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CAPITULO III – LEGITIMIDADE DO PODER JURISDICIONAL NO ESTADO

7 O incidente de resolução de demandas repetitivas no Novo CPC

7.2 A origem do incidente de resolução de demandas repetitivas: o Musterverfahren

Conforme já noticiado, projeto do novo código de processo civil traz como grande novidade a criação de um incidente processual destinado a submeter ao tribunal uma controvérsia repetitiva, para que sobre ela seja fixado um entendimento, com efeito vinculante. Trata-se do “incidente de resolução de demandas repetitivas”, previsto nos arts. 930 a 951 do Projeto de lei 8.046/2010.

O citado projeto de lei teve origem no anteprojeto elaborado pela comissão de juristas instituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal nº 370/09, presidida pelo então ministro do Superior Tribunal de Justiça Luiz Fux. O incidente de resolução de demandas repetitivas, segundo constou da apresentação do anteprojeto, inspirou-se no musterverfahren do direito alemão161.

Não é o propósito do presente trabalho desenvolver um estudo comparado. As reflexões aqui contidas limitam-se, propositadamente, ao incidente de resolução de demandas repetitivas, como proposto no projeto do novo CPC. Convém, entretanto, apresentar uma breve notícia sobre o musterverfahren no direito alemão.

A Alemanha inclui-se dentre os países em que “não existem um sistema ou disposições esparsas sobre os processos coletivos em geral, mas sim leis ou dispositivos setoriais que preveem processos coletivos em matérias determinadas” (GRINOVER, 2008, p.

160 Já há quem fale na “terceira onda”, consistente na ampliação dos poderes do relator, a exemplo de Athos Gusmão Carneiro, in Recurso Especial, Agravos e Agravo Interno, 6ª Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 339/340, em que cita Ada Pellegrini Grinover, no mesmo sentido.

161 Na apresentação do Anteprojeto, assim se manifestou o então Presidente da Comissão, Min. Luiz Fux: “Com os mesmos objetivos, criou-se, com inspiração no direito alemão, 19 o já referido incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, que consiste na identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta”.

144). Ainda assim, é da mesma autora o registro de que desde a década de 70 do século passado discute-se a introdução de “remédios coletivos” no sistema processual alemão162.

Desde os anos 90 o objetivo de estabelecer mecanismos que protejam os consumidores, em típicas situações de que aqui tratamos por direitos individuais homogêneos vem se desenvolvendo e impulsionando reformas na legislação alemã. Essa busca foi inegavelmente influenciada pelo modelo de class actions dos Estados Unidos, mas não copiado. Talvez por isso a doutrina ainda consigne, como faz Gerhard Walter (2001, p. 372/373), que

As ações coletivas não existem na Alemanha, Suíça e na maioria dos outros países do sistema da civil law. A simples regra é que, em geral, todos têm refutado a uma ação somente levando em consideração sua reivindicação. Ações de intervenção ou típicas para outras pessoas não existem163

Mas não há dúvida de que existem, na Alemanha e no restante do mundo, situações similares às vividas no Brasil, capazes de gerar um grande número de pretensões – e, pois, de demandas – que guardam, em essência, a mesma questão a ser dirimida. Gerhard Walter (2001, p. 373) reconhece essa realidade, embora registre que, na realidade alemã e suíça, muitas dessas questões são resolvidas por agências governamentais, fora do Poder Judiciário, portanto.

Apesar disso, registra Ada Grinover (2008, p. 147), que a doutrina alemã mais recente tem “descoberto” as vantagens e oportunidades oferecidas pelo modelo de class

action dos americanos. E isso porque nos últimos anos diversas demandas têm sido propostas

contra empresas alemãs nos Estados Unidos (a exemplo da que envolveu a Deutsche Telekom, adiante referida), o que redundou no oferecimento de serviços, por advogados americanos, aos réus alemães. E isso, segundo a autora, levou o legislador alemão a uma reação: “Uma nova lei referente aos principais procedimentos em litígios securitárias foi editada em 2005. (...) Com a adoção deste procedimento, a legislação alemã admitiu pela primeira vez um modelo

162 No original: “The introduction of collective remedies in German Procedural Law has been discussed sisce the 1970s. The discussion took mainly place in the context of improving the consumers’access to justice”. (GRINOVER et al, p. 144).

