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Acesso à informação pelo titular de dados

2. O acesso à informação de saúde

2.2 Acesso à informação pelo titular de dados

administrativos dos dados e saúde, de cópias de segurança, poderão conferir a necessária confidencialidade à informação clínica das pessoas doentes.

Nesta linha, a criação de um dossier clínico informatizado, deve ser, tal como preconiza a entidade independente, uma prioridade a considerar pelo Ministério da Saúde. E quiça, num futuro próximo, discutir-se-á à luz do que ocorreu em França, a criação de um dossier clínico informatizado e partilhado, disponível numa base de dados, que centralize a informação clínica relevante de cada pessoa e acompanhe o seu percurso471.

sobre a sua saúde. Contudo, a vontade da pessoa em não ser informada deverá ser respeitada”.

Na redacção deste documento elaborado pelo Conselho da Europa em 1996, assinado em Oviedo a 4 de Abril de 1997, ratificado e promulgado em Portugal em 2001, encontra-se reafirmado no nº 2, do artigo 10º, não só o referido direito de acesso à informação de saúde, mas também um direito negativo.

O “direito a não ser informado” ou o “direito a não saber”, é pois um dos corolários do direito à autodeterminação informativa, observado como um direito negativo que deve na esteira do que defendem a maioria dos autores, ser respeitado472.

Existem algumas pessoas que por diversos motivos preferem, em consciência, não serem informadas relativamente a certos aspectos da sua saúde, o que se afigura legítimo, visto ser uma manifestação da sua autodeterminação. Veja-se, por exemplo, o caso das doenças de manifestação tardia, por nós já enunciadas, ou até mesmo, a decisão da pessoa não se submeter a análises que revelem a sua intimidade biológica.

Honrar essa decisão não é mais do que respeitar um agente autónomo que, na esteira do que defendem BEAUCHAMP e CHILDRESS “é, no mínimo, reconhecer o direito dessa pessoa de ter suas opiniões, fazer as suas escolhas e agir com base em valores e crenças pessoais”473.

Na verdade, a autodeterminação é, nas sociedades plurais e democráticas, observada como um direito. Deste modo e tal como advogam grande parte dos autores, especialmente os mais liberais, uma das formas da pessoa exercer este direito poderá ser através do afastamento do processo de decisão. Por outro lado, o direito a não saber, não pode, nem deve, ser confundido com a ausência de consentimento para uma intervenção. Por exemplo, a pessoa pode assentir em retirar uma “massa” e não querer, à posteriori, saber o resultado da anatomia patológica relativo à mesma474.

472 MAZARÍO, José M.ª Contreras (2000), “Derecho a la Intimidad, Pruebas Biomédicas y Relaciones Laborales. Especial Referencia a la Jurisprudencia del Tribunal de Justicia de las Comunidades Europeas”, Derechos y Libertades, Año V, nº 9, Julio-Diciembre 2000, Madrid: Imprenta Nacional del Boletín del Estado, pp. 208-209 e BIDASOLO, Mirentxu Corcoy (1998), p. 123. A trad. é nossa. Há quem defenda, numa perspectiva economicista, que o direito a não saber é anti-económico, devendo portanto ser um direito a rejeitar. Outros apelam a argumentos como a solidariedade e a responsabilidade ao recusarem o exercício deste direito. Cf. PEREIRA, André Gonçalo Dias (2004), pp. 469-470.

473 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. (2002), p. 142.

474 De acordo com PAULA MARTINHO DA SILVA o “direito a não saber” ou a “não querer ser informado”, não deve ser confundido com um obstáculo a uma intervenção cirúrgica ou à validade do consentimento da pessoa para uma intervenção. Esta pode ser consentida, mesmo que o paciente deseje não conhecer a origem do seu padecimento. SILVA, Paula Martinho da (1997), Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina Anotada, Lisboa: Edição Cosmos, p. 49.

Há contudo, quem defenda que o culto do “não saber” constitui uma renúncia à autonomia. GILBERT HOTTOIS e JEAN-NOËL MISSA reconhecem que o respeito pela autonomia da pessoa e, no caso concreto do doente, exige a sua plena informação, caso contrário, não será possível a tomada de decisão adequada. De acordo com estes Autores, quando um doente decide pelo desconhecimento do diagnóstico e do prognóstico, confiando nos profissionais que o tratam (ou nos membros da sua família), para que tomem em consciência, as decisões que considerarem melhores para ele, está voluntária e livremente a renunciar à sua autonomia475.

