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Nessa seção, a proposta é uma aproximação entre a teoria das redes de políticas públicas e o modelo da Nova Gestão Pública. Na literatura, são escassos os trabalhos que relacionem os dois temas. Os estudos normalmente comparam as perspectivas da Nova Gestão Pública e da governança, que, de certa forma, inclui as redes de políticas públicas. Mesmo quando não diretamente confrontadas, Nova Gestão Pública e governança são apresentadas como processos opostos e não interligados. Ao falar da Nova Gestão Pública, Ackerman (2004), por exemplo, afirma que ela se caracteriza por manter a sociedade distante das atividades centrais do Estado, característica que se opõe aos objetivos da governança.

No conceito de governança, se integram as tendências de gestão compartilhada e interinstitucional que envolvem o poder público, o campo produtivo e o terceiro setor11 (FREY, 2007). Tratam-se das mesmas características encontradas nas redes de políticas públicas, conforme exposto no início deste capítulo. Ainda que esta pesquisa enfoque as redes como uma teoria para analisar uma reforma de Estado inspirada na Nova Gestão Pública, não deixa de ser conveniente mostrar que, por algumas interpretações, redes de políticas públicas, sob o guarda-chuva da governança, e reforma do Estado se apresentam como perspectivas opostas. Para demonstrar as diferenças entre as duas perspectivas, Peci, Pieranti e Rodrigues (2007) elaboraram o seguinte quadro:

Conceito Nova Gestão Pública Governança

Desenvolvimento de novos

instrumentos para controle e accountability

Ignora ou reduz o papel dos políticos eleitos, recomendando a independência dos

burocratas;

Accountability é uma questão pouco resolvida; o foco está na introdução dos mecanismos de mercado.

Enfatiza a capacidade de liderança dos políticos eleitos, responsáveis pelo desenvolvimento e gestão de redes público-privadas;

Accountability continua uma questão pouco resolvida; o foco está na participação de

stakeholders, especialmente, no cliente-cidadão.

Redução da dicotomia público-privada

A dicotomia é considerada obsoleta, por causa da ineficiência do Estado. Solução proposta: importação de técnicas gerenciais do setor privado.

A dicotomia é considerada obsoleta, por causa da maior participação de outros atores. Solução proposta: o setor público deve assumir um papel de

liderança na mobilização de redes público-privadas.

Ênfase crescente

na competição A competição é estratégia central para o aumento da eficiência da gestão pública e para responder melhor ao cliente.

A competição não é vista como estratégia central; o foco está na mistura de recursos públicos e privados, com maior competição, onde for o caso.

Ênfase no controle dos resultados ao invés do controle dos insumos

Foco nos resultados e crítica ao controle dos insumos.

Mecanismos como contratos de gestão e acordos de resultados são incentivados.

Existe dificuldade em especificar os objetivos e, consequentemente, resultados das políticas públicas. Mecanismos como contratos de gestão ou acordos de resultados são incentivados.

Ênfase no papel articulador do Estado

O Estado deve ser capaz de cortar gastos, ao mesmo tempo em que responde às

expectativas crescentes e diversificadas da clientela.

O Estado deve ser capaz de aumentar as coalizões com outros atores, definindo prioridades e objetivos.

A comunicação entre os diversos atores é estimulada pela ação do Estado.

Desenho das estruturas organizacionais

Estruturas governamentais mínimas. Diferença entre formulação e execução de políticas, a partir da lógica agent-principal.

Estruturas interorganizacionais, acompanhadas por modificações na estrutura de pessoas,

procedimentos, instrumentos de gestão, planejamento e orçamento e transparência.

Quadro 01: Comparação entre Nova Gestão Pública e governança. Fonte: Peci, Pieranti e Rodrigues (2007, p. 3).

Os autores do quadro também se preocupam em exibir os pontos de divergência entre Nova Gestão Pública e governança:

1) Administração versus política. Trata-se de uma dicotomia antiga, explorada em estudos sobre a administração pública. Na essência, significa dizer que há questões de ordem meramente administrativa, que não deveriam sofrer interferência política. Para os autores, a Nova Gestão Pública reforça essa dicotomia, o que se constitui num obstáculo à gestão compartilhada entre Estado e setores da sociedade.

2) Formulação versus execução. A reforma gerencial apartou a formulação da execução de políticas públicas. Esse resultado fragiliza os princípios da governança de coalizão e interdependência entre diversos atores.

3) Cidadão versus cliente. A Nova Gestão Pública reduz o cidadão a um cliente, o que consiste um retrocesso em termos políticos, uma vez que representa a supressão de uma série de sentidos incluídos no conceito de cidadão. Essa confusão associa sociedade ao mercado, gerando uma relação entre Estado e sociedade focada apenas na ideia de prestação de serviços. Os modelos de governança, por outro lado, inclui o cidadão nas redes de políticas públicas.

4) Transparência versus eficiência. Os autores afirmam que Nova Gestão Pública busca a eficiência na gestão pública. O problema, alertam Peci, Pieranti e Rodrigues (2007), é que eficiência é um conceito impreciso, uma vez que serviu de meta para diversos tipos de reforma com receituários diferentes, como enxugamento ou criação de estruturas, centralização ou descentralização. A busca por eficiência deve estar condicionada ao princípio da transparência e à vigência do regime democrático.

