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5. O direito à privacidade

5.1.3 A Idade Média

interrompam, (…) Do mesmo modo recordo, consoante me agrada, as restantes coisas que são introduzidas e acumuladas pelos sentidos, e, sem nada cheirar, distingo o perfume dos lírios do das violetas, e, sem nada provar nem tocar, mas apenas recordando, prefiro o mel ao arrobe e o macio ao áspero. Realizo estas acções no meu interior, no imenso palácio da minha memória. Aí está à minha disposição o céu, e a terra, e o mar, com todas as coisas que neles pude perceber pelos meus sentidos, excepto aquelas de que me esqueci. Aí me encontro também comigo mesmo e recordo-me de mim, do que fiz, quando e onde o fiz, e de que modo fui impressionado quando o fazia”146.

Há porém, quem se pronuncie em relação à sua Obra como sendo mais uma teoria do conhecimento (da interioridade, da introspecção ou do misticismo), do que propriamente a uma teoria de reconhecimento da intimidade. Na verdade, SANTO

AGOSTINHO não evidencia nos seus escritos, uma definição de intimidade ou até mesmo, uma argumentação a favor da capacidade do indivíduo se desligar do mundo exterior, sendo esta a argumentação invocada no sentido do não reconhecimento da intimidade na sua teoria147.

Com o Cristianismo apela-se à solidão como substância da alma e aprofunda-se a busca de bens não materiais da pessoa, que contribuam para a sua plenitude existencial. O Homem constitui-se como portador de valores próprios e absolutos que guarda na sua esfera privada, o ser humano passa a ser reconhecido como pessoa e não como um mero ser, que desempenha papéis em sociedade. Textos como o Novo Testamento reconhecem a ideia de intimidade como manifestação de Deus na própria vida interior148.

Seguindo esta tradição cristã, existem referências de que terão sido os monges da Idade Média a difundir a importância e o culto da intimidade através do isolamento, bem como os mecanismos para a sua vigência e aperfeiçoamento. Estes, ter-se-ão unido aos senhores feudais, proprietários de terras e vassalos, surgindo desta forma, uma elite de pessoas ciosas da sua vida interior. Naquele tempo, a propriedade, sinal de poder,

146 SANTO AGOSTINHO (2001), pp. 242-243.

147 Vid. na matéria DELGADO, Lucrécio Rebollo (2000), p. 39. A trad. é nossa.

148 É visível a ideia de intimidade como manifestação de Deus em S.MATEUS, que ao referir-se à esmola e oração, no seu capítulo sexto, escreve: “Assim a tua esmola se fará no oculto e teu Pai, que vê no oculto, te dará o prémio. E quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar em pé nas sinagogas e nas esquinas das praças para serem vistos pelos outros. Eu vos garanto: eles já receberam a recompensa. Mas quando rezares, entra no teu quarto, fecha a porta e reza ao teu Pai que está no oculto.

E o Pai, que vê no oculto, te dará a recompensa”. Cf. MATEUS 6, 4-6. Novo Testamento (1999), 2ª ed., Petrópolis: Editora Vozes, p. 28.

passou de algum modo a ser condição para se desfruir de intimidade. A valorização da intimidade e isolamento, antes cultivada unicamente pelos monges, vai-se transmitindo ao longo dos séculos, muito embora, constitua somente privilégio de alguns149. Isto porque, na Idade Média, o indivíduo encontrava-se inserido em comunidades colectivas, feudais e comunitárias, dependendo a sua vida da solidariedade colectiva. Vivia-se numa sociedade altamente hierarquizada em que a supremacia da Igreja Católica era evidente, encontrando-se presente uma economia de foro rural onde imperava a dependência. Desta forma, a maioria das pessoas possuía um círculo muito reduzido, ou inexistente, de intimidade.

Foram ainda os monges os protagonistas de uma grande conquista da intimidade:

a confissão privada e personalizada. Segundo demonstra a História, terá sido por mérito dos monges irlandeses, no início da Idade Média, que é propagada esta nova forma de confissão, que contrariamente ao preconizado anteriormente, podia ser repetida as vezes que fossem necessárias150.

E se o pensamento cristão e, em particular, a obra de SANTO AGOSTINHO

permanecem presentes, também a força das reflexões de um outro ilustre pensador do cristianismo – STOMÁS DE AQUINO (1225-1274)151 não passam despercebidas.

Na verdade, S.TOMÁS não trata directamente o tema. Fá-lo, porém, através de outro célebre pensador já enunciado – ARISTÓTELES. Este Filósofo, na Ética a Nicómaco usa os termos gregos aidôs, aidêomai, …que são interpretados e traduzidos como: sentimento de pudor, vergonha honesta, modéstia, temer, envergonhar-se, respeitar, … O sentido destes termos, segundo ARISTÓTELES, são de acordo com os versados na matéria, de orientação aretológica, ou seja, excelência das condutas152.

S.TOMÁS DE AQUINO no Comentário à Ética a Nicómaco segue a mesma linha de pensamento teleológico, apresenta tal como ARISTÓTELES proficientes reflexões sobre o pudor e a vergonha considerando-as como “virtudes”153.

149 Cf. CARAZO, Carmen Sánchez (2000), p. 5. A trad. é nossa.

150 Cf. CARAZO, Carmen Sánchez (2000), p. 5. A trad. é nossa.

151 S. TOMÁS DE AQUINO nasceu em Roccasecca, no sul de Itália. A sua obra marca uma etapa fundamental na filosofia escolástica. Ele prosseguiu e concluiu o trabalho de ALBERTO MAGNO, tendo ficado conhecido como o Doctor Angelicus – “Doutor Angélico”. Em 1879 as suas obras foram reconhecidas como sendo a base da teologia católica. A filosofia deste reconhecido Autor é conhecida como o “tomismo”.

152 Vid.ARISTÓTELES (2004), Ética a Nicómaco (trad. do original grego e notas de António C. Caeiro), Lisboa: Quetzal Editores, pp. 105-106 e 281-282.

153 S. TOMÁS trata estes aspectos, no De Virtutibus, que se encontram integrados em parte na Suma Teológica. Vid. na matéria AQUINO, Tomás de (1980), Suma Teológica (coord.: Rovílio Costa e Luís

Recordamos assim, o contributo deste Filósofo e Teólogo italiano do século XIII ao evidenciar que, à parte dos bens externos (riquezas), existem bens intrínsecos à pessoa humana, como o pudor, a magnanimidade ou generosidade, a verdade, …154

Este Autor, percursor da filosofia escolástica, é assim recordado por muitos como aquele filósofo para quem a intimidade era o núcleo mais “oculto” da pessoa, um bem intrínseco que só quando tornado público pelo próprio, é que podia ser julgado e valorado pelos outros155. Há mesmo quem considere que S.TOMÁSDE AQUINO, baseado na concepção cristã de que a pessoa e a sua fé são o centro da sociedade, representa a superação da interioridade de SANTO AGOSTINHO, qualificando a intimidade como sagrada. Ainda que estabeleça uma excepção a esta regra, ou seja, o segredo que vai contra o bem comum, não sendo por isso lícito guardá-lo156.

DELGADO entende inclusivamente, que é S.TOMÁS DE AQUINO quem fornece a substância, a ideia base da intimidade, quem no fundo individualiza o conceito, atribuindo-lhe as características essenciais de retiro e isolamento voluntário. Atendendo a um conceito de pessoa, então preconizado pelo pensamento cristão, surge um novo elemento característico de ser humano, o isolamento do mundo exterior, configurado na parcela da vida da pessoa independente dos demais157.