Ainda a este propósito e de uma forma que não deixa de ser pertinente e até curiosa, ANDRÉ PEREIRA refere que “o problema fundamental do direito a não saber é o conhecimento da possibilidade de conhecimento”476. Na verdade, o Autor refere-se concretamente ao facto do sujeito estar ciente da possibilidade de conhecer determinadas informações, para se determinar no sentido de as recusar. Ou seja, defende a necessidade de uma informação básica, um conhecimento em abstracto, por parte do afectado, no âmbito da área de conhecimento em questão. Desta forma, a pessoa poderá ponderar adequadamente acerca dos riscos da falta de conhecimento477.

Se por um lado, é considerado “o direito a não saber”, muito embora surjam argumentos em contrário478, “o direito a saber” materializado, por exemplo, no acesso à informação de saúde é, cada vez mais, um direito reivindicado pelos utilizadores destes serviços. A este propósito, MÁRIO ROCHA reconhece o “direito a saber” como parte integrante do direito à privacidade, abrangendo toda a informação relativa à saúde, independentemente da sua forma – diagnóstico, prognóstico ou qualquer outro tipo de informação479.

O direito a conhecer os dados que sobre a própria pessoa são tratados, é um direito fundamental reconhecido pela CRP, no art. 35º, nº 1480.

475 HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël (2001), Nova Enciclopédia de Bioética (trad. de Maria de Carvalho), Lisboa: Instituto Piaget, p. 71.

476 PEREIRA, André Gonçalo Dias (2004), p. 469.

477 PEREIRA, André Gonçalo Dias (2004), p. 469.

478 É comummente aceite que “o direito a não saber” pode sofrer restrições, não sendo portanto, absoluto.

Veja-se o caso das doenças infecto-contagiosas, em que é necessário informar o doente para que este tome medidas para a protecção de terceiros (HIV, Tuberculose, Sífilis, Hepatite, …).

479 ROCHA, Mário de Melo (2003), “Vida Privada e Direito à Informação”, in Direitos do Homem e Biomedicina, Lisboa: Universidade Católica Editora, p. 75.

480 De acordo com o aludido artigo “todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua rectificação e actualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei”.

Na mesma linha, a nossa lei civil, no art. 573º estabelece uma obrigação de informação e de apresentação de coisas e documentos. Estando descrito que “a obrigação de informação existe, sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias”481.

Simultaneamente, o acesso à informação clínica é contemporaneamente considerado como um direito do doente, consagrado na Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes (CDDD). Segundo a sua redacção, da autoria da Direcção Geral de Saúde (DGS), “o doente tem direito de acesso aos dados registados no seu processo, devendo essa informação ser fornecida de forma precisa e esclarecedora”482.

Na realidade, está descrito que a informação clínica e os elementos identificativos inscritos no processo clínico pertencem ao doente. Como tal, este tem o direito, desde que seja seu desejo, a tomar conhecimento dos dados registados no mesmo.

Porém, a questão que agora se impõe, prende-se com o tipo de acesso e qualidade de informação disponíveis ao titular dos dados de saúde.

No nosso país, o direito de acesso à informação relativa a dados da saúde, incluindo os dados genéticos pelo titular, está consagrado na Lei da Protecção de Dados Pessoais e na Lei sobre a Informação Genética Pessoal e Informação de Saúde. Realce-se contudo, que esRealce-se acesso é limitado, na medida em que só pode Realce-ser efectuado por intermédio de um médico escolhido pelo titular de dados483. Reconhece-se assim o acesso indirecto à informação clínica e consequentemente ao processo clínico, o que na essência constitui uma limitação importante, embora não constitua um impedimento.

A informação de saúde é, por um lado, e à luz do que determina a legislação (Lei nº 12/2005, de 26 de Janeiro), propriedade da pessoa titular de dados. Mas, por outro, a mesma não pode ter acesso livre e directo à sua informação, sendo-lhe permitido somente o acesso por “intermediação”.

481 BASTOS, Jacinto Rodrigues (2005), Código Civil Anotado e Actualizado, 15º ed., Coimbra: Almedina, p. 218.

482 DIRECÇÃO-GERAL DA SAÚDE (1998), Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes, Lisboa: Ministério da Saúde, Direcção Geral de Saúde.

483 Art. 11º, nº 5, da Lei nº 67/98. O mesmo reitera a Lei nº 12/2005, de 26 de Janeiro ao afirmar no seu art. 3º, nº 3, que “o acesso à informação de saúde por parte do seu titular, ou de terceiros com o seu consentimento, é feito através de médico, com habilitação própria, escolhido pelo titular da informação”.

