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CAPÍTULO II O NOVO CPC, O COMMON LAW E O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO

6 Considerações sobre o common law

6.2 Precedentes: conceito e natureza jurídica

Apesar de “precedente” ser um termo utilizado cada vez com maior frequência e importância no direito brasileiro, constata-se certa confusão conceitual em seu derredor. E o mesmo se diga do termo jurisprudência, coisa diversa.

Precedente pode ser definido como “uma decisão anterior persuasiva para decisões futuras” (ROSAS, 2011, p. 218)147. Marcelo Alves Dias de Souza (2011, p. 41), citando

Henry Campbell Black, define-o como “um caso sentenciado ou decisão da corte considerada como fornecedora de um exemplo ou de autoridade para um caso similar ou idêntico posteriormente surgido ou para uma questão similar de direito”148. Neil Duxbury (2008, p. 1),

define precedente como “um evento passado – no direito o evento é quase sempre uma decisão – que serve como um guia para uma ação presente”. Aduz, em seguida, que nem todo evento passado constitui um precedente, pois muitas coisas que fizemos no passado desvanecem-se na insignificância e, por isso, não servem de referência para o presente149.

Dos conceitos acima citados e daquilo que se encontra na doutrina em geral, extrai-se que o precedente é uma decisão judicial anterior cujos fundamentos (razões de decidir) serão relevantes para casos futuros. Embora precedente judicial seja algo existente em todos os sistemas jurídicos, cada ordenamento – ou sistema jurídico – lhe atribui função e efeitos diferenciados, o que será objeto de estudo adiante, quando analisado o princípio do stare

decisis.

Definido o conceito de precedente, importa agora analisar sua natureza jurídica. Em outras palavras, importa tratar de um tema altamente controvertido e absolutamente relevante quanto ao precedente: sua natureza declaratória ou constitutiva/criativa do direito.

A primeira corrente defende ser o precedente judicial necessariamente declaratório de um direito pré-existente. O direito contido e aplicado no precedente, portanto, nada mais é do que o direito anteriormente existente, seja previsto em textos normativos escritos – constituição, leis, decretos, regulamentos etc. – seja costumeiro, devidamente reconhecido naquele sistema jurídico. Essa segunda corrente nega, portanto, o papel criativo da jurisdição.

Conforme registra a doutrina, não é possível precisar a origem exata da teoria declarativa.

Apesar de ser imprecisa a origem exata da teoria declarativa, sabe-se que sua primeira formulação conhecida foi feita por Hale. Entretanto, sua formulação clássica é encontrada no não menos clássico Comentaries on the law of England

147 Essa definição, que ressalta o caráter persuasivo do precedente, manifestamente considera o nosso sistema jurídico, onde ainda não se conhece nenhum precedente vinculante, embora – em processos objetivos – a CF atribua efeito vinculante às decisões do STF em cotrole concentrado de constitucionalidade.

148 Na redação original, citada pelo autor: “an adjudged case or decision of a court, considered as furnishing an example or authority for an identical or similar case afterwards arising or a similar question of law”. In Black’s

law dictionary. 6ª ed. St. Paul, USA: West Publishing, 1990, p. 1.176).

149No original: “A precedent is a past event – in law the event is nearly always a decision – which serves as a guide for present action. Not all past events are precedents. Much of what we did in the past quickly fades into insignificance (or is best forgotten) and does not guide future action at all”.

de Blackstone. Na citada obra, ao responder a questão de como se conhece ou se prova que determinada norma possui, por seu uso imemorial e universal, validade e força de lei, afirmou o autor que os juízes “são depositários das leis; os oráculos vivos que devem decidir em todos os casos de dúvida e que se encontram obrigados, por um juramento, a decidir em conformidade com o Direito do país”. (SOUZA, 2011, p. 42).