O debate sobre a dicotomia entre administração e política também é levantado por Paes de Paula (2003). Para ela, a Nova Gestão Pública não contribui para o aprofundamento da democracia. A autora argumenta que este modelo serve para promover os interesses de carreira de uma elite gerencial e centralizar o poder em cúpulas executivas, o que dificulta uma efetiva participação social. Paes de Paula (2003) ressalta a importância da inserção da dimensão sócio-política na reforma do Estado.

No Brasil, segundo Frey (2007), o debate entre Nova Gestão Pública e redes de políticas púbicas se dá por meio da contraposição entre os modelos gerencial e democrático-participativo, que, além de vertentes teóricas, se materializam em experiências práticas de gestão urbana. O autor, que ressalta o tom ideológico do debate, define as duas abordagens da seguinte forma:

1) O modelo gerencial poderia ser chamado de “social-democracia de cunho neoliberal” por enfatizar a necessidade de enxugamento do Estado e a modernização gerencial da máquina pública. Há uma separação clara entre a esfera política, onde são tomadas as decisões políticas, e a esfera administrativa, caracterizada pela liberdade gerencial. Essa divisão, que protege o gestor público das pressões da sociedade, é essencial para garantir a cobrança de resultados e permitir a accountability.

2) A abordagem democrático-participativa visa a estimular a organização da sociedade civil e promover a reestruturação dos mecanismos de decisão por meio

de maior participação popular na formulação de políticas públicas. Neste modelo, as condições de accountability são geradas por meio do envolvimento da sociedade na produção de políticas. O gestor público precisa ter habilidades para interagir com atores da sociedade.

O autor, porém, propõe um novo olhar, aproximando as duas perspectivas. Frey (2007) argumenta que a literatura tem reconhecido as potencialidades relacionadas à ampliação do número de atores sociais envolvidos na gestão pública. Uma das principais vantagens deste modelo é a possibilidade de mobilização de todo o conhecimento disponível na sociedade em benefício da melhoria do desempenho administrativo e da democratização dos processos decisórios. Para ele, este contexto favoreceu a criação de novas formas de articulação político-administrativa, como as redes de políticas públicas, que resultam em novas tendências de gestão compartilhada e interinstitucional envolvendo o setor público, o produtivo e o terceiro setor. É esse contexto que, para Frey (2007), aproxima os modelos gerencial e democrático-participativo principalmente na gestão de cidades.

Na prática da administração municipal, observa-se, sob a influência das condições reais, muitas vezes restritivas, com as quais os governos locais se defrontam, uma mesclagem das duas abordagens. Governos municipais, tradicionalmente de esquerda e comprometidos com o discurso democrático-participativo, recorrem crescentemente a instrumentos de gestão defendidos pelo novo gerencialismo, ao passo que governos do campo político de tendência neoliberal, advogando a revolução gerencial no setor público, veem-se obrigados a abrir espaços para participação em função da perda de legitimidade política e das crescentes demandas sociais. Mesmo no tocante ao debate teórico no Brasil, a distinção entre as duas abordagens, antagônicas nas origens, parece cada vez mais difícil, na medida em que, de um lado, o discurso da cidadania e da participação pública entrou nas concepções gerenciais e, de outro, estratégias de privatização e parcerias público-privadas são cada vez mais defendidas pelos adeptos do modelo democrático-participativo (FREY, 2007, p. 141).

A conclusão de Frey (2007) se baseia na avaliação de três gestões municipais brasileiras, Porto Alegre, Santos e Curitiba. Como foi dito anteriormente, esta pesquisa investiga se o modelo gerencial é acompanhado das tendências de gestão compartilhada representadas pelas redes de políticas públicas. Para a Nova Gestão Pública, esse tipo de arranjo decisório pode se mostrar um meio de superação da tendência ao isolamento tecnocrático, uma vez que se caracteriza pela participação de atores não estatais na formulação de políticas. Esta

aproximação entre Nova Gestão Pública e governança, apontadas pela literatura como contraditórias entre si, não aparece apenas em gestões municipais como mostra Frey (2007), mas também em administrações em âmbito estadual. Esta constatação será desenvolvida nos próximos capítulos.

3 NOVA GESTÃO PÚBLICA E OSCIPS

O capítulo tem como objetivo apresentar a relação entre as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips) e a Nova Gestão Pública. A intenção é apontar como, no contexto brasileiro, a lei federal que permite a criação das Oscips se tornou uma política alinhada aos pressupostos da Nova Gestão Pública. Esta demonstração será fundamental para o propósito do próximo capítulo deste trabalho, momento em que a criação da Lei das Oscips no Rio Grande do Sul será analisada sob a perspectiva de redes de políticas públicas.

Para alcançar o objetivo proposto neste capítulo, primeiro será resgatada a criação das Oscips. Ponto alto da reformulação do marco legal do terceiro setor brasileiro, a elaboração desta lei ocorreu dentro do contexto da reforma administrativa implantada pelo governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Em seguida, serão exibidas as aproximações desta reforma com o modelo da Nova Gestão Pública e as relações entre Oscips com a Nova Gestão Pública e com as redes de políticas públicas. Por fim, este debate será transferido para a realidade do Rio Grande do Sul. A intenção é mostrar que a reforma do governo Yeda Crusius (2007-2010), como a reforma do presidente Fernando Henrique, também está alinhada à Nova Gestão Pública. Entre outras iniciativas, a reforma do governo Yeda Crusius compreende a elaboração e a aprovação da Lei das Oscips, foco do próximo capítulo.