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2 O DESENVOLVIMENTO E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO

2.1 O SURGIMENTO DO DIREITO CRIMINAL E O INÍCIO DO PROCESSO

2.1.2 A origem e a evolução do direito processual penal no Brasil

A Magna Carta Inglesa de 1215, a Declaração de Direitos de 1689 (Bill of Rights), a Declaração de Direitos do bom povo da Virgínia de 1776, e a Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos Estado Unidos de 1791, contribuíram decisivamente para que se fizesse presente nas constituições modernas um rol de direitos e garantias

71 Relembra Walter Nunes que, “Antes da processualização do exercício do dever-poder de punir do Estado, a persecução criminal era um mero ritual, no qual o acusado tinha uma participação submissa, sem que lhe fosse reconhecido o mais simples dos direitos, que era o de defender-se”.

SILVA JÚNIOR. Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal: Teoria Constitucional do Processo Penal. 2ª. ed. Natal: OWL, 2015, p. 483.

72 Segundo o autor, “O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal: é uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune (...)”.

Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 40. ed. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 36.

73 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 38.

fundamentais a serem tutelados pelo Estado. Do mesmo modo, o livro de Beccaria, “Dos Delitos e das Penas”, contribuiu para o desenho do modelo libertário de processo de bases humanitárias.

A primeira Constituição brasileira foi a de 182474, outorgada em 25 de março de

1824, por Dom Pedro I, no Brasil Império, ela seguia o modelo democrático-liberal francês, aproximava-se da influência dos ideais propagados pela Revolução Francesa e pela Revolução dos Estados Unidos da América. Dessa forma, assumia compromissos com os direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros75. Com forte aproximação ao

modelo libertário em expansão na Europa, a Constituição de 1824 contemplava preceitos e princípios de bases humanitárias que se opunham às Ordenações Filipinas, demonstrando o rompimento com o modelo absolutista e a formação de um Estado de Direito.

Nesse sentido, as principais características do Estado de Direito em que vige o modelo libertário de processo são: o fiel cumprimento e vinculação do Estado ao princípio da legalidade; a racionalidade e humanidade das penas e do processo; a previsibilidade das soluções jurídico-penais; a seleção racional dos bens jurídicos tutelados pelo Estado; e a delimitação precisa da esfera de atuação do poder público76.

Para Raúl Zaffaroni, o Estado de Direito é aquele no qual todos estão submetidos à lei e a ela se limita às ações do Estado, nele o direito penal libertário costuma se opor ao direito penal autoritário77. Por essa razão, é possível afirmar que o

modelo libertário de processo é o adotado pelos Estados de Direito (Democrático Constitucional).

Nesse prisma, o artigo 39, da Constituição de 1824, afirmava princípios e regras de cunho libertário como a condicionante ao fim de utilidade pública para as leis estabelecidas e o princípio da irretroatividade da lei, a despeito da garantia de um direito humano de liberdade. Além disso, também foram contemplados o princípio da

74 BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil. (1824). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm . Acesso em: 15 mar. 20.

75 SILVA JÚNIOR. Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal: Teoria Constitucional do Processo Penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015, p. 109.

76 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. vol. 1. parte geral. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais 2011, p. 292.

77 Destaca também o autor que “nenhum direito penal positivo realiza plenamente os Direitos Humanos, mas o direito penal liberal (em sentido técnico) tende a isso; o direito penal autoritário não se inclina para esse objetivo”.

isonomia, a abolição da tortura e castigos físicos e o princípio da pessoalidade ou intranscendência da pena78.

Sob a vigência da Constituição Imperial, foi outorgado o primeiro Código Criminal brasileiro79, Lei nº 261, de 29 de novembro de 1832. Por consequência, o

referido Diploma legal também foi influenciado pelos ideais humanitários de liberdade e igualdade, os quais se espalharam da Europa para o globo80. Mas, apesar de possuir

caráter libertário e expressar preceitos e princípios oriundos do modelo processual penal libertário beccariano, era considerado autoritário, pois ainda havia previsão de castigos corporais para escravos e pena de morte.

De fato, o Código Criminal do Imperial apresentou um discurso retributivo, influenciado pelo pensamento contratualista de seu tempo. No entanto, o seu caráter libertário foi sendo gradualmente neutralizado, a partir do surgimento de novas leis que se aproximavam de uma ideologia escravocrata e repressora, a exemplo da Lei que tratava do julgamento dos escravos que atentassem contra a vida e segurança de seus senhores e/ou suas famílias, de 10 de junho de 183581.

