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3 TRABALHO E EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DO NEOLIBERALISMO

3.3 A organização do ensino face ao modo de organização do trabalho: a qualificação

Com o desenvolvimento do modelo toyotista, o trabalhador precisa modificar suas características, visando manter-se funcional à lógica do capital.

O modelo fordista apoiava-se na instalação de grandes fábricas operando com tecnologia pesada de base fixa, incorporando os métodos tayloristas de racionalização do trabalho; supunha a estabilidade no emprego e visava à produção em série de objetos estandardizados, em larga escala, acumulando grandes estoques dirigidos ao consumo de massa. Diversamente, o modelo toyotista apoia-se em tecnologia leve, de base microeletrônica flexível, e opera com trabalhadores polivalentes visando à produção de objetos diversificados, em pequena escala, para atender à demanda de nichos específicos do mercado, incorporando métodos como o just in time que dispensam a formação de estoques; requer trabalhadores que, em lugar da estabilidade no emprego, disputem diariamente cada posição conquistada, vestindo a camisa da empresa e elevando constantemente sua produtividade. (SAVIANI, 2007, p. 427). Assim, percebe-se que a concepção de educação dentro de uma noção de qualificação não consegue mais suprir as demandas do novo modo de produção, que passa a exigir trabalhadores mais dinâmicos, mais flexíveis e preparados para enfrentar a instabilidade do novo processo produtivo. Surge, então, a noção de competência. Segundo Perrenoud (1999), as competências são importantes metas da formação. Este autor a define “como sendo uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles” (PERRENOUD, 1999, p. 7).

Ramos (2011) faz uma retomada da literatura que discute e contrapõe os conceitos de qualificação e de competência, evidenciando, então, a formação humana como processo contraditório e marcado pelos valores capitalistas, a partir da relação trabalho-educação. Mészáros (2005), ao discorrer sobre a relação entre o trabalho dentro de uma ótica capitalista e a educação, reconhece os limites institucionais da educação formal em superar a lógica do capital, porém, entende que essa educação formal, mesmo não sendo a única responsável, contribui em promover as ideias e os valores do sistema do capital. Para este autor, as instituições formais de educação compõem uma parte importante do sistema global de internalização do capital. Portanto, é no projeto burguês de educação que o trabalhador é direcionado à reprodução da força de trabalho como mercadoria, atendendo, assim, à necessidade do capital.

De acordo com Ramos (2011), diante dessa forma de organização de ensino, em face do modo de organização do trabalho, a categoria qualificação tomou alguns sentidos. Um deles se relaciona com análise ocupacional, que visa “identificar o tipo de qualificação que deveria ter

o trabalhador para ser admitido num determinado emprego” (p. 34). Já pelo lado da ótica do posto de trabalho, o termo se relaciona com o saber acumulado desenvolvido pelas várias tarefas a serem realizadas se o trabalhador vir a ocupar aquele posto.

Sobre o conceito de competência, destaco a contribuição de Ferretti (1997), entre os autores citados por Ramos (2011, p. 40), considerando que a noção de competência “representa a atualização do conceito de qualificação, segundo as perspectivas do capital, tendo em vista adequá-lo às novas formas pelas quais este se organiza para obter maior e mais rápida valorização”. Portanto, Ramos (2011) defende que a noção de qualificação sofre um deslocamento conceitual. Através deste deslocamento, a centralidade no conceito da relação trabalho-educação deixa de ser ocupada pela qualificação e passa a ser ocupada pela noção de competência. No entanto, a noção de competência não substitui ou supera o conceito de qualificação, antes, a noção de competência nega algumas dimensões e afirma outras.

Dessa forma, tomando como base Schwartz (1995) e Ramos (2011), percebe-se que a noção de competência valoriza a dimensão experimental da qualificação, que está relacionada ao conteúdo do trabalho e perseguida como condição de eficiência produtiva. A partir desta compreensão, o conhecimento está ligado à vivência concreta de um trabalhador numa situação específica, como conhecedor único da totalidade ou das partes do processo de produção que o envolve. Se no modelo do taylorismo-fordismo as dimensões sociais e conceituais destacaram- se, na noção de competências elas são fortemente questionadas.