A Lei nº 65/93, de 26 de Agosto, que regula o acesso aos documentos da Administração, estabelece no seu art. 8º, nº 2, que “as informações de carácter médico só são comunicadas ao interessado por intermédio de um médico por si designado”.

Compreende-se que a documentação das informações não substitui o contacto pessoal, nem mesmo a sua repetição para que a pessoa fique esclarecida. Caso contrário, bastaria a entrega burocrática de documentos, no sentido de cumprimento de uma mera formalidade, ainda que os mesmos contivessem toda a informação necessária.

Pressupõe-se pois, que as informações esclareçam e consciencializem o paciente do seu estado e do seu futuro, permitindo a tomada de posições relativamente a estes484.

Paralelamente, surgem argumentos no sentido de que o acesso directo à informação vigente no processo clínico pode, de alguma forma, constituir uma violação da privacidade profissional, designadamente no que concerne à informação subjectiva, considerada por muitos, como propriedade intelectual do médico ou profissional em questão. Conjuntamente, poderão existir informações no dossier clínico, referentes ou prestadas por terceiros (por exemplo familiares). Como tal, são passíveis de devassar a privacidade dos mesmos, se o acesso for directo e sem qualquer tipo de restrição.

Nesta linha conceptual, a liberdade de acesso pelo titular, pode tornar-se contraproducente. Alguns autores reportam-se, como forma de argumento, às situações de internamento compulsivo, de diagnóstico fatal e até mesmo aos casos em que existe documentação de sintomas que permita uma classificação enganosa de uma doença, em que a emissão de informação possa converter-se num elemento prejudicial (causar perigo para a vida ou grave dano à saúde física e psíquica do doente).

Assim, não estando em causa a discussão ética da pertença dos dados de saúde, o que se discute actualmente é o interesse em que o doente conheça toda a verdade e as razões legítimas que poderão ser invocadas para manter o doente na ignorância de um diagnóstico ou prognóstico grave485.

Além disso, há também quem defenda que a completa divulgação dos dados não os torna por si só acessíveis, na medida em que o Homem médio pode não conseguir depreender o significado dos mesmos. Este argumento é contudo, facilmente rebatido com o dever de esclarecimento que impende sobre o profissional de saúde, que no exercício do mesmo deverá atender às especificidades e limitações da pessoa em concreto.

Não estamos também alheias ao argumento frequentemente invocado de que os utilizadores dos sistemas de saúde ficarão, porventura, mais expostos às pressões das

484 Cf. RODRIGUES, João Vaz (2001), O Consentimento Informado para o Acto Médico no Ordenamento Jurídico Português, Coimbra: Coimbra Editora, p. 247.

485 Cf. TEIXEIRA, Frederico (2003), Consentimento e Confidencialidade, Coimbra: Gráfica de Coimbra, p.

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entidades patronais, das seguradoras e até mesmo da curiosidade de terceiros, no sentido de conhecerem os seus dados de saúde e inevitavelmente a sua intimidade.

Ainda assim, o acesso mediato ou indirecto à informação de saúde, pelo titular dos dados, ou seja, a comunicação da mesma por intermediação, constitui, na nossa perspectiva, uma limitação. A legislação limita-se a tratar as possíveis situações de forma indiferenciada. Na verdade, a lei vigente nem sequer preconiza a possibilidade da pessoa escolher a modalidade da comunicação (acesso imediato ou mediato) ou a hipótese de acesso mais directo somente aos “dados objectivos”, como os resultados dos exames complementares de diagnóstico. Nem mesmo, apresenta fundamento para a possibilidade de vedar o acesso directo apenas às informações subjectivas do profissional de saúde ou aos dados inscritos relativos a terceiros. Apresenta-se na opinião muitos Autores demasiado restritiva, no que toca ao acesso à informação de saúde por parte do titular486.

Note-se, que os países latinos têm vindo a admitir o acesso ao processo clínico de forma mais liberal. É exemplo disto a França, a Bélgica e a nossa vizinha Espanha, que preconizam o acesso directo salvaguardando algumas excepções. Na França encontra-se vigente a possibilidade da pessoa escolher entre as modalidades de comunicação da informação – acesso imediato e mediato, ao conjunto de informações respeitantes à sua saúde, na posse de um médico ou hospital, sendo o pedido de acesso remetido ao profissional de saúde, ao responsável do estabelecimento ou à pessoa designada para esse efeito487. A lei Belga consagra o direito da pessoa consultar livremente o processo, mas reconhece que a informação subjectiva não entra no domínio desse direito. Em Espanha, a consulta livre com possibilidade de obtenção de cópias, reconhece a limitação da salvaguarda da confidencialidade da informação de terceiros, bem como o direito dos profissionais à reserva das anotações subjectivas. Já nos países germânicos, esta norma da consulta livre é já tradicional. A Alemanha, por exemplo, reconhece o acesso directo aos dados objectivos, deixando ao critério do médico o acesso aos dados subjectivos. Por seu lado, a Dinamarca adoptando um modelo mais liberal, preconiza na sua legislação, o acesso livre e total às informações patentes no processo clínico (incluindo as notas pessoais ou os comentários em relação

