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A origem da protecção jurídica da privacidade

5. O direito à privacidade

5.1.4 A origem da protecção jurídica da privacidade

O desenvolvimento ocorrido neste período coloca ao Homem perigos que não existiam até então. Mas, só após a II Guerra Mundial, o direito compreende a necessidade de garantias efectivas para as liberdades individuais e públicas, fundamentadas no preceito da dignidade da pessoa humana, sobretudo após o conhecimento público das atrocidades cometidas nos campos de concentração, especialmente no âmbito dos regimes totalitários. Em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas formula, a Declaração dos Direitos do Homem, encontrando-se consagrado nesse texto de referência mundial, a defesa da privacidade.

“pensamentos, emoções e sensações” do indivíduo: “thoughts, emotions, and sensation demand legal recognition” devendo a invasão da privacidade conduzir ao reconhecimento ao ofendido de um direito a uma indemnização por danos179.

O trabalho doutrinário, cuja publicação não foi propriamente inocente, teve a sua motivação numa publicação de um jornal de Boston – Saturday Evening Gazette, (especializado em assuntos da alta sociedade), que fez da vida pessoal e social da família WARREN o alvo preferido das suas crónicas, divulgando pormenores acerca do casamento da filha do futuro juiz. Previsivelmente, o estudo alertava para os perigos que os jornais de grande circulação representavam para a privacidade. Além da imprensa (meio naturalmente visado), o estudo realçava a tecnologia como o elemento facilitador dos meios que possibilitam a intromissão na vida privada, que se encontravam em pleno processo de desenvolvimento e divulgação180.

Contudo, a tese de WARREN e BRANDEIS não teve impacto imediato. Só decorridos doze anos, em 1902, na sequência do caso Roberson v. Rochester Folding Box Co. é que surge uma lei, no Estado de Nova York, que sancionava a utilização, não consentida e para fins publicitários, da imagem ou nome de uma pessoa. Em 1905, após o caso da Pavesich v. New England Life Insurance Co., o Supremo Tribunal do Estado da Geórgia reconhece por fim o direito à privacidade181.

Convém contudo mencionar que a razão pela qual se debateram WARREN e BRANDEIS parecia radicar apenas na intrusão na esfera da intimidade, que o juiz

179 Cf. GOMES, Manuel Januário (1982), p. 8; CABRAL, Rita Amaral (1988), p. 16; ALDERMAN, Ellen e KENNEDY, Caroline (1995), The Right to Privacy, First Edition, New York: Alfred A. Knopf, pp. 154-155 e ANDRADE, Manuel Costa (1999), p. 726.

180 Foi precisamente, no ano da divulgação do célebre artigo de WARREN e BRANDEIS, que HERMAN HOLLERITH criou uma máquina electromecânica, que lia uma série de dados perfurados em cartões, o que permitiu a realização do censo norte-americano em cerca de um terço do tempo do censo anterior, sendo considerado o primeiro passo para o processamento mecânico de informações. HOLLERITH posteriormente fundaria a Tabulating Machine Company, hoje conhecida como IBM. Cf. DONEDA, Danilo César

Maganhoto (2004), disponível in

http://www.mundojuridico.adv.br/htm/artigos/documentos/texto433.htm.

181 Relativamente ao caso Roberson v. Rochester Folding Box Co, está descrito que a Sr.ª Roberson levantou um processo a uma companhia de moagem, por esta utilizar a sua imagem, sem a sua autorização, em campanhas publicitárias. A queixosa terá solicitado uma indemnização pelo acto que a Court of Appeals terá indeferido. Esta postura, duramente criticada pela opinião pública, chamou a atenção da imprensa, tendo levado ao aparecimento da referida lei no Estado de Nova York. No que diz respeito ao caso Pavesich v. New England Life Insurance Co, é do conhecimento público que a companhia de seguros New England Life Insurance, foi condenada a pagar uma indemnização ao Sr.

Pavesich por ter publicado a sua fotografia e um falso testemunho numa folha publicitária, incentivando, desta forma, o público a celebrar um contrato de seguro com a mesma. Cf. CABRAL, Rita Amaral (1988), pp. 16-17 eRODRIGUES, Cunha (1994), “Perspectiva Jurídica da Intimidade da Pessoa”, Cadernos de Bioética, nº 7, Dezembro de 1994, Coimbra: Centro de Estudos de Bioética, p. 38.

COOLEY anteriormente denominara “The right to be alone”182. Não identificaram uma nova categoria de direitos, mas sim uma situação que justificava protecção autónoma.183. A privacy surgiu primariamente como o direito de impedir a intromissão e a divulgação de factos da vida privada de uma pessoa, materializando a famosa expressão do “direito a ser deixado só ou em paz”.

