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A rede formada em torno do projeto de lei das Oscips reuniu mais de 50 atores, incluindo organizações estatais e não estatais. Para facilitar a visualização do cenário, os atores foram agrupados de acordo com suas características institucionais. Na tabela 01, é possível notar que, em termos numéricos, entidades do movimento sindical e agências estatais tiveram preponderância no arranjo decisório. Atores Quantidade Estatais 24 Governo e administração 12 Fiscalização e controle 1 Partidos no parlamento 11 Movimento sindical 18

Think tanks (grupos de estudo) e especialistas 6

Associações econômicas 3

Associações culturais e sociais 5

Total 56

Tabela 01: Número e tipos de atores participantes da rede. Fonte: Elaborada pelo autor.

É importante ressaltar que o grupo de entidades estatais não forma um bloco homogêneo. Na categoria, estão incluídos agências de administração do governo, um órgão fiscalizador com independência em relação ao Executivo e as bancadas partidárias na Assembleia Legislativa. Esses três tipos de atores tiveram papéis e

participações diferentes durante o arranjo, como será mostrado nas próximas páginas. Se a Secretaria da Justiça e do Desenvolvimento Social, com apoio de outros setores do Executivo, foi responsável pela condução do processo, o Ministério Público de Contas (MPC) fez sugestões de mudanças no texto do marco legal e as bancadas, por sua vez, ouviram os atores sociais envolvidos na questão e negociaram a aprovação da proposta. Esse detalhamento é necessário para evitar uma visão estreita sobre o Estado. Segundo Schneider (2005), o Estado não pode ser compreendido como uma hierarquia pública integrada, mas como uma rede de organizações relativamente autônomas.

Também destaca-se o fato de as associações econômicas, em termos de quantidade, apresentarem um número reduzido de atores em relação ao movimento sindical e às agências estatais. Num primeiro olhar, essa constatação parece contrariar a literatura sobre redes de políticas públicas. Estudos apontam o predomínio de atores privados e econômicos neste tipo de arranjo decisório (SCHNEIDER, 2005; JORGANA e SANCHO, 2005; HENDRIKS, 2008). Organizações da sociedade civil, por sua vez, têm pouco espaço e normalmente ocupam posições periféricas.

Desta forma, é preciso deixar claro que a repartição de organizações nas categorias institucionais é apenas uma comparação numérica desprovida de qualquer aprofundamento sobre a participação dos atores na rede. Ou seja, maior quantidade não necessariamente significa maior envolvimento, acesso ao processo decisório e capacidade de persuasão. As associações econômicas, apesar de somarem apenas três entidades, tiveram um alto grau de ascendência, como será visto nas próximas páginas.

Nem todas as organizações listadas na tabela 01 tiveram o mesmo nível de inclusão e relevância no arranjo. Listadas no Anexo A, todas foram identificadas a partir de citação nas entrevistas e em documentos e constam no trabalho como forma de demonstrar a amplitude do processo. Quinze delas, por exemplo, só foram somadas à lista por terem sido registradas nas atas de presença das duas audiências públicas sobre o tema, realizadas pela Assembleia Legislativa nos dias 8 e 19 de novembro de 2007. Ou seja, não foram lembradas pelos entrevistados, nem apareceram em outros documentos.

Por isso, serão destacados nesta dissertação os atores cujo envolvimento contribuiu de forma a interferir na condução do processo. A seleção deste grupo

partiu de avaliações feitas pelos próprios entrevistados sobre as organizações consideradas por eles minimante relevantes. Levou-se em conta o peso que cada entrevistado deu a outros participantes do arranjo decisório, constituindo-se numa espécie de percepção de poder. Cruzando as entrevistas e usando mais dois critérios de avaliação, que serão detalhados no item 4.4, foi possível chegar a um quadro dos atores mais influentes, muitos nem reconhecidos assim pelo representante do governo estadual, Fernando Schüler.

O fato de o secretário da Justiça desconhecer atores envolvidos no processo é um componente importante na caracterização do tipo de rede formada em torno do marco legal das Oscips. Esse elemento demonstra que o governo não tinha consciência, ao menos completa, do arranjo decisório constituído ao redor do tema. Por consequência, num primeiro momento, trata-se de uma indicação de que a rede não poderia se enquadrar num modelo de governança instituído como uma política de governo. Em outras palavras, não teria ocorrido um movimento deliberado do Executivo em mobilizar recursos de atores não estatais na hora de aprovar o projeto.

