• Nenhum resultado encontrado

Um resgate da Lei das Oscips precisa remontar à constituição do Programa Comunidade Solidária. Trata-se de um órgão criado pela antropóloga e então primeira-dama Ruth Cardoso (falecida em 2008), após a posse do presidente

Fernando Henrique Cardoso em 1995, com o objetivo de dialogar com a sociedade em busca de soluções para a exclusão e para a pobreza. Peres (2005, p. 124) afirma que o Programa Comunidade Solidária tinha com objetivo “suprir a incapacidade financeira do Estado em atender às demandas sociais ao mesmo tempo em que superaria as práticas políticas assistencialistas e clientelistas reinantes no país”. O programa era composto por dois pilares: o conselho e a secretaria-executiva da Comunidade Solidária. Neste trabalho, o enfoque está voltado ao conselho, ligado à Casa Civil e formado por 10 ministros e 21 membros da sociedade.

Entre os objetivos do conselho estava o fortalecimento da sociedade civil (CARDOSO, FRANCO e DARCY, 2000). A busca deste propósito se deu principalmente pela reforma do marco legal do terceiro setor brasileiro. A expressão é normalmente usada para designar o conjunto de entidades da sociedade civil, de natureza privada, mas de fins públicos, e sem meta de lucro, mas causa controvérsia nas Ciências Sociais. Muitos autores afirmam não ser possível definir claramente o conceito. Ao recuperar a origem do termo, Lechat (2002) explica que surgiu do conceito francês Économie Sociale, que já teve diversas interpretações em mais de um século. A autora diz que, na literatura, o conceito de terceiro setor se mistura aos de economia solidária e de economia social. Conforme Lechat (2002, p. 127), terceiro setor “pode ser apresentado como constituído de três grandes componentes, as cooperativas, as organizações mutualistas e as organizações sem fins lucrativos (essencialmente associações)”.

Já Teodósio (2002) ressalta as críticas que vinculam a concepção de um terceiro setor à lógica neoliberal. Por trás do conceito, explica o autor, estaria a ideia de que os problemas sociais e econômicos devem ser solucionados a partir da lógica do mercado. Ele lembra que o conceito está associado a novas posturas empresariais, tais como responsabilidade social, cidadania empresarial e filantropia empresarial. Na avaliação de Teodósio (2002), ainda não é possível verificar o impacto dos projetos sociais de empresas sobre o avanço da cidadania e da justiça social, mas aponta sinais de risco: junto ao conceito de terceiro setor são difundidos os pressupostos do gerencialismo privado, como o pragmatismo, o cálculo constante entre meios e fins, a disciplina financeira e o foco da eficiência. Para o autor, esses elementos podem ter um efeito sobre as organizações civis:

A indagação que permanece diz respeito aos os impactos da difusão dessa racionalidade gerencial sobre o terceiro setor, que pode levar as organizações sociais a se concentrarem exacerbadamente na participação restrita e no alcance de metas de curto-prazo, perdendo sua ligação com as transformações sociais mais amplas (TEODÓSIO, 2002, p. 103).

Sobottka (2002), por sua vez, afirma não ser possível encontrar uma definição consistente para terceiro setor com base na teoria social. O autor ressalta que o uso do termo tem sido impulsionado por segmentos que gravitam na periferia do empresariado e do poder político e questiona suas reais intenções. Para Sobottka (2002, p. 88), são segmentos adeptos de um “liberalismo seletivamente regulado” que estão destruindo “todos os diques com os quais na esfera pública se poderia resistir à colonização do mundo da vida pelos imperativos sistêmicos e todas as bases sociais sobre as quais se buscou erigir [...] formas novas de sociabilidade, estruturadas a partir da solidariedade”. O autor questiona:

Não será o terceiro setor um filho da relação de amor e ódio que no mundo globalizado é estabelecida entre os gestores da administração pública e as mãos visíveis, muito longas e mal disfarçadas dos ideólogos liberais e conservadores, em aliança com especuladores apátridas, em detrimento dos cidadãos concretos e daquelas múltiplas esferas da sociedade que não se confinam nos ditos setores? (SOBOTTKA, 2002, p. 88).

