do cidadão, tanto por meio da valorização de seus saberes não científicos quanto pelo compartilhamento de informações científicas que podem progressivamente incrementar suas competências comunicativas para o debate público. Não desprezamos as advertências de diversos autores sobre alguns pontos aparentemente mal resolvidos nas ideias de Habermas, associadas a certo utopismo por contemplar uma situação ideal de fala diante de tantas assimetrias e fluxos de poder presentes na dinâmica social e, consequentemente, nas organizações. Comentaremos, mais adiante, as ponderações que nos permitem optar pela orientação teórica habermasiana, apesar das críticas que questionam suas proposições.

Retomando e resumindo os diversos pontos do pensamento de Habermas tratados neste capítulo, podemos contextualizar a PC/CPC dentro da proposta normativa definida por meio dos próximos parágrafos.

A ciência é produzida, em geral, por instituições normalmente localizadas na periferia do sistema, como nas universidades públicas, mantidas pelo governo, mas detentoras de autonomia e com ampla interface com a sociedade. De acordo com as proposições do autor, a Universidade deve figurar como espaço democrático de produção do conhecimento científico, onde deve haver a autorreflexão sobre o saber produzido, inclusive com participação dos estudantes nesse processo reflexivo; compromisso ético dos pesquisadores para com a sociedade ao desenvolver seus estudos e independência em relação a poderes estranhos ao interesse público. As universidades estão em interação constante com o mundo da vida e com o sistema, mantendo com eles fluxos bidirecionais de informações. Recorrendo a Habermas (1968), temos que é no mundo da vida que está o “contexto da descoberta”, ou seja, o âmbito em que questões de interesse da sociedade vão despontar, originando a necessidade de pesquisas científicas. O processo que o autor chamou de “tradução” (não vamos discutir aqui propriedade

do termo, mas considerar apenas a intenção de remeter à interação entre ciência e sociedade) ocorre, entre outros meios, pela prática da PC/CPC e tem potencial de fazer com que as pesquisas científicas, em execução ou já concluídas, retornem como tema para esse contexto da descoberta, que as motivou inicialmente. Desde o momento em que emergem como questões que demandam solução científica, podemos dizer que elas se desprendem do pano de fundo do mundo da vida por um deslocamento de horizontes que traz à cena aquilo que era intuitivamente aceito, mas passam então à problematização, à tematização, à racionalização, ao crivo da criticidade, da argumentação, do debate. A PC/CPC é essencial para que essa problematização não fique restrita aos círculos acadêmicos.

Nesse cenário, os textos jornalísticos de PC/CPC produzidos pelas universidades e reapropriados pela mídia devem ser construídos sobre atos de fala ilocucionários e institucionalmente independentes (de maneira a estabelecer com o leitor uma relação não impositiva, com recursos suficientes que permitam a ele analisá-los, questioná-los e aceitá-los ou não como argumentos válidos), materializados em defesas e justificações das pretensões de validade de verdade, correção normativa e sinceridade, cumprindo também a exigência primeira - de compreensibilidade. Os textos também precisam respeitar o protagonismo proposto por Habermas para o mundo da vida nesse processo, sendo construídos de forma a ter enfoque dialógico, tanto incluindo em suas narrativas os diversos atores afetados pela pesquisa e seu contexto de aplicação, quanto mantendo-se os pesquisadores abertos a réplicas, tréplicas e esclarecimentos que forem necessários. Dessa forma, sendo dialógico, o processo exige olhos e ouvidos ao senso comum, ao conhecimento pré-científico e ao pano de fundo do mundo da vida. Sendo as ciências movidas por diferentes interesses - e tendo havido uma predominância do interesse técnico em detrimento do prático e do emancipatório ao longo do tempo - é também tarefa dos textos de PC/CPC resgatar o vínculo com esses dois outros interesses, mantendo os três contemplados e interligados durante as práticas de comunicação entre ciência e sociedade. As consequências esperadas são o empoderamento do cidadão (com redução das diferenças na posse do conhecimento científico entre diferentes atores) para que participe de processos deliberativos mais amplos ou mesmo possa fazer escolhas mais racionais em sua vida cotidiana. Assim, espera-se contribuir também para a redução da inércia social citada por Habermas (1997) como um desvio que impede as condições genuínas de uma socialização comunicativa. É bom ter em mente que os textos de PC, a depender dos tipos de pesquisa que abordarem, terão maior potencial de mobilizar determinadas esferas públicas temáticas. Há ainda a possibilidade de quem gere efeitos perlocucionários espontâneos e desejáveis, entre eles a contribuição para decisões políticas que afetarão a vida social e individual e a mobilização de novos interesses

coletivos, que por sua vez retornarão à base de atuação do mundo acadêmico, em um movimento circular que tenderá, com o tempo, a uma ciência construída com efetiva participação social.

