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Intelectual ligado ao PSDB, o secretário estadual da Justiça e do Desenvolvimento Social, Fernando Schüler, recebe o pesquisador em sua sala no início da noite de 15 de setembro de 2009 com um ar cansado. Ele comenta que é difícil tentar ser um executivo na máquina pública. O gabinete fica no oitavo andar do Centro Administrativo do Estado, em Porto Alegre, um dos símbolos do governo gaúcho e prédio que já foi apelidado de “Monstrengo” por um presidente do Tribunal de Justiça do Estado por conta da ineficiência e do número de pessoas “se coçando sem fazer nada” (ZERO HORA, 2005, p. 12).

De perfil gerencialista, Schüler diz lutar contra a ineficiência no serviço público. Ele foi o principal articulador do governo do Estado durante a tramitação do projeto de lei das Oscips na Assembleia Legislativa, entre outubro e dezembro de 2007. O secretário relata que sua estratégia era manter as discussões sobre o tema “exclusivamente do ponto de vista técnico”. “Conduzimos esse processo de forma a despolitizar o debate” (SCHÜLER). A suposta dicotomia entre política e técnica aparece em diferentes trechos da entrevista. Para o secretário da Justiça, a reforma do Estado inspirada na Nova Gestão Pública é uma iniciativa de caráter meramente técnico. Ele rejeita a expressão “tecnocrática” para se referir a esse tipo de processo, argumentando ser “depreciativa”.

Acho ótimo que a reforma do Estado seja vista como uma reforma técnica, pois é um problema apenas de otimização e maximização de recursos públicos. Não há nenhum viés político e ideológico. Isso é conversa para boi dormir. Quando começam a inventar ideologia numa discussão de gestão pública, alguém está querendo enrolar alguém (SCHÜLER).

Schüler procura sustentar seu ponto de vista com base num resgate histórico. Segundo ele, os Estados foram obrigados a iniciar processos de reforma a partir da década de 1980 por conta dos avanços tecnológicos empreendidos no setor privado. A globalização, por sua leitura, exigiu das companhias e dos Estados redução de seus custos e mais eficiência para enfrentar a competição num nível mundial.

Neste contexto, o Brasil, para o secretário da Justiça, teve uma espécie de “azar histórico”. Isso porque, na mesma época em que o resto do mundo discutia

“reforma do Estado, modernização, privatização, liberalização, abertura de fronteiras, redução de carga tributária, toda a agenda chamada de liberal”, o Brasil vivia a transição do regime militar para o democrático. Com isso, acredita ele, o debate no país se tornou uma contenda ideológica e as práticas que visavam a “dinamizar a economia brasileira, gerar mercado internacional, diminuir o custo dos programas sociais para os mais pobres e gerar eficiência no serviço público ficaram associadas a uma visão conservadora, de direita”.

Houve uma transmutação ideológica e discursiva, muito na esfera de simbologia pública, do debate público, onde as posições ideológicas ou políticas associadas historicamente ao regime militar, como sendo de direita e conservadoras, foram associadas às novas ideias liberais. E foram transmutadas a partir da ideia de neoliberalismo, neoconservadorismo, isso muito em função do thatcherismo, do governo Reagan e do regime do general Augusto Pinochet no Chile que de alguma maneira criaram essa marca (SCHÜLER).

O secretário da Justiça parece desconhecer que a Nova Gestão Pública de fato teve entre seus impulsionadores os governos de Margaret Thatcher (1979- 1990), no Reino Unido, e de Ronald Reagan (1981-1989) nos Estados Unidos, conforme a literatura. De qualquer forma, com base no seu diagnóstico, Schüler tinha a compreensão de que, para garantir a aprovação do projeto de lei das Oscips, teria de reduzir a carga ideológica sobre a proposta, apartá-la do conjunto de pressupostos que ficaram associados ao neoliberalismo. “Desde o início, eu tinha consciência de que, se o projeto fosse discutido no plano ideológico, no marco esquerda versus direita, perderíamos o debate” (SCHÜLER). Isso por conta da extrema polarização que marca a política no Rio Grande do Sul. “Nós (a população do Estado) ainda entendemos a política como guerra, como determinação de posições, com exclusão do outro, como um jogo de soma zero, onde ele ganha, eu perco” (SCHÜLER).

Como alternativa para driblar esse contexto político, o secretário da Justiça optou por fazer um jogo de palavras, em que, no seu discurso, expressões associadas ao neoliberalismo eram substituídas por termos ainda sem um carimbo ideológico tão forte. Segundo ele, a linguagem da “cultura gerencialista” tomou o lugar da linguagem ideológica.

Um dos grandes obstáculos que eu enfrentei foi não usar os conceitos que o debate político tradicional estava preparado para ouvir. Não falar em

privatização, em terceirização, alienação de patrimônio, esse tipo de coisa. Nós falávamos em contratualização, em processo de parceria público- privada na área social. Não falar em nenhuma área específica, mas falar em serviços públicos não exclusivos de Estado. São conceitos novos (SCHÜLER).

A estratégia exposta pelo secretário da Justiça demonstra uma nítida intenção de reduzir a capacidade de reação dos opositores e de conduzir o diálogo. Da mesma maneira, há uma tentativa de desassociar a proposta de seu marco inicial, as reformas feitas por governos considerados neoliberais. Em sua defesa, Schüler destaca que os adversários do projeto poderiam ser agrupados em dois blocos. No primeiro, estariam os integrantes do sistema político tradicional, no qual cargos na máquina pública são usados como moeda de troca, e, no segundo, as entidades sindicais, interessadas no aumento do número de servidores para ampliar seu foco de poder.

O que significa a Lei das Oscips? Significa que o Estado perde o poder de gerenciamento direto de repartições públicas. Perde cargos de livre nomeação, perde poder de gerenciar aquelas pessoas, perde o poder de agir diretamente naquela comunidade. Não perde o controle sobre o serviço. Pelo contrário, ganha mais controle sobre ele. Mas perde o controle da máquina, o poder político. [...] Para os sindicatos, cada abrigo, cada hospital, cada repartição pública contratualizada (com uma Oscip) é menos um aparelho sob o controle. Por que os sindicatos querem mais servidores, mais concursos públicos, mais gente contribuindo? Isso tem um viés ideológico (SCHÜLER).

Um outro elemento da tática do governo foi manter o secretário da Justiça como figura de frente no debate, evitando o envolvimento direto da governadora no tema. A intenção era impedir que a controvérsia tomasse contornos de um conflito aberto entre oposição e situação. “Em todas as minhas entrevistas, eu disse que não era um problema de governo e oposição, mas uma política de Estado, um projeto para 30 anos, de longo prazo” (SCHÜLER).

Constata-se facilmente nos trechos da entrevista de Schüler destacados até aqui que o secretário da Justiça reproduz argumentos comuns entre os defensores da Nova Gestão Pública. Esse discurso defende a existência de uma suposta neutralidade nos processos de reforma do Estado, uma espécie de frieza técnica alheia a qualquer interesse político. A crítica a essa visão, já destacada no terceiro capítulo, alerta que a política não está subordinada à economia. Isso vai ficar mais claro nas próximas páginas deste trabalho, nas quais o elogio da técnica é colocado

em xeque diante de uma evidência constatada por meio da própria entrevista de Schüler e das outras realizadas: o governo, para aprovar o projeto de lei, foi obrigado a negociar com outros atores sociais.