Desde 1890 até à actualidade, o direito à privacidade foi continuamente reafirmado. Nos Estados Unidos da América – a pátria por excelência do direito à privacidade – a jurisprudência, com o decorrer dos anos, alargou muito o âmbito da privacy, adquirindo tal direito, um sentido apelidado por alguns de “perverso”. A privacidade passou então, a tratar uma série de interesses tão díspares entre si, como o direito à autodeterminação sexual, o direito a abortar, o direito à eutanásia, o direito à escolha do aspecto físico (a usar o cabelo comprido), entre outros aspectos que a prática judiciária americana passou a incluir na tutela do direito à privacidade184.

No que concerne à nossa realidade, sabemos que numa fase inicial, a privacidade foi concebida como reflexo de outros bens jurídicos já anteriormente consagrados, como a propriedade, a honra, o nome, a imagem, a liberdade e a segurança individual185.

Hoje é um direito autónomo, cujo respeito se reclama nas instituições de saúde, nos locais de trabalho, na comunicação social, no domicílio, … enfim, num sem número de áreas, onde com relativa frequência é violado. Surgiu associado às especificidades de uma sociedade moderna em evolução, onde imperava a tecnologia. Porém numa sociedade com dificuldades em lidar com as consequências deste progresso desmedido, numa sociedade com sérias vulnerabilidades.

182 A expressão “the right to be alone” foi utilizada pela primeira vez em 1873, por THOMAS COOLEY, juiz do Supremo Tribunal Federal, para designar o direito à privacidade. Na sua obra The Elements of Torts, COOLEY chegou à conclusão que a privacidade constituía o right to be alone, inserindo-se nessa pretensão a solidão e a tranquilidade. Dominante até aos anos 70, encontra-se actualmente em crise, por se considerar que é sugestiva de uma conotação individualista, além de ser vaga e restritiva. WARREN e BRANDEIS na elaboração do seu artigo tinham conhecimento da obra de Cooley, identificando-se com as conclusões do mesmo. Desenvolveram, no entanto, o conceito de forma mais extensa e com maior fundamentação jurídica. Cf. CABRAL, Rita Amaral (1988), p. 13; PINTO, Paulo Mota (1993), “O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada”, in Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXIX, Coimbra:

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 513 e DELGADO, Lucrécio Rebollo (2000), p. 61.

183 RODRIGUES, Cunha (1994), p. 39.

184 Cf. CABRAL, Rita Amaral (1988), pp. 22-23 e PINTO, Paulo Mota (1993), pp. 514-515. A este propósito, DIOGO LEITE DE CAMPOS refere-se ao caso Roscoe v. Wade, em que o Supremo Tribunal Federal estadunidense entendeu que o direito à privacidade englobava a decisão tomada pela mulher de pôr fim, ou não, à sua gravidez. Não podendo interferir nessa decisão privada nem o marido, nem os pais da menor. Vid. CAMPOS, Diogo Leite de(1996), “A Imagem que dá Poder: Privacidade e Informática Jurídica”, in Comunicação e Defesa do Consumidor (Actas do Congresso Internacional organizado pelo Instituto Jurídico da Comunicação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra de 25 a 27 de Novembro de 1993), Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 298.

185 Cf. CABRAL, Rita Amaral (1988), p. 17 e ANDRADE, Manuel Costa (1999), p. 726.

A revolução técnico-científica trouxe, de facto, a massificação de meios outrora inimagináveis. Desde o microfone (1870), à fotografia instantânea (1880), ao telefone (1880), ao engenho de HOLLERITH (1880), até aos gravadores (1890), … ao computador e mais recentemente à Internet, estes meios deram consistência ao “Homem transparente” ou “Homem de vidro”.

A partir de determinado momento, o cérebro humano passou a não ser o único a processar informações e, com a II Guerra Mundial, a evolução dos computadores progride a passos largos. Entra-se então num outro momento histórico para a garantia do direito à privacidade, decorrente da revolução da informação e do poder que gera nos meios de comunicação.

O impulso da guerra-fria tornou o processo imparável e a informática passou a ser considerada por muitos como a maior revolução depois da invenção da roda.

Hoje, as prateleiras repletas de dossiers dão lugar a um estilizado computador com extraordinárias capacidades, porém rapidamente obsoleto. É possível, em segundos, ter acesso a um incontável número de informações, bem como proceder à sua combinação e cruzamento. A utilização de bases de dados informatizadas faz parte do nosso quotidiano186. A facilidade com que se podem obter informações, em especial informações ou dados de cariz pessoal, como a história clínica, a orientação religiosa, política, sexual, entre outros, lança uma espécie de presságio negativo sobre o que, actualmente é consolidado como um direito, comprometendo seriamente a liberdade individual.

A situação poderá alcançar consequências gravíssimas se nos reportarmos à Internet187. BELLEIL refere que “a Internet marca efectivamente o nascimento de uma nova era em matéria de atentados tecnológicos à vida privada”188.