Diante da controvérsia em torno da concepção de um terceiro setor, destaca- se o conceito de sociedade civil, com maior aceitação na literatura. Este trabalho adota a definição de sociedade civil elaborada por Cohen e Arato (1992). De acordo com os autores, a sociedade civil é uma esfera diferente e independente da economia e do Estado. Eles propõem uma definição de sociedade civil:

[...] como uma esfera da interação social entre economia e o estado, composta acima de tudo das esferas íntimas (especialmente a família), a esfera de associações (especialmente associações voluntárias), movimentos sociais, e formas de comunicação pública (COHEN e ARATO, 1992, p. IX).

A sociedade civil, conforme Ferrarezi e Rezende (2002), esteve presente na elaboração da Lei n. 9.790 de 23 de março de 1999, conhecida como Lei das Oscips. Os autores afirmam que a legislação foi resultado do trabalho de dezenas entidades da sociedade civil, em parceria com o governo federal e com o Congresso, com articulação do conselho da Comunidade Solidária. Segundo histórico elaborado por Ferrarezi e Rezende (2002), o conselho inaugurou em junho

de 1997 um processo de interlocução política com organizações da sociedade civil para identificar as principais dificuldades enfrentadas por elas e reunir sugestões de inovação para a legislação relativa ao setor. Esta rodada de discussões resultou na elaboração de um projeto de lei encaminhado ao Congresso em julho de 1998. Após negociações e debates com os partidos, um substitutivo da proposta foi aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, sendo sancionada em março de 1999 pela Presidência da República.

A Lei n. 9.790 criou uma qualificação para as pessoas jurídicas de direito privado e sem fins lucrativos, reconhecimento institucional que recebeu o título de Oscip. Franco (2002) argumenta que o objetivo do novo sistema classificatório foi o de possibilitar a distinção entre organizações privadas sem fins lucrativos com fins privados e organizações privadas sem fins lucrativos com fins públicos, uma vez que o Estado não poderia se relacionar da mesma maneira com esses dois tipos de instituições. Conforme Franco (2002, p. 17), “uma entidade ambientalista, que luta pelo desenvolvimento sustentável de uma região de Mata Atlântica, não é a mesma coisa que uma associação de jogadores de bridge de São Bernardo do Campo”.

Por ter seu caráter público reconhecido, uma Oscip tem acesso mais fácil e menos burocrático a recursos públicos para a realização de projetos. Isto é feito por meio do termo de parceria, um instrumento jurídico previsto na Lei n. 9.790 para dar sustentação à cooperação entre o Estado e a Oscip. De acordo com Ferrarezi e Rezende (2002), o termo de parceria oferece maior agilidade gerencial aos projetos e permite a escolha do parceiro mais adequado do ponto se vista técnico e mais desejável dos pontos de vista social e econômico, além de favorecer a publicidade e a transparência. Ferrarezi e Rezende (2002) afirmam que o novo marco legal permitiu novas áreas de atuação social, redução dos custos operacionais, maior rapidez no reconhecimento institucional das entidades, ampliação das possibilidades de parceria com o governo federal com base em critérios de eficácia e eficiência, além de mecanismos mais adequados de responsabilização.

Em relação às novas áreas de atuação social, a nova legislação passou a exigir das entidades interessadas na qualificação como Oscip, objetivos sociais nos campos da assistência social, promoção da cultura, educação, saúde, segurança alimentar, defesa do meio ambiente, incentivo ao voluntariado, promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza, teste de novos modelos sócio-produtivos, promoção de direitos e assessoria jurídica, promoção da ética, da

paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais e estudos e pesquisas de tecnologias alternativas.

Outro avanço provocado pela Lei das Oscips, segundo Ferrarezi e Rezende (2002), é a redução da burocracia para o acesso a incentivos fiscais e para a realização de convênios com o governo. Para um crítico do modelo, isso pode significar redução de controle e abertura de brechas para irregularidades. Ferrarezi e Rezende (2002), porém, ressaltam o controle pelos resultados. Para as autoras, o modelo antigo não obtinha controle superior:

Ao longo das décadas, tais barreiras vem se mostrando ineficientes, por não garantirem a formação de uma base de informações segura para o estabelecimento de parcerias entre entidades sem fins lucrativos e governos, nem oferecem condições para a avaliação dos resultados e o controle social (FERRAREZI e REZENDE, 2002, p. 28).