A teoria declarativa fia-se em excelentes argumentos e tem, ao seu lado, ilustres doutrinadores. Arruda Alvim (1995, p. 289), por exemplo, afirma categoricamente que o juiz, “mesmo no caso de lacunas da lei, será sempre um explicitador do sistema”, um aplicador do direito existente. Diz o autor que

nos casos de aplicação analógica de um dispositivo legal ou dos princípios gerais do direito, em que, lacunosa a lei, mas não lacunoso o sistema, que é, por definição, pleno (a plenitude lógica do ordenamento jurídico) há o juiz de explicitar, dentro do sistema, a maneira e a forma, mediante a qual dever-se-á solucionar o caso concreto. No entanto, o trabalho do juiz, ao invés de se basear numa lei, identificada à luz dos fatos jurídicos que lhe foram trazidos, constituir-se-á, diante da lacunosidade da lei, o de buscar no sistema qual o meio mediante o qual se constata que o sistema é íntegro.

Reis Friede (2010, p. 2) é firme na defesa do que chama de aprisionamento “à absoluta servidão da lei”. Afirma o professor da Faculdade Nacional de Direito e desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região que

Esta é exatamente a prisão e a consequente servidão a que estão vinculados todos os Membros do Poder Judiciário (além de todos os demais cidadãos brasileiros), sem qualquer exceção, em sua missão última e derradeira de, - ao dizer o direito a ser aplicado -, realizar, em última análise, o verdadeiro anseio do jurisdicionado, no sentido de alcançar o que ele mesmo ousou definir como Justo ou, em termos mais amplos, como Justiça.

O mais relevante dos argumentos favoráveis à teoria declarativa, sem dúvida, tem sede constitucional. Reside nas supostas ausências de legitimidade democrática na atividade de criação do direito pelo juiz e violação à separação de poderes. Não é por acaso que há notáveis autores da tradição civil law, mas com vivência e experiência no common law, desconfiados dessa hipertrofia das cortes nas democracias contemporâneas150.

Já a teoria constitutiva segue linha oposta: reconhece o papel criativo da jurisdição (judge make law). É ela que prevalece no direito contemporâneo, especialmente nos Estados Unidos e no Brasil. Autores como Cappelletti (1993, p. 21) afirmam categoricamente que não mais se discute se o juiz cria direito, mas apenas quais os limites democráticos a tal atividade. No Brasil, é de Barbosa Moreira (2001, p. 259/260) que se colhe lição na mesma trilha:

Que o juiz não se limita a utilizar normas pré-fabricadas, mas desempenha, também aí uma função criadora, é coisa de que ninguém mais duvida. O juiz simples “boca da lei”, sonhado por antiga doutrina, se alguma vez existiu, é defunto de longa data sepultado. Há limites, contudo, para semelhante criação. O juiz cria nos interstícios da rede normativa; não se lhe permite sobrepor a ela sua fantasia, sorvida que seja nas fontes mais puras e alimentada pelas mais santas intenções.

Mônica Sifuentes (2005, p. 122), embasada em respeitada doutrina (de Couture a Michele Taruffo), afirma estar superada a discussão, na teoria do direito contemporâneo. Diz a autora:

Que o juiz disponha de “poder criativo” no exercício da sua função decisória é, hoje em dia, uma afirmação geralmente reconhecida como verdadeira e refletida em uma quantidade de material escrito sobre interpretação do direito. Trata-se, portanto, de uma premissa que pode ser assumida, sem necessidade de justificativa particular ou discussão, como ponto de partida para outras considerações.

Por ora, quanto ao ponto, isso basta. Adiante, por ocasião das reflexões sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas e, mais especificamente, sobre os limites democráticos de um julgamento padrão (processo modelo), o tema receberá novas reflexões. A premissa de trabalho, pois, é a de que a natureza criativa da jurisdição constitui uma realidade inegável, mas também perigosa.

Sesma (1995, p. 28-29, Apud SOUZA, 2011, p. 75) registra que a teoria declarativa sofreu severas críticas. A principal dessas críticas é bastante conhecida e está muito em evidência: consiste na sua suposta ingenuidade, quando afirma que o juiz somente aplica um direito que sempre existiu. Some-se a isso a acérrima crítica do realismo jurídico norte- americano, ilustrada aqui pela obra de Jerome Frank, autor de larga experiência de vida (foi juiz, advogado, funcionário público de alta patente, conselheiro etc.). Afirmou Frank (1991, p. 25) que é moralmente irresponsável aquele que tem consciência de dado problema e trata de ocultá-lo, porque tal omissão favorece um estado de ânimo condescendente com o problema.