163 No original: class action do not exist in Germany, Switzerland, and most other countries of the civil law system. The simple rule is that, in general, everyone has stading for an action only regarding his or her own claim. Intermediate or representative actions for other persons do not exist.

de processo coletivo para demandas indenizatórias de massa”164. (GRINOVER et al, 2008, p.

147).

O caso mais emblemático dessas demandas de massa foi o que envolveu a Deutsche

Telekom, a maior empresa de telecomunicações da Alemanha e da União Europeia, surgida

com a privatização da Deutsche Bundespost, ocorrida em 1995. Parte do capital da empresa permaneceu público, cerca de 15%, enquanto o restante foi parcialmente negociado na bolsa de valores de Frankfurt.

Milhares de investidores adquiriram ações da Deutsche Telekom, a elevado preço, de um lote por ela lançado em junho de 2000, por meio do qual a empresa captou mais de 13 bilhões de reais. Em fevereiro de 2001 os investidores foram surpreendidos com uma imensa queda no valor das ações, como decorrência do anúncio, pela empresa, de significativa baixa no valor de seus portfólios.

Com isso, segundo registra Ada Grinover (2008, p. 147) foram propostas mais de duas mil ações, por mais de 14 mil autores, contra a Deutsche Telekom, perante o Tribunal de Frankfurt. As audiências foram designadas para datas distantes, a mais de três anos da propositura da ação. “Durante a audiência, o magistrado se posicionou no sentido de que o Tribunal levaria aproximadamente quinze anos para decidir todas as causas em primeira instância, se o legislador não criasse nenhuma nova regra processual para procedimentos concentrados”165. (GRINOVER, 2008, p. 147).

Diante desse contexto, e mais uma vez provocado pelas demandas da vida – agora as incontáveis pretensões oriundas do mercado de capitais – o legislador alemão precisou agir, criando o musterverfahren.

O musterverfahren constitui um modelo de julgamento de controvérsias do mercado de capitais que tem como objetivo solucionar causas repetitivas, por meio de processo modelo, fixando a tese jurídica, com efeito vinculante, a ser aplicada àquela controvérsia fática ou jurídica estabelecida em juízo. Trata-se de uma técnica para a definição da solução jurídica aplicável a um grande número de feitos, através de uma causa piloto (musterprozessfürung).

164 Redação original: “A recent law concerning master proceedings in securities litigation was enacted in 2005. (...) By introducing this act, German legislation adopted for the first time a form of collective remedy for mass tort litigation”.

165Redação original: “During the hearing, the judge stated that it would take the court approximately fifteen years to decide all cases in the first instance, if the legislator did not pronounce any new procedural rules for mass proceedings”.

Antonio do Passo Cabral (2007, p. 131), o primeiro jurista brasileiro a escrever sobre o incidente, assim tratou da criação do instituto inspirador do nosso incidente de resolução de demandas repetitivas, o Musterverfahen:

Na linha dos instrumentos não representativos, foi introduzido no ordenamento alemão, em 16.08.2005, o Procedimento-Modelo ou Procedimento Padrão (Musterverfahen), pela Lei de Introdução do Procedimento Modelo para os investidores em mercado de capitais (Gesetz zur Einfürung von Kapitalan-leger- Musterverfahen, abreviada de KapMuG).

O Musterverfahen, a reboque de outras disposições legais alemãs no campo da tutela coletiva, também tem espectro de aplicação bem restrito, já que inserto pelo legislador tedesco não em uma norma geral, mas na disciplina específica da proteção dos investidores no mercado de capitais.