486 Neste sentido, MONIZ, Helena (1997), pp. 253-254 e 279.

487 COMMISSION NATIONALE DE L’INFORMATIQUE ET DES LIBERTES (2006), “Dossiers de Santé”, disponível in http://www.cnil.fr. A trad. é nossa.

aos exames radiográficos). No entanto, todos os pedidos são examinados e a consulta é directa ou efectuada com a ajuda de um médico488.

Com efeito, verifica-se uma tendência a nível europeu no sentido do acesso livre da informação no âmbito da saúde e consequentemente ao processo clínico. A CNPD

evidencia similarmente, a par do que temos vindo a referir, as manifestas limitações ao direito de acesso, patentes no art. 11º, nº 5, da Lei da Protecção de Dados Pessoais, admitindo nas suas recomendações, a possibilidade da norma sofrer uma inflexão489.

Recordamos ainda, que apesar dessa tendência europeia, há muito tempo generalizada nos países anglo-saxónicos (fundada em razões históricas e culturais profundas), que o “direito a saber” 490 e o “direito a não saber” não são absolutos.

À luz do que determina a CDHB (Cf. art. 10º, nº 3 e art. 26º) cabe à lei nacional, e a título excepcional, prever restrições aos direitos a saber ou a não saber, no interesse do paciente e consequentemente da sua saúde, bem como de terceiros. Veja-se o caso frequentemente apontado, do conhecimento da existência de uma predisposição para o desenvolvimento de uma determinada doença, cuja informação constitui a única forma que permite ao interessado a adopção de medidas preventivas face à mesma.

Na mesma linha, reconhece-se a importância da protecção de terceiros, no que concerne a doenças infecto-contagiosas (grave perigo para a saúde pública). Para tal, é necessário informar o portador da doença, mesmo estando invocado o seu direito a não ser informado, podendo este ser preterido, de forma a prevenir o risco de terceiros, nomeadamente familiares491. São igualmente problemáticas as situações em que a informação sobre o interessado se encontra conectada de forma inseparável a informação sobre outra ou outras pessoas (informação genética), bem como os casos de urgência terapêutica, em que se relega para segundo plano o dever de informar, actuando em prol da saúde do doente, seguindo o princípio da beneficência.

Assim sendo, cabe ao direito interno de cada Estado, regular os possíveis conflitos que poderão surgir entre a obrigação de informar e o interesse da saúde do

488 Cf. PEREIRA, André Gonçalo Dias (2004), pp. 529-531 e COMISSÃO NACIONAL DE PROTECÇÃO DE DADOS (2004), “Relatório de Auditoria ao Tratamento de Informações de Saúde nos Hospitais”, pp. 13-14.

489 COMISSÃO NACIONAL DE PROTECÇÃO DE DADOS (2004), “Relatório de Auditoria ao Tratamento de Informações de Saúde nos Hospitais”, p. 74.

490 ANDRÉ PEREIRA considera a existência de cinco limites ao dever de informar e consequentemente ao direito a saber: o caso de urgência, a renúncia do doente ao seu direito de saber (o direito a não saber), o caso do paciente resoluto em que uma figura próxima é autonomizada, o paciente que já se encontra informado (por razões da sua profissão: médico, enfermeiro ou o doente crónico) e finalmente o privilégio terapêutico. Cf. PEREIRA, André Gonçalo Dias (2004), p. 459.

491 Vid. infra, “O segredo médico”, pp. 156 e ss.

doente, bem como os casos de possível colisão entre o direito a não ser informado ou a não saber e o dever de informar por parte do médico, atendendo igualmente aos interesses de terceiros492.

Dependendo das normas específicas instituídas por cada Estado Membro, teremos um tipo de acesso à informação de saúde, por parte do titular de dados, eventualmente distinto. No nosso país, até inflexão da norma ocorrer, o acesso é, como observado, indirecto mas não impeditivo, revelando-se na nossa perspectiva restritivo.