Ramos (2011) destaca duas bases dos Sistemas de Competências: as Econômico- Políticas e as Teórico-Metodológicas. Nas bases Econômico-Políticas defende-se um ponto de convergência dos projetos dos empresários e dos trabalhadores em termos de educação profissional. Aqui, o governo é chamado para colocar em prática essa convergência, desenvolvendo políticas que integrem esses projetos.

Nas bases Teórico-Metodológicas a autora traz as características dos três subsistemas que integram o sistema de competência profissional, são eles: Normalização das competências, Formação por competências e Avaliação e Certificação por competências.

De acordo com Ramos (2011) as matrizes de investigação do processo de trabalho com base na competência ancoram-se na matriz funcionalista, na matriz construtivista e na matriz condutivista. “A análise funcional toma a ocupação como agrupamento de atividades profissionais pertencentes a diferentes postos de trabalho com características comuns (normas, técnicas e instrumentos), correspondendo a um mesmo nível de qualificação” (RAMOS, 2011, p. 89). De acordo com a autora, esta análise centra-se na função estratégica da empresa e nos respectivos resultados esperados da atuação dos trabalhadores.

Já a análise construtivista, que tem sua origem na França, “incorpora a contribuição dos trabalhadores com menor nível de desempenho, com o intuito de construir uma análise integrada e participativa dos processos de trabalho” (RAMOS, 2011, p. 89).

Além destas, a autora enfatiza mais uma matriz de investigação dos processos de trabalho: a condutivista. Esta é utilizada principalmente nos Estados Unidos, tem uma forte relação com o propósito da eficiência social e se apresenta num modelo de competência gerencial. Nessa matriz, busca-se que o indivíduo realize seu trabalho com um ótimo desempenho, atingindo os resultados esperados (RAMOS, 2011).

Levando-se em consideração o papel que assumem o Estado e as organizações sociais perante o sistema de formação profissional e de certificação das competências, Ramos (2011), tendo como base Mertens (1996), identifica três tipos de modelos de competências com características diferenciadas em alguns países – a maioria deles desenvolvidos. Um é aquele impulsionado pela política governamental, como é o caso do Reino Unido, Austrália, México e Espanha. O outro, em que a institucionalidade é basicamente a força do mercado, como ocorre nos Estados Unidos. E, por fim, um outro onde as organizações de atores sociais da produção são protagonistas, como na Alemanha, França e Canadá.

Percebe-se que nos diversos sistemas de competência profissional analisados, a competência está sempre associada à capacidade de o sujeito ter um desempenho satisfatório em situações reais de trabalho, mobilizando os recursos cognitivos e socioafetivos, além de conhecimentos específicos.

Fazendo uma análise do Brasil, Ramos (2011) trata da noção de competência na reforma do ensino médio e da educação profissional de nível técnico que se inicia de forma legal com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). É feito um estudo da incorporação da competência pelas reformas brasileiras do ensino médio e do ensino técnico. A nova LDB admite a possível articulação entre o ensino médio e os cursos profissionais, condicionada à garantia da educação geral. De acordo com a autora, no decorrer do texto sobre a identidade do Ensino Médio, a LDB mantém a característica dualista deste nível de ensino.

A reforma da educação profissional aconteceu, de acordo com Ramos (2011) com o Decreto nº 2.208, de 1997, que regulamentou os artigos 39 e 41 da LDB. Na rede federal, a Portaria Ministerial nº 646 de 1997 apresentou outras reformulações. A educação profissional seria o ponto de articulação entre a escola, o trabalho e o currículo, mesmo que tenha uma característica de formação geral, deve ser composta por conhecimentos específicos para o exercício de uma determinada profissão. A autora afirma que um perfil profissional seria definido: pelas competências básicas, desenvolvidas na educação básica; pelas competências

profissionais gerais; e, pelas competências profissionais específicas, próprias de uma habilitação.

No campo da educação profissional, a noção de competência é abordada pelo Parecer CNE/CEB nº 16/99. Neste parecer, há uma distinção entre a noção de competência no ensino profissional e no ensino médio. Essa distinção diz respeito à adequação da essência à modalidade educacional que corresponde a um novo estágio de aprendizagem, novos propósitos e novos contextos. A autora constata que a definição de competência exposto nos documentos voltados para o ensino médio “[...] carrega uma conotação psicológico-subjetivista, manifestando-se nos documentos da educação profissional como fator econômico para o capital e como patrimônio subjetivo para os trabalhadores” (RAMOS, 2011, p. 169).