Aluisio Mendes (2012, p. 279/280) ratifica a inspiração alemã, embora se refira também ao Musterverfahen da jurisdição administrativa, criado em 1991. Daí dizer o autor que o Musterverfahen do mercado de capitais tedesco seria uma “nova versão de

Musterverfahen”:

Sob inspiração das antigas ações de ensaio (test claims), foram incorporadas, em 1991, ao Estatuto alemão da Jurisdição Administrativa (Verwaltungsgerichtsordnung), sob a denominação de procedimento-padrão (Musterverfahen). Em seguida, a Inglaterra edita, em 2000, o seu primeiro Código de Processo Civil, com a previsão das decisões de litígios em grupo (group litigation order), ao lado da própria demanda-teste (test claim). Mas, em 2005, uma nova versão de Musterverfahen é criada na KapMuG (Gesetz über Musterverfahen in kapitalmarkttrechtlichen Streitigkeiten-Kapitallanger- Musterverfahensgesetz ou Lei sobre o Procedimento Modelo nos conflitos jurídicos do mercado de capital). O Musterverfahen acima referido, destinado ao mercado de capitais, foi previsto em norma de vigência temporária, “perdendo eficácia em 2010 (§ 20 da KapMug)” (CABRAL, 2007, p. 133). Posteriormente, “foi prorrogado até outubro de 2012, com tendência a se tornar definitiva neste ano” (MENDES, 2012, p. 280). Recentes notícias dão conta de que o instituto “sofreu uma revisão de fundo e foi prorrogado por mais oito anos, até 2020”166.

Outro dado importante do Musterverfahen criado em 2005 e que, de fato, inspirou o legislador brasileiro, é que ele tem campo de aplicação muito específico. Viabiliza a decisão sobre “pontos litigiosos (Streitpunkte) expressamente indicados pelo requerente (apontados concretamente) e fixados pelo juízo, fazendo com que a decisão tomada com relação a estas questões atinja vários litígios individuais” (CABRAL, 2007, p. 132).

166 Notícia disponível em http://www.taylorwessing.com/de/newsletter/corporate/enewsletter-corporate- dezember-2012/verlaengerung-und-erweiterung-des-kapitalanleger-musterverfahrensgesetzes-kapmug.html, acesso em 08.02.2013, às 13h12min.

O Musterverfahen, portanto, permite que sejam enfrentadas questões fáticas e jurídicas. A submissão de tais questões ao tribunal, por meio do incidente, provoca o desmembramento do julgamento: uma parte da atividade decisória é realizada pelo tribunal – com efeito vinculante e com alcance subjetivo amplo, portanto – e a outra parte, será julgada na primeira instância, respeitado o entendimento firmado no incidente167.

O musterverfahen pode ser, para fins doutrinários e práticos, dividido em fases. Humberto Theodoro Júnior (2009, p. 14) identifica três fases no instituto do musterverfahren, na Alemanha, que servem para retratar o modelo do nosso incidente de resolução de demandas repetitivas, contemplado no projeto do novo CPC: admissibilidade, apreciação do incidente e depósito da decisão passada em julgado. Considerando a análise pormenorizada, adiante realizada, do incidente de resolução previsto no projeto do novo CPC, bem como a similitude quanto às fases do musterverfahen, serão feitas breves referências comparativas, o que dispensa maiores divagações neste momento.

Importa ainda perceber – e isso é de todo importante – que o musterverfahren não se insere no contexto das típicas ações coletivas, inspiradas ou condicionadas pelo modelo americano das class actions. Ao contrário, constitui justamente uma alternativa a esse modelo, como já deixou claro Antonio do Passo Cabral (2007, p. 123), no título de seu artigo, o que é corroborado por Astrid Stadler (2009, p. 37), em recente artigo sobre o tema.

Não há, no musterverfahren, propriamente uma ação coletiva, na qual o direito de um grupo de pessoas será decidido em uma única decisão. Não se trata, portanto, uma típica hipótese de legitimação extraordinária, mas a eleição de um processo-modelo, ou uma causa piloto, na qual será decidida a questão fática ou jurídica presente em causas repetitivas. E há, nesse modelo, inúmeras vantagens, se comparado ao modelo das ações coletivas, como será adiante apontado.