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Salvaguarda de interesses legítimos de terceiros

3. O segredo médico

3.4 Um segredo em conflito – excepções ao dever

3.4.3 Salvaguarda de interesses legítimos de terceiros

Existem casos onde cada vez mais se reconhece a legitimidade, se não o dever, do profissional de saúde quebrar o sigilo, apelando à salvaguarda de interesses legítimos de terceiros. São exemplos, os casos de risco de infecção de familiares (não raras vezes crianças) pelo VIH, hepatite, tuberculose, vírus do papiloma humano (VPH), …ou então as situações de maus-tratos556 e abuso sexual de menores.

Naturalmente não nos vamos debruçar acerca destas situações concretas, o que implicaria uma abordagem profunda na sua fundamentação. No entanto, recordamos a este propósito o importante Parecer 32/CNECV/2000 do CNECV, sobre o Sigilo Médico.

Este Parecer reporta-se a um caso paradigmático de um doente seropositivo para o VIH, que sem ter informado a sua mulher dessa positividade, mantinha com ela relações sexuais não protegidas. A médica assistente, por seu turno, depara-se com o conflito entre dois deveres: a defesa da privacidade do seu utente e simultaneamente o da protecção da saúde e vida da mulher e porventura, dos eventuais filhos do casal.

O CNECV pronunciando-se exclusivamente sobre as questões éticas, acentua que

“o sigilo médico representa um importantíssimo direito do doente e uma obrigação ética e deontológica do médico”; que “a vida tem prioridade como valor, e a sua salvaguarda é o dever ético primordial ao qual todos os outros se devem subordinar”; que “uma comunicação directa e confidencial a uma pessoa para a salvaguarda da sua vida não pode ser considerada como acto de dar publicidade a um determinado facto” e por fim, que “as acções para a salvaguarda da vida humana não podem ser consideradas violadoras de qualquer obrigação menor, pelo que se entende não haver aqui ofensa ética, nem sequer, de um ponto de vista ético, violação de um dever de sigilo”557.

Pautado por estes princípios, o CNECV foi de parecer que a médica assistente deveria continuar a envidar esforços no sentido de rapidamente persuadir o seu doente da obrigação que sobre ele impende de comunicar a seropositividade que apresenta à

556 Um estudo publicado pelo Centro de Investigação Innocenti da UNICEF, a 18 de Setembro de 2003, sobre maus-tratos em crianças, revela que perto de 3500 crianças, com menos de 15 anos, morrem todos os anos em consequência de maus-tratos nos países desenvolvidos. O estudo refere ainda que as crianças mais pequenas são as que correm mais risco e que Portugal apresenta uma taxa de incidência de mortes devido a maus-tratos 10 a 15 vezes mais elevada do que os países do topo da tabela. Vid. UNICEF (2003) Innocenti Report Card 5,disponível in http://www.unicef.icdc.org/presscentre/indexNewsroom.html.

557 Cf. CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA (2000), “Parecer 32/CNECV/2000, sobre o Sigilo Médico”, disponível in http://www.cnecv.gov.pt.

sua mulher. No caso de não o conseguir dissuadir da intenção de não comunicar o seu estado, a médica deve, de acordo com o Parecer, informá-lo que no cumprimento das suas obrigações irá comunicar a sua seropositividade à esposa, bem como os riscos da transmissão doença. O que pressupõe, no caso concreto, quebra do sigilo médico.

Salvaguarda-se, no entanto, que esta comunicação seja indispensável para efectuar os testes de diagnóstico e iniciar o tratamento, caso a mulher tenha sido infectada.

Este é, porventura, um caso comum na nossa sociedade, levando-nos a reflectir, por um lado acerca do compromisso de lealdade em relação ao utente e, por outro, em relação a interesses legítimos protagonizados por terceiros. O que claramente evidencia a instabilidade entre a fronteira da privacidade individual e o “bem de terceiros” ou o

“bem comum”, bem como as hipotéticas consequências de uma possível e arbitrária558 divulgação, referidas por inúmeros autores, designadamente o abalo na relação de confiança com o consequente abandono do tratamento e a recusa no conhecimento do estado serológico, o que inevitavelmente se traduzirá no aumento do risco de contágio.

Na nossa opinião, o sucesso nestes casos passa, em primeira linha, pelo mérito do profissional que manifestando respeito pelo utente e pela sua situação, não opta por uma divulgação discricionária da seropositividade, utilizando, como preconiza o CNECV, os meios ao seu alcance, de forma a convencer a pessoa infectada a comunicar a situação àqueles que eventualmente coloque em risco. Parece-nos, tal como defende MANUEL DA COSTA ANDRADE, que a pessoa mais facilmente responderá com responsabilidade, colaborando, se se sentir tratada com dignidade559.

Porém, nem todas as situações tomam o aludido rumo (em que a divulgação é pautada pelo consentimento da pessoa) sendo, por vezes, necessário quebrar o sigilo profissional em nome da salvaguarda de outros valores ou bens com comprovada superioridade, como a vida, a saúde, a integridade física560.

As doenças de declaração obrigatória constituem o exemplo concreto da supremacia de certos e determinados valores, constituindo uma limitação expressa e

558 Entende-se por revelação arbitrária ou discricionária aquela que não é vinculada no consentimento da pessoa (expresso ou presumido).