Todo esse processo recorreria, portanto, aos componentes estruturais do mundo da vida para se operacionalizar, podendo contribuir para atualizá-los ou perpetuá-los (o que está detalhado na Figura 3). Quando se divulga o conhecimento produzido pela ciência com o intento de participação popular, haveria atuação sobre a reprodução cultural, a integração social e a socialização. A interação intersubjetiva acerca do conhecimento científico (PC/CPC) teria impacto sobre o estoque de saber e valores (cultura), sobre as competências que tornam o sujeito capaz de falar e agir (personalidade) e sobre as ordens que regulam os grupos sociais (sociedade). Ao mesmo tempo, esses componentes do mundo da vida projetariam seus impactos sobre o conhecimento científico. Focando-nos sobre o primeiro fluxo – da PC/CPC para os componentes do mundo da vida - detalhamos a reflexão: quando informações são popularizadas, a) transformam-se em conhecimento público, entram para o acervo de cultura de uma população (que por sua vez constituirá subsídio para novas interpretações de mundo, em novas situações de ação) e podem levar a transformações culturais; b) fazem com que o sujeito reúna competências e argumentos adicionais para ingressar em um diálogo na perspectiva da TAC (com maiores condições, pelo conhecimento acumulado, de justificar ou questionar as pretensões de verdade), podendo gerar mudanças de personalidade e comportamento nos indivíduos, ao desenvolverem seus argumentos racionais a partir dos processos de PC/CPC; c) e, por fim, podem dar origem a mudanças em leis e decisões políticas que regulam ou direcionam a conduta social e resultar em práticas transformadoras das organizações sociais e públicas.

Já pelo outro fluxo – dos componentes do mundo da vida para o conhecimento científico – haveria a) projeção dos conhecimentos culturais prévios sobre a interpretação a ser feita de uma divulgação feita pela PC, b) recorrência a ordens institucionais legítimas e mecanismos sociais para que se efetive a PC (mídia como recursos de divulgação, leis existentes que regulamentam o tema em discussão, etc.); e c) disponibilização, por parte do sujeito, de suas motivações e habilidades de entendimento e de argumentação, contribuindo para o reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validade, o que pode alterar comportamentos e levar à transformação social. O conhecimento deve proporcionar ao indivíduo a possibilidade de emancipação.

Como Habermas (1997b) disse, a racionalidade comunicativa não deve ser vista como um dever-ser, mas como a concepção original sobre a qual tenderiam a ocorrer os processos

argumentativos com vistas às decisões públicas. O autor, entretanto, admite uma série de condições que ameaçam esse status, desviando-o de sua tendência pelas vias da racionalidade estratégica: os interesses particulares, a busca do sucesso focado no dinheiro e no poder, as assimetrias de poder de fala, as características da mídia que a afastam do interesse público, a violência da imposição de posições, a manipulação e a comunicação sistematicamente distorcida, a tendência à inércia social, tudo isso além do fato de essas dificuldades imporem- se também nas organizações, como nas universidades, que fazem parte do sistema e reproduzem muitos dos conflitos encontrados em outros contextos. Nas universidades, os interesses estratégicos também pautam a comunicação organizacional, conduzindo ações de marketing e relações públicas que afastam essa área da prática da comunicação pública e, consequentemente de uma comunicação pública da ciência.

Esses obstáculos aparentemente não são resolvidos pelas teorias de Habermas. Mas em “Consciência Moral e Agir Comunicativo” o autor (1989b) sugere, recorrendo a Alexy (1978 apud HABERMAS, 1989b), a busca pela criação de dispositivos institucionais para amenizar as limitações empíricas à racionalidade comunicativa, o que acreditamos ser uma saída plausível, mesmo que não permitam o pleno alcance das condições genuínas da comunicação pública. Acreditamos que todos os esforços devam ser feitos pelas universidades, para que se aproxime o mais possível as práticas de PC/CPC fundamentadas na racionalidade comunicativa. Habermas (1989b) mesmo admite que é preciso se contentar com as aproximações, por isso não podemos estar eximidos de persegui-las.

Figura 3 – PC/CPC como ação comunicativa: interação com os componentes do mundo da vida.