186 É importante ter em consideração que além das bases de dados para a investigação no mundo da cultura, existem muitas outras. Recorre-se diariamente a este tipo de instrumentos que são frequentemente construídos a partir de dados fornecidos, ainda que de forma inconsciente, por cada uma das pessoas. O pedido de empréstimo para a compra de uma casa, o simples preenchimento de um impresso para fazer um seguro e até mesmo a matrícula num curso ou na faculdade, podem contribuir para tal. Existem actualmente, milhares de bases de dados em Portugal, muitas delas sem qualquer controlo, apesar de por lei, ser obrigatório o seu registo. Vid. na matéria BRITO, José Henrique Silveira de (1995), “Bases de Dados Ética e Cultura”, Brotéria, Novembro de 1995, Lisboa, p. 470.

187 A Internet surgiu nos EUA, mais concretamente no Departamento de Defesa, com a implementação de um programa de experimentação (Advanced Research Projects Agency Network). O seu objectivo era assegurar uma rede de comunicações segura, para organizações de defesa e, posteriormente para organizações vocacionadas para a investigação científica no domínio da defesa, formando uma espécie de linguagem comum de comunicação entre redes de informação, independentemente das características tecnológicas. A Internet nasce assim, orientada para a satisfação dos utilizadores como meio de comunicação e publicação no sentido da facilidade de difusão. O aparecimento do correio electrónico é quase simultâneo ao da Internet. Tendo sido nessa fase, igualmente utilizado pelos investigadores, que

Na verdade, os atentados à privacidade resultantes do desenvolvimento das novas tecnologias são reais. Como salienta o referido Autor “não se trata de uma psicose passageira e irracional”189. Existem, inclusivamente, casos descritos referentes a atentados à vida privada na Internet. BELLEIL relata alguns desses, ocorridos nos anos de 2000 e 2001190.

Embora a Internet constitua actualmente uma ameaça, a questão da protecção da vida privada e dos dados, não foi, como referido, determinada pela mesma. A incidência do progresso tecnológico é tão clara na tutela da vida privada, que a doutrina norte-americana distingue três fases na evolução histórica conducente às recentes soluções legislativas: a era pré-tecnológica (1780-1880); a era do primeiro desafio tecnológico (1880-1950) – marcada pela descoberta do microfone (1870), da fotografia instantânea (1880), do telefone (1880) e da gravação de sons (1890); e a era do segundo desafio tecnológico (de 1950 aos nossos dias) – evidenciada pelos procedimentos electrónicos de detecção, reprodução e informatização191.

FRANÇOIS RIGAUX, além do desenvolvimento tecnológico, refere outras causas como fundamentais para a ascensão da privacidade (e de outros bens da personalidade) à qualidade de bem jurídico, como sejam a emergência de sociedades de massa, a inserção dos bens de personalidade na corrida da mudança patrimonial (questionando-se se a privacidade teria por objecto um bem pessoal ou patrimonial) e, por último, o pluralismo moral e de valores associado às sociedades de massa contemporâneas192.

colocavam na rede Request For Comments, ideias, informações, que rapidamente partilhavam, nomeadamente ficheiros de informações vitais para as áreas de investigação académica e científica, em especial no seu domínio de origem (defesa militar). A partir de 1983, com os desenvolvimentos tecnológicos da rede, a Internet tornou-se num veículo de transmissão comercial outrora inimaginável, permitindo a navegação por páginas de informação e o estabelecimento de ligações. Como o desenvolvimento tecnológico é imparável, a Internet ou Net, como vulgarmente é apelidada, tornou-se facilmente acessível e vital como meio de comunicação descentralizada e global, que engloba indivíduos, instituições, empresas e governos de todo o mundo. Cf. Acórdão nº 241/02, de 29 de Maio de 2002, publ.

in Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 53, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 350-351.

188 BELLEIL, Arnaud (2002), @ – Privacidade (trad. de Paula Rocha Vidalinc), Lisboa: Instituto Piaget, p.52. Alega ainda este Autor quatro argumentos cujos efeitos se conjugam, como evidência do nascimento de uma nova era em matéria de atentados tecnológicos: 1) a Internet diminui de forma drástica o custo da colheita de informação; 2) a Internet favorece a difusão em massa, de forma quase instantânea, de informações, nomeadamente bases de dados sobre os particulares; 3) a Internet torna possível a existência de novos modelos de financiamento de empresa, baseados na exploração de dados nominativos; 4) a Internet democratiza tudo, inclusive a possibilidade de todos jogarem ao “Big Brother”, actividade reservada, até há bem pouco tempo, às entidades governamentais responsáveis pela segurança e aos gabinetes de informação.

189 BELLEIL, Arnaud (2002), p. 63.

190 BELLEIL, Arnaud (2002), pp. 53-56, 61-62.

191 Cf. CABRAL, Rita Amaral (1988), p. 21.

192 RIGAUX, François (1991), pp. 546-547. A trad. é nossa.

Desta forma, o direito à privacidade assumiu um carácter evolutivo, que se estende às novas realidades, cuja importância é sem dúvida basilar.

Hoje, na denominada “sociedade de informação”, é fácil compreender o poder da informação e a ânsia de tal poder. Daí a necessidade da protecção da intimidade e privacidade da pessoa a nível jurídico, não só no ordenamento interno dos diversos países, como também, a nível internacional193.