Ramos (2011) alerta para o fato de que se não acontecer a universalização e a alteração da concepção da educação profissional de nível técnico integrada ao nível médio, a formação nessa modalidade tenderá a ser “[...] complementar, fragmentada e superficial, voltada para a classe trabalhadora, impedida do acesso aos níveis superiores de ensino” (p. 170). De acordo com a autora, é preciso reconstruir o significado da noção de competência, sendo coerente com a realidade brasileira e valorizando as potencialidades humanas como meio de transformação dessa realidade e não do simples fato de se adaptar a ela.

De uma forma geral, para alguns autores apresentados por Ramos (2011), a competência “é tomada como categoria ordenadora das relações sociais de trabalho internas às organizações produtivas, portanto, apropriada à gestão da flexibilidade técnica e organizacional do trabalho” (p. 176). Mas, a autora reforça que a competência cumpre, também, o papel de ordenadora das relações sociais externas ao ambiente de trabalho, no sentido de regular as condutas dos trabalhadores.

Com a noção de competência surgem alguns conceitos importantes dentro da política de trabalho neoliberal, como: empresa qualificante, empresa aprendiz, precarização do trabalho, desemprego estrutural e empregabilidade. É neste último que Ramos (2011) evidencia o fascismo profissional, na medida em que se deslocam as possibilidades de superação do desemprego ao aumento da escolarização e da qualificação ou a aquisição de competências, sabendo-se que o problema da falta de emprego é social.

Ramos (2011) desenvolve o conceito de Pedagogia das Competências, que surge quando a noção de competência extrapola o campo teórico e adquire materialidade através da organização dos currículos e programas escolares. Isso tanto no ensino geral, como no ensino profissionalizante. A autora considera, a partir dessa questão, as dimensões psicológica e socioeconômica da Pedagogia das Competências.

Com relação à primeira dimensão, Ramos (2011) afirma que a noção de competência, além de se associar a mobilização de conhecimentos, deve-se encaminhar à mobilização das ações visando uma aprendizagem contínua sobre os diferentes assuntos. Quanto à segunda dimensão, ressalta que a tendência que se apresenta mais forte na Pedagogia das Competências é a que enfatiza o desenvolvimento de sujeitos que privilegiam seus projetos individuais de profissionalização em detrimento de outra perspectiva, em que a profissionalização resulta de construções coletivas dos trabalhadores, um deslocamento por completo de qualquer perspectiva social, confirmando o avivado individualismo como princípio de vida na pós- modernidade. A autora considera que a noção de competência realizada sob a perspectiva pós- moderna, traz uma escola sem o compromisso com a transmissão de conhecimentos socialmente construídos, mas sim com a geração de oportunidades para a realização de um projeto individual do aluno, ou seja, repassar saberes que formem competências úteis para um determinado tipo de atividade.

Segundo Saviani (2008b, p. 435), a Pedagogia das Competências surge com o objetivo de “[...] dotar os indivíduos de comportamentos flexíveis que lhes permitam ajustar-se às condições de uma sociedade em que as próprias necessidades de sobrevivência não estão garantidas”.

Ramos (2011) recupera a proposta de escola unitária de Gramsci como sugestão de uma escola que supere a perspectiva pós-moderna. Uma escola que busca a superação do senso comum e a forma acrítica dos conhecimentos. Uma escola universal que não é específica de nenhum grupo social.

[...] não se trata de reproduzir na escola a especialização que ocorre no processo produtivo. O horizonte que deve nortear a organização do ensino médio é o de propiciar aos alunos o domínio dos fundamentos das técnicas diversificadas utilizadas na produção, e não o mero adestramento em técnicas produtivas. Não a formação de técnicos especializados, mas de politécnicos. (SAVIANI, 2007, p. 161).

Ramos (2011) ressalta que as competências que se adquirem numa escola unitária não são conhecimentos adaptados à realidade, mas sim saberes que permitam a emancipação da classe trabalhadora.