Outros elementos coletados durante a pesquisa, entretanto, apontam para o lado contrário. Dois representantes de atores econômicos entrevistados pelo pesquisador, o presidente da Federação das Associações Comerciais e de Serviços (Federasul), José Cairoli, e o presidente da Federação do Comércio de Bens e de Serviços do Estado (Fecomércio), Flávio Sabbadini, afirmaram terem sido chamados pelo governo estadual para participar das discussões. Schüler, por sua vez, confirmou ter convidado as entidades empresariais a defender o projeto. De acordo com o secretário, as organizações do setor econômico são favoráveis à modernização do Estado “porque têm interesse em reduzir a carga tributária”. Fecomércio e Federasul defendiam a instituição de Oscips no Estado no mínimo desde 2004. Em 2006, ajudaram a criar a Agenda 2020, movimento que assumiu a proposta das Oscips como bandeira e será melhor detalhado mais adiante.

Entrevistados lembraram que Schüler contava também como recursos pouco tangíveis, como a credibilidade de outros atores. Nas tentativas de convencer os interlocutores da importância do marco legal, estrategicamente o secretário se valia do prestígio de dona Eva Sopher, reconhecida pela sociedade gaúcha como responsável pela recuperação e manutenção do Theatro São Pedro, um prédio histórico inaugurado em 1858. Presidente da Fundação Theatro São Pedro desde

1975, Eva se posicionou a favor das Oscips, segundo o entrevistado Alexandre Leboutte, representante dos funcionários no conselho deliberativo da Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura). “Schüler estava sempre com dona Eva” (LEBOUTTE).

O próprio secretário reconheceu a importância da presidente da Fundação Theatro São Pedro no debate. “A liderança cultural que mais nos apoiou foi dona Eva” (SCHÜLER). De acordo com o secretário, dona Eva via nas Oscips uma possibilidade de continuidade na prestação de serviços públicos livre de oscilações e interesses políticos. Procurada pelo pesquisador, a presidente da Fundação Theatro São Pedro preferiu não conceder entrevista sobre o tema e indicou José Moraes, dirigente da Associação Amigos do Theatro São Pedro (AATSP), como seu representante. Segundo Moraes, a AATSP não tomou uma posição em relação ao projeto do governo por considerar que a proposta não traria vantagens para a entidade, que dá apoio à administração do teatro. Moraes disse que os associados não queriam subordinar a entidade ao novo marco legal.

Apesar da contrariedade exposta por Moraes, os elementos destacados acima, desde o convite às federações empresariais, mostram que o governo de fato se utilizou de recursos oferecidos por atores não estatais para garantir a aprovação da proposta. Isso ficará mais evidente nas próximas páginas, mas o que importa aqui é demonstrar a ação deliberada do Executivo, durante a condução política do processo, de buscar recursos capazes de contribuir na tomada de decisão. Ainda que não se possa falar em um modelo de governança instituído como uma política de governo, há evidências de que o Estado buscou informalmente cooperação fora de seus limites, como aborda a escola da governança, citada no segundo capítulo deste trabalho.

Por outro lado, uma imobilidade do governo em direção a atores não estatais não significa automaticamente a inexistência de uma rede. Essa pesquisa aponta para a noção de que um arranjo decisório tem autonomia em relação à vontade do Estado. Isso porque atores não estatais formam cadeias de participação sem necessariamente entrar em contato direto com o Executivo. Esse cenário aparece, por exemplo, quando o foco está sobre o grupo do movimento sindical. Questionado sobre o envolvimento de sindicatos no debate sobre Oscips, Schüler soube mencionar três entidades: Sindicato dos Artistas e Técnicos de Espetáculos de Diversões (Sated), Sindicato dos Empregados em Empresas de

Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais (Semapi) e a representação dos funcionários no conselho deliberativo da Fundação Cultural Piratini, que reúne as emissoras TVE e FM Cultura. No entanto, a pesquisa demonstrou a existência um número de sindicatos seis vezes maior.

Trata-se de um cenário que aponta para os fundamentos oferecidos pela escola de intermediação de interesses, também detalhada no segundo capítulo. Essa corrente enxerga as redes como uma ferramenta analítica para examinar relações entre o Estado e organizações da sociedade civil. Pela interpretação oferecida por Santos (2002), seria possível afirmar tratar-se de uma rede neopluralista, que prevê acesso aberto ao processo político e à arena de formulação de políticas, com competição entre atores e independência deles em relação à vontade do Estado.