Esse debate está em evidência no direito comparado. Bobbio (1999, p. 41) já dizia que “a subordinação dos juízes à lei tende a garantir um valor muito importante: a segurança do direito, de modo que o cidadão saiba com certeza se o próprio comportamento é ou não conforme a lei”. Mais recentemente, H. L. A. Hart sustentou o papel criativo da jurisdição, reconhecendo expressamente o judge make law, enquanto Dworkin, tecendo severas críticas ao “poder discricionário” reconhecido pelo positivismo jurídico aos juízes, defendeu a ideia

da única resposta correta, mesmo para os hard cases.151. Apesar da conclusão diferenciada, Dworkin também reconhece que o juiz cria direito:

As teorias da decisão judicial tornaram-se mais sofisticadas, mas as mais conhecidas ainda colocam o julgamento à sombra da legislação. Os contornos principais dessa história são familiares. Os juízes devem aplicar o direito criado por outras instituições; não devem criar um novo direito. Isso é o ideal, mas por diversas razões não pode ser plenamente concretizado na prática. As leis e as regras do direito costumeiro (common law) são quase sempre vagas e devem ser interpretadas antes de se poder aplicá-las aos novos casos. Além disso, alguns desses casos colocam problemas tão novos que não podem ser decididos nem mesmo se ampliarmos ou reinterpretarmos as regras existentes. Portanto, os juízes devem às vezes criar um direito novo, seja essa criação dissimulada ou explícita. Ao fazê-lo, porém, devem agir como se fossem delegados do poder legislativo, promulgando as leis que, em sua opinião, os legisladores promulgariam caso se vissem diante do problema. (DWORKIN, 2002, p. 128/129).

Marcelo Alves Dias de Souza (2011, p. 45) lembra que “mesmo na conservadora Inglaterra, na sua mais alta corte de justiça, a House of Lords152, tem sido afirmado o judge

151 Aprofundar nesse debate não é aqui necessário, dada a proposta de trabalho. Ilustrativamente, convém transcrever trecho do pós-escrito de Hart (1994, p. 335/336), no qual, ao introduzir sua resposta às críticas de Dwordin ao “poder discricionário judicial” por ele reconhecido, assim situou a controvérsia: “O conflito directo mais agudo entre a teoria jurídica deste livro e a teoria de Dworkin é suscitado pela minha afirmação de que, em qualquer sistema jurídico, haverá sempre certos casos juridicamente não regulados em que, relativamente a determinado ponto, nenhuma decisão em qualquer dos sentidos é ditada pelo direito e, nessa conformidade, o direito apresenta-se parcialmente indeterminado ou incompleto. Se, em tais casos, o juiz tiver de proferir uma decisão, em vez de, como Bentham chegou a advogar em tempos, se declarar privado de jurisdição, ou remeter os pontos não regulados pelo direito existente para a decisão do órgão legislativo, então deve exercer o seu poder discricionário [discretion, no original] e criar direito para o caso, em vez de aplicar meramente o direito extabelecido preexistente. (...) Essa imagem do direito, como sendo parcialmente indeterminado ou incompleto, e a do juiz, enquanto preeche as lacunas através do exercício de um poder discricionário limitadamente criador de direito, são rejeitadas por Dworkin, com fundamento em que se trata de uma concepção enganadora, não só do direito, como também do raciocínio judicial. Ele pretende, com efeito, que o que é incompleto não é o direito, mas antes a imagem dele aceite pelo positivista, e que a circunstância, de isto assim ser emergirá da sua própria concepção ‘interpretativa’ do direito, enquanto inclui, além do direito estabelecido explícito, identificado por referência às suas fontes sociais, princípios jurídicos implícitos, que são aqueles princípios que melhor se ajustam ao direito explícito ou com ele mantêm coerência, e também conferem a melhor justificação moral dele. Neste ponto de vista interpretativo, o direito nunca é incompleto ou indeterminado, e, por isso, o juiz nunca tem oportunidade de sair do direito e de exercer um poder de criação do direito, para proferir uma decisão”.

