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A partir deste item, o capítulo volta-se da lente teórica para o objeto da pesquisa, o padrão de reforma do Estado batizado de Nova Gestão Pública (New Public Management). A origem desse modelo está na crise do Estado do Bem-Estar Social (Welfare State) na década de 1970, mas não foi o único caminho trilhado por governos. Desde aquela época, duas vertentes se consolidaram na tentativa de apresentar um perfil de Estado que corresponda aos desafios contemporâneos: se de um lado os adeptos da Nova Gestão Pública buscam reestruturar a máquina estatal para garantir maior eficiência, de outro os defensores de práticas democratizantes acreditam que a ampliação da participação popular na gestão pública tem a capacidade de produzir um Estado mais justo.

Até o início da década de 1970, governos de muitos países tinham um mesmo entendimento a respeito do Estado: ele tinha de garantir o desenvolvimento econômico e o bem-estar social. Iniciado no final da Segunda Guerra Mundial, este ciclo social-democrata permitiu altas taxas de crescimento pelo planeta até ser abalado pela crise econômica mundial decorrente da elevação do preço do petróleo a partir de 1973. O Estado do Bem-Estar Social tinha três pilares: a existência de

excedentes econômicos passíveis de serem alocados para atender demandas sociais, o pensamento keynesiano8, que estruturou sua base teórica, e a

experiência de centralização governamental durante a Segunda Guerra Mundial, que fomentou o crescimento da capacidade administrativa da máquina pública (MATIAS-PEREIRA, 2008). De acordo com Abrucio (1997), aquele modelo de Estado tinha três linhas de ação: econômica, social e administrativa. A primeira era a intervenção estatal na economia, tendo como metas o pleno emprego e o controle de setores estratégicos. A segunda havia batizado o próprio modelo: o Estado do Bem-Estar Social. Este modelo de Estado tinha a função de garantir as necessidades básicas da população, como educação e saúde. A última, por fim, amparava o sistema de funcionamento do aparato estatal, a burocracia do modelo weberiano.

Tratava-se de um Estado intervencionista, desenvolvimentista, centralizador, regulador e pouco eficiente colocado em xeque pela recessão mundial dos anos 1970. Abrucio (1997) aponta quatro fatores que provocaram o abalo no Estado do Bem-Estar Social. O primeiro foi o fim do ciclo de crescimento imposto pela crise econômica e o segundo, a crise fiscal que corroeu as políticas keynesianas: sufocados por déficits, os governos não conseguiam mais honrar seus compromissos em virtude de seu tamanho, nem atender às demandas sociais. Isso gerou o terceiro fator a minar o Estado do Bem-Estar Social: uma crise de governabilidade provocada por uma queda de braço entre grupos de pressão, clientes dos serviços públicos, membros da burocracia e contribuintes. Como quarto fator, aparecem as transformações tecnológicas e a globalização, que provocaram um salto no setor econômico e impuseram novos padrões de produtividade, competição e eficiência, pressionando o modelo burocrático estatal e reduzindo o poder do Estado em dar as cartas na política macroeconômica. Novas tecnologias da informação e da comunicação se tornaram ferramentas indispensáveis para o aumento da produtividade e novos modelos de gestão, como o toyotismo japonês, revolucionam um mercado ocidental ainda atrelado ao fordismo.

8 De acordo com Laurence Harris (1996, p. 408), inspirada no pensamento de John Keynes, é “uma abordagem das questões políticas, sociais e econômicas do capitalismo avançado que torna válido o Estado assumir um papel de liderança na promoção do crescimento e do bem-estar material e na regulação da sociedade civil”.

Castells (1999) aponta uma troca de paradigma econômico, do industrialismo para o informacionalismo, e a desintegração do modelo organizacional de burocracias verticais, típicas das grandes empresas, com foco na produção padronizada em massa e com mercados oligopolistas. O autor argumenta que muitas transformações organizacionais buscavam permitir às empresas a adaptação a um novo ambiente, de contínua incerteza, provocado pela velocidade das mudanças de cunho econômico, mercadológico, institucional e tecnológico. Castells alerta que algumas mudanças tinham como meta redefinir os processos de trabalho e gerar um modelo de produção enxuto.

A crise do Estado do Bem-Estar Social e as transformações tecnológicas e gerenciais na iniciativa privada afetaram as organizações públicas, que passaram a ser alvo de cobranças de flexibilidade, eficiência e resultados. Loureiro (2001) observa que estabilizar a moeda, ajustar receitas e despesas e manter equilíbrio na balança comercial se tornaram tarefas importantes para o ingresso de uma economia no mercado globalizado. Os Estados precisam ter credibilidade e comprovar baixo risco para atrair os capitais que vão impulsionar o desenvolvimento e o avanço do bem-estar social.

O conceito de Estado utilizado neste trabalho é o desenvolvido por Offe (1984). Para o autor, o Estado é o guardião das regras do jogo capitalista e, por isso, defende os interesses comuns de todas as classes participantes do sistema. Para chegar a esta conclusão, ele resgata o conceito de Estado capitalista, o qual é caracterizado pela (1) propriedade privada da produção, (2) pela dependência do Estado em relação à arrecadação de impostos e, por conseqüência, (3) pela acumulação capitalista como referência para o Estado uma vez que depende da acumulação privada para obter receita. Por fim, (4) o Estado capitalista também é marcado pela legitimidade democrática, apesar de o autor alertar que a legitimidade vai estar sempre condicionada aos fatores que permitem a acumulação privada.