Na verdade, a legislação processual penal do século XIX iniciar-se tendo como inspiração o paradigma o modelo processual libertário, com forte influência do despotismo ilustrado e, posteriormente, sofreu severas críticas do positivismo jurídico do final do século82.

Durante o período Republicano, sob a vigência da Constituição de 1891 e sob a influência da Constituição dos Estados Unidos, a competência para legislar sobre matéria processual penal passou a ser dos Estados e somente com a Constituição de 1934, a unidade processual foi restaurada. Essa situação foi considerada prejudicial na evolução do processo criminal brasileiro, considerando que somente alguns Estados editaram Códigos de Processo Penal83. Na maior parte do Brasil, a matéria processual

penal continuou sendo regulada pelo antigo Código de 1832 e por algumas leis esparsas editadas pelos Estados.

78 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. vol. 1. parte geral. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais 2011, p. 194.

79 BRASIL. Código do Processo Criminal. (1832). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-29-11-1832.htm. Acesso em: 15 mar. 20.

80 SILVA JÚNIOR. Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal: Teoria Constitucional do Processo Penal. 2ª. ed. Natal: OWL, 2015, p. 110.

81 ZAFFARONI; PIERANGELI, op. cit., p. 196. 82 Ibid., p. 198.

O segundo Código de Processo Penal (CPP) e atualmente vigente, o Código de 194184, Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, foi outorgado sob a vigência da

Constituição de 1937 e da ditadura varguista, no período do Estado Novo, momento em que o Congresso Nacional se encontrava fechado85. Nesse prisma, fruto de um Golpe

de Estado, a Constituição de 1937 é a expressão de um Estado autoritário em defesa de interesses próprios e de combate aos opositores do regime em busca pela manutenção da ordem vigente.

O CPP de 1941 foi outorgado sob um contexto de um governo ditatorial, no qual se atribuía ao Estado a função de proteger a sociedade de “ameaças”, inclusive daquilo que representava perigo à manutenção da ordem e do modelo vigente.

Conforme destaca Raúl Zaffaroni, nesse período, não houve tempo para elaborar teorias científicas e os argumentos que justificavam as respostas penais repressivas eram abertos de possuíam um teor mais político do que científico86. No entanto, a principal

característica dos governos repressivos desse período era o ataque ao direito criminal garantidor, uma tentativa de desmonte do modelo processual penal libertário de inspiração beccariana e de bases humanitárias.

O fascismo atribuiu ao direito criminal a finalidade de proteger os governos autoritários. Às custas disso, o Estado previa penas gravíssimas para os delitos de ordem política, na verdade, com o intuito de proteger o partido político oficial, por meio da ampla utilização de um discurso de prevenção geral por intimidação. Já em relação ao objetivo econômico do Estado, o direito criminal de inspiração fascista foi um instrumento utilizado pelo Estado totalitário para buscar a aceleração do crescimento econômico e a superação da condição de subdesenvolvimento87.

Assim, o CPP de 1941, outorgado sob a vigência da Constituição de 1937, é considerado autoritário e possui inspiração no CPP Rocco, de 193088, da Itália fascista.

Próprio para um modelo de Estado antidemocrático e marcado pela ideologia da defesa

84 BRASIL. Código de Processo Penal. (1941). Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 15 mar. 20.

85 SILVA JÚNIOR. Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal: Teoria Constitucional do Processo Penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015, p. 117.

86 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. vol. 1. parte geral. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais 2011, p. 291.

87 Ibid., p. 294.

88 ITÁLIA. Código de Processo Penal. (1930). Disponível em:

social89 da Escola Positiva90, o CPP de 1941 foi criado sob a égide do tecnicismo

jurídico91, para ser um instrumento repressivo de força à disposição do Estado92.

Tendo convivido normalmente da era Vargas até o governo dos militares, o CPP de 1941 carecia de reformas e nova dicção normativa, com a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988. Nesse sentido, segundo movimento constitucionalista ou neconstitucionalismo, propagado após a Segunda Guerra Mundial, retomou e expandiu a humanização do direito criminal e a ideia de processo criminal como um instrumento para assegurar garantias. Para o novo modelo, que será comentado no tópico 2.3, os direitos fundamentais ocupam o centro do sistema jurídico e o processo criminal exerce função protetiva dos direitos e garantias do cidadão frente à atuação punitiva do Estado.

2.2 A DISTINÇÃO ONTOLÓGICA ENTRE O PROCESSO CIVIL E O PROCESSO