152 É importante registrar que o sistema jurisdicional inglês sofreu importantíssima modificação em 2009, ainda não contemplada na maioria da doutrina disponível sobre o tema ora abordado. A House of Lords não tem mais atuação jurisdicional, transferida que foi para a recém criada Suprema Corte do Reino Unido, como decorrência da reforma constitucional de 2005. Sobre o ponto, esclarece Neil Andrews (2011, p. 165/166): “Indubitavelmente, o mais significativo impacto do regime de Direitos Humanos Europeu no direito inglês, foi a criação da Suprema Corte do Reino Unido, que teve como objetivo que se assegurasse a completa separação das funções do Poder, ou seja, o Legislativo e o Judiciário, não podendo mais, com isso, o Lord Chacellor (Ministro da Justiça) agir como membro do Judiciário. (...). Sem dúvida, a extinção da função jurisdicional da House of Lords e a criação da Suprema Corte do Reino Unido foi o maior impacto que teve até hoje a Convenção Europeia de Direito Humanos sobre o sistema inglês. Assim, o Lord Chancellor deixou de exercer sua função de julgar, integrando a parcela da House of Lords que não tinha função legislativa. A Suprema Corte passou a funcionar a partir de 1º de outubro de 2009 e tudo se passou como descrito a seguir. Em 12 de junho de 2003, o Governo Trabalhista, liderado pelo então primeiro Ministro Tony Blair, anunciou o plano de extinguir a tradicional função do Lord Chancellor, de extinguir a parte jurisdicional da House of Lords, e de transferir esta função para um órgão novo: a Suprema Corte. Em 2005, a Reforma Constitucional ocorreu, sendo extinta a parte

make law. Com moderação, é verdade, em razão do argumento frequentemente usado,

conhecido como leave it to Parlament”. E cita trecho do caso R v Clegg (1995), nos seguintes termos:

Eu não sou contrário a que juízes desenvolvam o Direito, ou mesmo criem novo Direito, no caso de eles poderem ver seu caminho claramente, mesmo quando questões de política social estejam envolvidas. Um bom exemplo recente seria a confirmação por esta House de decisão da Court of Appeal (Criminal Division) de que um homem pode ser culpado de estuprar sua esposa (R v R – (rape: marital exemption) [1991] 4 ALL ER 481, [1992] 1 AC 599; affg [1991] 2 ALL ER 257,

[1991] 2 WRL 1.065). Mas, no caso presente, eu não tenho dúvida do que Vossas Excelências devem abster-se de criar Direito. A mudança do que deveria ser, de outro modo, homicídio para homicídio culposo, numa classe particular de casos, parece a mim essencialmente uma questão para decisão do Legislativo, e não para esta House em sua função judicial. Por isso, o ponto de discussão é, na verdade, parte de uma discussão mais ampla: se a prisão perpétua obrigatória por assassinato deve ainda ser mantida. Essa questão mais ampla somente pode ser decidida pelo Parlamento. Eu diria o mesmo para o ponto em discussão neste caso. Dessa maneira, eu responderia à questão de direito como se segue: nos fatos estabelecidos e assumindo que nenhuma outra defesa está disponível, o soldado ou policial será culpado de homicídio doloso, e não de homicídio culposo. Disso resulta que a apelação deve ser improvida.

As considerações acima citadas demonstram que, segundo a teoria constitutiva, a atividade criativa da jurisdição é perfeitamente possível. Aliás, é inegável. O que se discute – e isso ratifica a atualidade da reflexão de Cappelletti – é quais os limites a essa atividade, em que situações ela é desejada ou deve ser evitada e, principalmente, quais os condicionamentos democráticos que deve receber. E isso será adiante analisado com maior vagar.