559 Vid. ANDRADE, Manuel da Costa (2004), p. 215.

560 A este propósito MANUEL DA COSTA ANDRADE reporta-se ao direito de necessidade. Vid. na matéria ANDRADE, Manuel da Costa (2004), pp. 216-225. Em conformidade, JOSÉ SUÁREZ e ORENCIO DOMÍNGUEZ alegam que o direito ao segredo não é absoluto pelo que deve conviver com outros direitos e interesses também relevantes para terceiros e para a própria sociedade, havendo situações que podem justificar a dispensa do dever de segredo. Cf. SUÁREZ,José María Álvarez-Cienfuegos e DOMÍNGUEZ, Orencio López (2000), “El Secreto Médico y la Confidencialidad de los Datos Sanitários”, in Responsabilidad Legal del Profesional Sanitario (coord.: Ricardo De Lorenzo y Montero), Madrid:

Asociación Española de Derecho Sanitario, p. 305.

imposta por lei ao dever de segredo médico. Constata-se assim o dever específico de comunicação a determinadas pessoas e organismos, da existência de certas patologias, que pela possibilidade de transmissão, poderão colocar em causa a saúde de terceiros e, como tal, da comunidade. O dever do Estado proteger a saúde pública, isto é, o bem comum, obriga os profissionais a declararem essas doenças transmissíveis, perfeitamente determinadas na forma e condições da sua declaração561.

O mesmo reitera o Código Deontológico da Ordem dos Médicos, no seu artigo 93º, epigrafado “deveres sanitários”, do qual decorre que “no exercício da sua profissão, deve o médico cooperar com os serviços sanitários para defesa da saúde pública, competindo-lhe designadamente: 1º participar logo que possível às autoridades sanitárias, nos impressos oficiais que lhe tenham sido fornecidos, os casos de doenças contagiosas de declaração obrigatória, segundo a tabela oficial de que tenha tomado conhecimento no exercício da sua profissão”.

Em Portugal, a tabela de doenças de declaração obrigatória está ordenada de acordo com o código da 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças, conforme a deliberação nº 131/97, de 27 de Julho, e constante da Portaria nº 1071/98, de 31 de Dezembro562.

Note-se que o elenco das doenças de declaração obrigatória passou a integrar, a partir de 16 de Março de 2005, a infecção por VIH, através da Portaria nº258/2005563, sendo então alterada a tabela anexa à Portaria 1071/98, de 31 de Dezembro. Com efeito, o Governo considera que a monitorização e a projecção a curto e médio prazos da infecção por VIH é fundamental para a sua prevenção e controlo, o que apenas se torna possível com o conhecimento do padrão epidemiológico do VIH em Portugal. A declaração passa então a ser obrigatória aquando do diagnóstico em qualquer estádio da infecção por VIH de portador assintomático (PA), complexo relacionado com a sida (CRS

-LGP) e sida, e sempre que se verifique mudança de estadiamento ou óbito564.

561 De acordo com os últimos dados, proferidos no relatório da Direcção de Serviços de Informação e Análise/Divisão de Epidemiologia, no ano de 2004 verificou-se um total de 5504 casos de notificação de doenças de declaração obrigatória. Cf. DIRECÇÃO DE SERVIÇOS DE INFORMAÇÃO E ANÁLISE/DIVISÃO DE EPIDEMIOLOGIA (2005), Doenças de Declaração Obrigatória 2000-2004, Lisboa: Direcção-Geral da Saúde, p. 4.

562 Portaria nº 1071/98, de 31 de Dezembro, que determina a tabela das doenças de declaração obrigatória, publ. in Diário da República, I Série-B, nº 301, pp. 7381-7382.

563 Portaria nº 258/2005, de 16 de Março, que determina a integração da infecção pelo VIH na lista de doenças de declaração obrigatória, publ. in Diário da República, I Série – B, nº 53, pp. 2343-2345.

564 Cf. Portaria nº 258/2005.

É então aprovado o modelo de folha de notificação relativa à vigilância epidemiológica da infecção por VIH (que se encontra anexo à Portaria nº 258/2005 e dela parte integrante), que é necessariamente distinto do emanado pelo Ministério da Saúde para a declaração obrigatória das restantes doenças transmissíveis.

Ainda a este propósito, gostaríamos de realçar o facto de não ser possível na folha de notificação da infecção pelo VIH, identificar o titular dos dados sensíveis. No campo correspondente a “dados de codificação”, patente na respectiva folha de notificação, apenas são inseridas as três primeiras consoantes correspondentes ao último apelido e as duas primeiras consoantes correspondentes ao primeiro nome próprio.

Encontra-se também preconizada a inserção dos dados relativos ao sexo, data de nascimento, idade, naturalidade e nacionalidade, não havendo em nenhum outro local, possibilidade de identificar a pessoa infectada. O que se apresenta, na nossa perspectiva, razoável, uma vez que o objectivo da notificação é o conhecimento do padrão epidemiológico do VIH565.

No caso das restantes doenças de declaração obrigatória, existe na respectiva folha de notificação um campo específico para os dados identificativos do doente como o nome, a morada, o código postal e o telefone, que será encaminhado para a autoridade de saúde do concelho.

Realçamos ainda, na matéria, o Decreto-Lei nº 89/77, de 8 de Março566, que tendo como pano de fundo o bem comum e o interesse na saúde pública, se ancora no dever de participação de doenças transmissíveis, determinando o afastamento temporário da frequência escolar e demais actividades desenvolvidas nos estabelecimentos de ensino dos alunos, pessoal docente, administrativo e auxiliar quando atingidos por essas patologias.