Os dispositivos institucionais, que estariam consolidados, por exemplo, em políticas públicas que guiassem o desenvolvimento de pesquisas no País e ao mesmo tempo orientassem a prática da PC, ainda não estão disponíveis, conforme concluiu Araújo (2017) em sua pesquisa. Nosso estudo não teve abrangência suficiente para dar conta de analisar todo o panorama contemplado aqui resumido, o que envolveria uma demanda de tempo e recursos metodológicos inalcançáveis para uma pesquisa de doutoramento, mas interrogou alguns pontos desse cenário, permitindo que identificássemos alguns dos desvios que têm afastado a PC da ação comunicativa. Os resultados dão indicativos que podem ser fonte de orientação na elaboração de uma política pública voltada à PC/CPC, de forma que suas práticas sejam estabelecidas sob o imperativo do interesse público e materializadas em normas formais que, a princípio, são necessárias para proteger a racionalidade comunicativa.

Quando se pensa, conforme o próprio Habermas (1968) propôs, na formulação de uma política pública para a pesquisa científica, que garanta o interesse público desse investimento, tem-se que a busca de consensos e entendimentos intersubjetivos por meio da linguagem, como define a TAC, é o caminho genuíno e compatível com os preceitos democráticos, pois inclui a população não só como ouvinte, mas também como falante. Às possíveis argumentações de que o público leigo não possui competência técnica para deliberar sobre assuntos científicos, contrapõe-se a ideia de que, por meio da PC/CPC, desenvolvida continuamente ao longo do tempo, a tendência é de diversificação progressiva das competências pessoais, por meio da soma de conhecimentos e elaboração de novos saberes - são os impactos da própria PC/CPC sobre a Personalidade e a Cultura, de modo que possa resultar também em modificações no componente Sociedade.

Essa configuração de prática da comunicação entre ciência e sociedade sob os preceitos da TAC tem o desafio de romper com configurações históricas em que a divulgação da ciência esteve, podemos considerar, mais atrelada aos interesses do sistema do que propriamente os fluxos do mundo da vida. Moreira e Massarani (2002), por exemplo, traçaram um resgate dos aspectos históricos que podem ajudar a elucidar como as diferentes formas de divulgação científica variaram no tempo em função dos pressupostos filosóficos, dos conteúdos científicos envolvidos, da cultura subjacente, dos interesses políticos e econômicos e dos meios disponíveis nos diversos lugares e épocas no Brasil. Nos primeiros séculos da colonização, as poucas ações ligadas à ciência eram respostas às necessidades técnicas ou militares de interesse imediato. A partir da segunda metade do século XIX intensificaram-se um pouco as ações de divulgação, mas majoritariamente ligadas à ideia de aplicação das ciências às artes industriais.

Somente mais tarde (final do século XX e início do século XXI) é que surgem discussões na perspectiva do engajamento social e dos valores democráticos.

O trabalho de Moreira e Massarani (2002, p. 62) nos sugere a reflexão sobre o quanto os fluxos de comunicação entre ciência e sociedade mantiveram uma relação equivocada com os componentes do mundo da vida, por seguirem pautados no chamado “modelo do deficit”, que, de uma forma simplista, vê na população um grupo de analfabetos em ciência: “Aspectos culturais importantes em qualquer processo divulgativo raramente são considerados, e as interfaces entre ciência e cultura são frequentemente ignoradas.”

Em resumo, a defesa das condições de operacionalização da TAC pode garantir efetivamente para a PC/CPC uma perspectiva emancipadora, se for assumido o pressuposto de que os textos oriundos dessas práticas devem ser construídos de forma a subsidiar o debate público, a busca do entendimento intersubjetivo e a contribuição para processos deliberativos.

Como forma de consolidar as reflexões deste capítulo e nosso argumento de articulação entre PC, CPC e ação comunicativa, materializamos as informações na Figura 4, em que os elementos apresentados linearmente representam o fluxo desejável em que a PC/CPC praticadas mobilizam a ação comunicativa na sociedade, que por sua vez é determinante na formação de uma opinião pública esclarecida que irá influir nas decisões políticas e nas transformações sociais necessárias a uma sociedade mais justa. Há, entretanto, elementos que representam forças capazes de interferir nesse fluxo: empecilhos organizacionais, tensões entre comunicação pública e organizacional, pressão da racionalidade estratégica e dos fatores que afastam as condições ideais de fala. Com base em Habermas (1989b), entretanto, demarcamos que é possível gerar condições para aproximações da racionalidade comunicativa por meio de dispositivos institucionais que orientem as práticas nesse sentido. As políticas em nível macro e micro para popularização da ciência funcionariam como dispositivo institucionais.

