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3. O segredo médico

3.1 Da natureza à actualidade

afirma que “este interesse público geral não pode ser sacrificado por hipotéticos e, muitas vezes mal definidos ‘interesses’ privados de um dos contraentes que pretende satisfazer interesses económicos unilaterais, à custa da violação da intimidade do outro contraente”501. Assim sendo, resta-nos reafirmar a posição da Comissão, evidenciando que não deve ser facultado o acesso das Companhias Seguradoras à informação clínica de um segurado, para efeito de instrução em processo relativo a seguro de vida.

Nas palavras de CARAZO é simplesmente enunciado como “aquilo que, sendo conhecido por alguns, não é lícito comunicar aos demais”506.

Porém, na sua formulação mais elementar, o segredo é simplesmente referenciado como o dever de ocultar, de guardar, ainda que adquira de acordo com os circunstancialismos diferentes classificações507. Nesta linha, o segredo profissional não é mais que do que uma das possíveis classificações do segredo.

Considerado desde a Antiguidade como um dever ético, o segredo profissional abrange na actualidade muitas profissões, estando previsto no ordenamento jurídico da maioria dos países europeus, sendo a sua violação considerada um acto reprovável e punível por lei.

O segredo médico não é nesta perspectiva excepção. Intrinsecamente adstrito à actuação dos profissionais médicos, é simultaneamente reconhecido como um

“mandamento privilegiado dos pronunciamentos e códigos ético-deontológicos dos médicos correspondendo por isso, a um dos referentes irrenunciáveis da auto-representação do médico em todo o mundo”508.

Com um inegável e indiscutível primado histórico, o segredo médico ancorado no Juramento de HIPÓCRATES509, é proveniente de escritos redigidos entre 430 e 330 a.

C., sendo entre os demais segredos profissionais (incluindo o religioso)510 o mais antigo,

506 Cf. CARAZO, Carmen Sánchez (2000), p. 71. A trad. é nossa.

507 FREI BERNARDO, bem como outros autores, atribui distintas classificações ao segredo: natural, prometido e profissional. O primeiro é aquele que chega até nós pela própria natureza das coisas, mesmo sem evidência de um compromisso ou solicitação de confidencialidade. O segundo surge de uma promessa ou contrato expresso, por meio de palavras ou por escrito, de guardar segredo sobre um determinado assunto confidenciado. O último, por seu turno, corresponde a todos os conhecimentos adquiridos no exercício de uma actividade, como é o caso da profissão médica. Vid. na matéria O. P., Frei Bernardo Domingues (2003), pp. 314-316. No mesmo sentido, CARAZO, Carmen Sánchez (2000), pp. 71-72. A trad. é nossa.

508 ANDRADE, Manuel da Costa (2004), Direito Penal Médico, p. 172.

509 O Juramento de Hipócrates permaneceu como referência deontológica até ao século XX, encontrando-se o encontrando-seu texto exposto na íntegra em várias referências bibliográficas. Realçamos porém, o parágrafo correspondente ao segredo médico que sublinha: “tudo o que veja ou oiça sobre a vida das pessoas, no exercício da minha profissão, e que não deva ser divulgado, manterei em segredo”. Os valores e princípios expressos no texto original do Juramento de Hipócrates são: a fidelidade (para com a tradição corporativa), o serviço do doente (o bom uso dos conhecimentos), o segredo e a discrição. Note-se contudo, que o Juramento de Hipócrates não evoca o princípio, hoje basilar, do consentimento do doente.

No entanto, essa questão também não surge no Juramento de Genebra, aprovado em 1948 pela Associação Medica Mundial (AMM)organismo apolítico criado em 1948,que “substitui” desde então o Juramento de Hipócrates. Cf. PESSINI, Leo e BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de (2002), Problemas Actuais de Bioética, 6ª ed. rev., S. Paulo: Edições Loyola, p. 431 e HOTTOIS, Gilbert (2003),

“Deontologia e Ética Médicas”, in Nova Enciclopédia da Bioética (coord.: Gilbert Hottois e Jean-Noël Missa e trad. do original francês por Maria Carvalho), Lisboa: Instituto Piaget, p. 215.

