• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I A TENSÃO ENTRE SEGURANÇA JURÍDICA E DURAÇÃO RAZOÁVEL

2 Direito e Poder Jurisdicional

3.1 Considerações iniciais e notícia histórica sobre a preocupação com a duração

O tempo é uma fundamental dimensão da vida humana. Há quem diga que, para o direito, o tempo constitui fator de corrosão (DINAMARCO, 2004, p. 55). O fato é que o homem vive em dados contexto e tempo e é neles que se realiza como ser social.

A era da “justiça privada” passou. O Estado exerce o monopólio da jurisdição, do poder de dizer o direito para o caso concreto e, assim, pacificar os conflitos sociais. O cidadão detém, então, em face do Estado, o direito de ação, o direito de exigir dele uma resposta, consubstanciada na efetiva tutela do direito violado ou ameaçado.

Ocorre que essa tutela não pode ser prestada a qualquer tempo. O jurisdicionado, além de poder exigir do Estado uma resposta, tem o direito de recebê-la num prazo razoável. É esse direito à tutela jurisdicional em um razoável tempo que constitui o objeto das próximas reflexões.

Não é recente a preocupação com a demora na resposta estatal por meio do processo. Celebrizou-se a expressão de Rui Barbosa (1997, p. 40) de que “Justiça atrasada não é Justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. Mas ele não foi o primeiro a se preocupar com o tema.

Não foi possível conhecer com detalhes as sociedades anteriores à invenção da escrita, notadamente quanto ao seu arcabouço institucional. Apesar de somente o código de Justiniano trazer referência clara à garantia de um tempo razoável para a conclusão das

controvérsias, há referências anteriores ao tempo como elemento fundamental da atuação institucional43.

Lembra Samuel Miranda Arruda (2006, p. 29) que “a primeira evidência do reconhecimento do direito ao speedy trial na Inglaterra dá-se em 1166 no Assize of

Clarendon”. Contudo, é na Magna Carta e no Habeas Corpus Act que, segundo ele, devem-se

buscar as referências mais relevantes.

A Magna Carta continha ao menos dois dispositivos a indicar uma incipiente preocupação com a celeridade da atuação jurisdicional. O primeiro deles era a cláusula 40, onde constava que “o direito de qualquer pessoa a obter justiça não será por nós (ou pelo rei) vendido, recusado ou postergado”. O segundo, Cláusula 61, constituía uma garantia de que eventuais transgressões aos direitos assegurados naquela Carta deveriam ser sanadas em até quarenta dias, contados da apresentação da reclamação ao rei, por parte dos barões.

Já o regulamento do habeas corpus (Habeas Corpus Act), como é sabido, constituiu importantíssimo documento de proteção às liberdades, especialmente vocacionado a limitar as arbitrariedades das autoridades públicas. Evidentemente, sua principal marca foi garantir aos aprisionados o direito a uma rápida resposta estatal.

Modernamente, os Estados Unidos editaram declarações manifestamente preocupadas com a duração do processo. No século XVII, precisamente em 25 de abril de 1682, foi editado o Frame of Government of Pennsylvania, influenciado por dispositivos da Magna Carta. Posteriormente, a Declaração da Virgínia ampliou o alcance do referido direito e teve especial valor para o direito mundial, dado o seu caráter genérico de declaração de direito. É o que ressalta Samuel Miranda Arruda (2006, p. 37):

A importância da Declaração da Virgínia para o direito ao speedy trial consiste no fato de, pela primeira vez num documento genérico, consagrado em sua inteireza à declaração dos direitos de um povo, fazer-se consignar que todo cidadão acusado em um processo criminal tem o direito a um julgamento célere44. Não se quis apenas afirmar o direito à celeridade em um específico tipo de procedimento, como o fazia o Habeas Corpus Act. Na Declaração da Virgínia foi afirmado o direito ao speedy trial em todo e qualquer procedimento criminal. O alcance da norma é imensamente alargado, inclusive no que diz respeito aos titulares e destinatários.

43 O livro oitavo, título I, do Código de Manu previa expressamente que os juízes deveriam considerar o “tempo” em seus julgamentos. Era o que previa o art. 45: “Art. 45º Que ele considere atentamente a verdade, o objeto, sua própria pessoa, as testemunhas, o lugar, o modo e o tempo, se cingindo às regras do processo”.

44 A declaração, em sua cláusula 8ª, dispõe de forma expressa “that in all capital or criminal prosecutions a man hath a right [...] to a speedy trial by na impartial jury of twelve men of his visinage”.

Nas décadas de 50 e 60 do século passado houve a disseminação significativa da preocupação com a duração razoável. Inicialmente, a Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, subscrita em Roma, garantiu o direito ao exame da causa em um prazo razoável e por um tribunal independente. Em seguida, veio a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, de 1969, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica. Conforme analisado adiante, o referido Pacto foi subscrito pelo Brasil apenas em 1992, quando, pela primeira vez, positivou-se internamente o referido direito fundamental45.

Em épocas mais recentes, houve uma tendência de constitucionalização do direito à razoável duração do processo. A Constituição de Portugal sofreu revisão em 1997 (TAKOI, 2010, p. 228), para assim tratar da questão:

Art. 20 (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva)

A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa de seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios econômicos.

(...)

Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.

No mesmo sentido, a Constituição da Espanha, de 1978, previu o direito “a um processo público sem dilações indevidas e com todas as garantias”46. Na Itália, em 1999, foi

incluído em sua Constituição o direito ao processo justo e com razoável duração (ragionevole

durata). Trata-se, portanto, de uma percepção mundial.

Essa preocupação culminou, no Brasil, com a inclusão do inciso LXXVIII ao art. 5º da Constituição Federal – cujo conteúdo, em essência, estava contido no Pacto de São José da Costa Rica – e que será objeto de estudo detalhado a seguir.