Assim, a política do Estado capitalista vai buscar sempre equilibrar essas quatro determinações expostas acima. Segundo Offe (1984), a estratégia mais simples para o Estado alcançar essa harmonia é criando condições para que cada proprietário, de força de trabalho ou de capital, seja incluído nas relações de troca. Com isso, o Estado não precisa intervir no mercado, uma vez que cada proprietário consegue incluir sua propriedade no processo de troca; não sofre escassez de

recursos causada pelo não aproveitamento de propriedades; e não enfrenta barreiras à permanência da acumulação continuada, nem de legitimidade.

O Estado, segue Offe (1984), só se torna problemático quando não ocorre o ingresso das unidades individuais de valor no mercado. A forma-mercadoria é o ponto de equilíbrio do Estado capitalista e da própria acumulação privada, uma vez que as relações de troca só se tornam duráveis a partir da expectativa de produção lucrativa. Em outras palavras, o autor diz que o elo entre as estruturas política e econômica é a forma-mercadoria. A estabilidade de ambas depende da universalização da forma-mercadoria.

Offe (1984), porém, aponta uma barreira: historicamente, a dinâmica do capitalismo tem demonstrado uma tendência a jogar para fora do mercado unidades de valor, que perdem sua forma-mercadoria quando deixam de entrar no sistema. Isso acaba com a tranqüilidade do Estado. O autor lembra de mecanismos internos de correção do mercado, como redução de preço e a mudança da mercadoria a ser vendida. Mesmo assim, alerta ele, os instrumentos não são suficientes em virtude da crescente especialização, que reduz a flexibilidade e a capacidade de adaptação em busca de produção alternativa.

Nestas circunstâncias, o autor refuta o papel passivo do Estado e, no outro extremo, protetor. Argumenta que cada vez mais o Estado irá optar por uma terceira estratégia: criar condições para uma relação de troca eficaz entre os proprietários. Há três formas de garantir esse cenário: ampliar a capacidade profissional, abrir mercados e transformar setores deprimidos. Essa interpretação rompe com a visão marxista tradicional. O Estado deixa de ser um instrumento das classes dominantes usado para assegurar apenas os seus interesses. Ao criar condições para que todos os proprietários de forma-mercadoria participem das relações de troca, o Estado não visa à proteção de uma classe específica, mas sim o interesse geral de todas as classes. O favorecimento de alguns grupos se torna apenas um subproduto da estratégia principal.

A crise do Estado do Bem-Estar Social também colocou em xeque o sistema de organização das burocracias públicas. Diante de um quadro composto por recursos escassos e déficits em expansão, alguns governos compreenderam que a saída era reformular a máquina pública em busca de maior eficiência. Responsável pela manutenção da impessoalidade, da neutralidade e da racionalidade no aparato estatal, o modelo weberiano não respondia mais às necessidades contemporâneas.

De acordo com Abrucio (1997, p. 7), “voltado cada vez mais para si mesmo, o modelo burocrático tradicional vem caminhando para o lado contrário dos anseios dos cidadãos”.

Weber (1982) havia descrito a burocracia como superior a qualquer outra forma histórica de organização. Para demonstrar a eficiência do modelo, o autor listou suas principais características, como a elaboração de regras fixas como forma de prever antecipadamente o funcionamento da organização, a distribuição das tarefas entre os membros da burocracia para que cada um seja responsável por uma parte do processo, graus hierárquicos de controle e fiscalização, ocupação de cargos remunerados e a especialização dos funcionários.

Uma série de autores passou a analisar deficiências inerentes à burocracia. Crozier (1981) apontou a existência de um círculo vicioso dentro das estruturas burocráticas. Para ele, os sistemas burocráticos são rígidos, incapazes de corrigir suas disfunções, imersos em disputas internas e distantes do ideal moderno de flexibilidade. As conclusões do autor tomam como base quatro traços característicos dos sistemas burocráticos. O efeito das regras impessoais é a primeira característica apontada pelo autor. Como cada etapa da carreira de um funcionário é prevista antecipadamente com exatidão, todo o arbítrio do chefe e até mesmo toda a iniciativa individual são proibidos. O segundo traço é a concentração do poder e seu afastamento das unidades de execução como forma de evitar pressões. Com isso, os que decidem não conhecem os problemas que devem destrinchar, e os que conhecem o problema não têm poder para tomar decisões. Como terceira característica, Crozier (1981) indica o isolamento causado pela especialização. Grupos se movem em busca de proteção à ação de outras carreiras ou da organização. Essa força permite ao estrato controlar o que é de seu interesse e ignorar os objetivos gerais da estrutura, o que gera disfunções como a redução de produtividade. Por fim, o autor assinala o desenvolvimento de relações paralelas de poder.

É com base nestes quatro aspectos que Crozier (1981) monta o círculo vicioso no sistema burocrático. Para o autor, não há como a burocracia corrigir suas disfunções internas porque a única saída para os dirigentes é elaborar novas regras impessoais e aumentar a centralização, os mesmos tipos de mecanismos que provocaram as disfunções. Em contrapartida, os grupos não exercem pressão por

mais autonomia, mas para se proteger e melhorar sua posição na disputa interna por espaço.

Num contexto de gastos maiores que as receitas, pouca eficiência e máquina pública inchada, o sistema burocrático passou a ser reformulado na década de 1980. A burocracia era vista no senso comum como um grupo voltado para si próprio e não para a população, e o Estado se voltou à lógica da produtividade existente na iniciativa privada. Abrucio (1997) ressalta que naquele momento havia um contexto intelectual nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha extremamente favorável às mudanças na administração pública, permitindo a ascensão do modelo gerencial. Foi o impulso para o movimento reformista ganhar dimensões mundiais. É o que veremos a seguir.