510 O segredo religioso é consagrado na Igreja Católica seguramente após o século III, depois de Cristo.

Cf. RUEFF, Maria do Céu (2005), p. 265.

constituindo “uma das constantes antropológicas mais estabilizadas e irrenunciáveis da organização social”511.

Apesar da sua longa existência histórica, o segredo médico adquire presentemente, novos contornos que superam o paternalismo outrora dominante na relação médico – doente.

Recordamos assim a necessidade do segredo, nesta área tão particular como a saúde, ser compreendido à luz do exercício actual da Medicina e das novas possibilidades que a tecnologia lhe imputou. Como temos vindo a sublinhar, a prestação de cuidados de saúde insere-se na era da comunicação e informatização, não sendo pois possível conceber o segredo médico sem ter presente a importante legislação sobre a protecção de dados pessoais e o consequente o enquadramento da recolha, tratamento, acesso, segurança, … dos dados de saúde.

Simultaneamente, o exercício da Medicina comportou mudanças, encontrando-se actualmente emoldurado pela socialização no atendimento. É assim que o caracteriza MARIA HELENA DINIZ, quando considera o desaparecimento do antigo médico de família e o aparecimento de novos padrões de conduta entre médico e doente, vincados por convénios médico-hospitalares, pela democratização da Medicina e pelo atendimento em massa512. De facto, a actividade isolada desenvolvida em consultório próprio tem vindo progressivamente a transformar-se em prática empresarial, onde se vislumbram clínicas recheadas de equipamentos sofisticados e profissionais sem vínculo. Os hospitais englobam serviços múltiplos, sendo os actos médicos praticados por elementos distintos de acordo com a especialidade, os dias ou turnos em que prestam serviço513. É a chamada “Medicina em equipa”, com a inerente e necessária partilha de informação entre os múltiplos profissionais, muitos destes jamais reconhecíveis aos olhos dos doentes, imperando assim o anonimato e a impessoalidade.

De modo paralelo assiste-se com frequência à exigência de acesso à informação de saúde por parte de terceiros pagantes, nomeadamente as companhias seguradoras.

Além disto, é também possível encontrar no mercado empresas que recrutam profissionais de saúde para a prestação de cuidados em áreas ou locais específicos, por tempo determinado e geralmente reduzido. Tudo isto, associado ao panorama actual do

511 ANDRADE, Manuel da Costa (2004), Direito Penal Médico, p. 172.

512 DINIZ, Maria Helena (2005), “O Direito Ante a Nova Imagem da Ética Médico-Científica”, Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, ano 2, nº 4, Julho-Dezembro de 2005, Coimbra:

Centro de Direito Biomédico, p. 7.

513 Cf. ABREU, Luís Vasconcelos (2005), “O Segredo Médico no Direito Português Vigente”, in Estudos de Direito de Bioética (coord.: José de Oliveira de Ascensão), Coimbra: Almedina, p. 263.

número crescente de patologias consolidadas como doenças de declaração obrigatória, parece tornar o segredo médico em algo fugaz, desacreditado e decrépito, e não raras vezes, seriamente violado.

Cremos pelo contrário, que apesar do peso da idade milenar, este mandamento dos pronunciamentos médicos, como o designa MANUEL DE ANDRADE, longe de estar ultrapassado ou obsoleto, deve antes ser reforçado na importância do seu valor (naturalmente adaptado à nossa realidade) e utilizado como bastião contra as novas possibilidades de violação da privacidade da pessoa, em especial da pessoa doente, à partida fragilizada na sua condição, continuando a afirmar-se como um dos elementos fundamentais da ética médica. Constituindo tal como sublinha HENRI ANRYS “o desafio de hoje”514.

Contudo, a visão do segredo médico como um valor absoluto e supremo, sobre o qual competia exclusivamente ao médico decidir, não se coaduna com a sociedade e a Medicina dos dias de hoje. O mesmo sucede ao princípio que também já ganhou foros de cidadania, de ser o doente o titular dos interesses protegidos515.

Na verdade, em determinadas circunstâncias verifica-se uma situação de conflito entre o segredo e outros valores como, por exemplo, a vida, havendo então a necessidade de efectuar uma séria reflexão e uma justa ponderação dos valores ou interesses em confronto.