Figura 4 – Consolidação das reflexões relativas ao argumento teórico da tese: relação entre PC/CPC, ação comunicativa e transformações sociais.

Fonte: Do autor (2019).

Frisamos que, no âmbito desta pesquisa, a opção pela adoção da ADC como metodologia de análise dos textos é um recurso que amenizaria possíveis olhares utópicos por meio da TAC, já que a ADC não perde de vista as relações de poder que perpassam os discursos. Podemos dizer que é uma metodologia atenta a toda a racionalidade estratégica que pode desviar o curso da ação comunicativa. Essas questões metodológicas da ADC, adotadas na pesquisa, serão tratadas no Capítulo 4.

4 A ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA COMO METODOLOGIA DA PESQUISA

Definida a base teórica habermasiana para se pensar a PC, fez-se necessário escolher o caminho metodológico que conduziria a pesquisa aos seus objetivos. A Análise de Discurso Crítica (ADC), também referenciada como Análise Crítica do Discurso (ACD), foi definida como perspectiva metodológica para a compreensão dos textos analisados. Neste capítulo, iniciamos tratando dos aspectos gerais da Teoria Social do Discurso de Fairclough e avançamos com reflexões sobre as possibilidades de interação entre as abordagens de Fairclough e Van Dijk. Abordamos as propostas de análise de textos de mídia, especificamente os de notícia, apresentadas por Fairclough (1995) e Van Dijk (1990). Na sequência, discutimos também outra modalidade de análise abarcada pela ADC – a análise da argumentação, que subsidia processos deliberativos – proposta por Fairclough e Fairclough (2012). Consolidamos, então, uma proposta de percurso metodológico na ADC, para esta pesquisa, selecionando itens de análise contemplados por tais autores, considerando também itens de verificação a partir da base teórica habermasiana.

Assim, o construto que apresentamos busca permitir que verifiquemos como se deu a comunicação ciência-sociedade por meio de textos jornalísticos disponíveis on-line, tendo o tema água como delimitador da amostra, porém os aspectos de observação do discurso priorizados são aqueles que permitem identificar o potencial dos textos em estimular o diálogo, a participação dos cidadãos, o entendimento intersubjetivo. Buscamos avaliar os fatores que identificam esses textos como argumentos. Dessa forma, alinhamos a metodologia à Teoria da Ação Comunicativa, que funciona como um parâmetro teórico para nossas análises.

É importante considerar que os campos científicos da análise do discurso crítica e de autores deliberacionistas, como Habermas, se constroem sob prismas, em certa medida, diferentes. No segundo caso, a linguagem é colocada em proeminência com um papel mais otimista, pensada sob uma situação ideal de fala e capaz de levar ao entendimento subjetivo (HABERMAS, 1996). Já no primeiro caso, apesar de central na vida social (FAIRCLOUGH, 2001), a linguagem é um meio para a crítica, reveladora de relações de poder, dominação, etc. Entretanto, Rosa, Paço-Cunha e Morais (2009) apontam certa confluência, ao dizerem que, para a ADC, a linguagem pode ser usada tanto como instrumento de poder quanto como meio de desafiar esse mesmo poder, alterando-o e subvertendo-o. A ADC intenta produzir mudanças sociais, ao questionar a ausência de espaço dos que não têm voz, as distribuições desiguais de poder, etc. Essa seria uma diferenciação da proposta de Fairclough apontada no prefácio da obra Discurso e Mudança Social, em relação à perspectiva da análise de discurso francesa: A

ADC avança, entendendo “não apenas o papel da linguagem na reprodução das práticas sociais e das ideologias, mas também seu papel fundamental na transformação social” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 11).

Nesta pesquisa, as perspectivas da ADC e da TAC de Habermas serão conciliadas sem grandes desafios, porque a TAC pode ser posicionada como um parâmetro da boa comunicação, um norte teórico que dá referências sobre como PC/CPC podem se desenvolver de forma a empoderar o cidadão, colaborar para a emancipação, para a participação pública deliberativa e para a transformação social. Porém, no resgate dos textos de um período histórico, a ADC é uma proposta metodológica que permitirá desvelar as relações, representações e argumentações até aqui construídas, por meio de uma leitura crítica das práticas, discursos e textos. É um passo necessário a partir do qual poderemos saber o quanto nos afastamos, até o momento, de uma racionalidade comunicativa.