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2 O DESENVOLVIMENTO E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO

2.2 A DISTINÇÃO ONTOLÓGICA ENTRE O PROCESSO CIVIL E O PROCESSO

2.2.1 Direito de acesso à justiça x direito de defesa

Na seara cível, a responsabilidade civil pode ser ajustada independentemente de um processo. Já o direito criminal somente se realiza nos autos de uma ação, considerando que, na esfera penal, é nula a aplicação de uma pena sem o devido processo legal. Nesse sentido, James Goldschmidt101 assinala que, quando o direito

criminal sanciona um direito subjetivo, isso se exercita, exclusivamente, no processo. Em razão disso, ele se opõe ao direito privado, que possui, dentre outras funções, a de regular a conduta dos indivíduos fora do processo. Assim, a fim de que seja aplicada a

101 Embora James Goldschmidt cometa o mesmo erro de muitos juristas de sua época, o de explicar o processo criminal partindo-se da perspectiva do processo civil, ele o faz sob uma ótica crítica, porém ainda sem romper com a processualística civil.

GOLDSCHMIDT, James Paul. Princípios Gerais do Processo Penal: conferências proferidas na Universidade de Madrid nos meses de dezembro de 1934 e de janeiro, fevereiro e março de 1935. Trad. Hilton Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2002, p. 54.

legislação penal, deve-se permear um direito público material, substituindo o direito privado por uma exigência de proteção jurídica.

Desse modo, o acusado não pode simplesmente confessar o crime e decidir cumprir a pena, pois, em razão do princípio da necessidade, isso é inviável. A existência de um processo é obrigatória, ainda que haja colaboração e plea bargaining (negociação), isso terá que ocorrer sob o crivo do Poder Judiciário e dentro de um processo, para que o acusado tenha assegurados os seus direitos e garantias fundamentais.

Em outras palavras, no ambiente cível, é possível solucionar o conflito sem um processo, ao passo que o devido processo legal, no ambiente criminal, determina que não há responsabilidade penal sem atuação jurisdicional. Ainda, nos sistemas que permitem a justiça negocial, isso se dá dentro de um processo e por meio da prolação de uma sentença homologatória do acordo firmado.

A importância da fixação desses pontos se dá em razão de a colaboração e a negociação constituírem importantes ferramentas no auxílio à concretização da razoável duração do processo, além de também serem uma garantia do acusado, conforme será visto mais à frente, no tópico 4.3.2. Por isso, é imprescindível fixar noções introdutórias e basilares desses institutos, a fim de que se aponte, desde logo, a base de que leitura e arcabouço teórico eles serão apresentados, que no caso é a Teoria Constitucional do Processo Penal.

Além disso, também é importante frisar que, no processo criminal, o direito à ampla defesa abrange a autodefesa, a defesa técnica, a defesa efetiva e eficiente, o que compreende, até mesmo, a possibilidade de utilização de todos os meios de provas passíveis de demonstrar a inocência do acusado, inclusive, as obtidas por meios ilícitos. Nesse esteio, afirma Walter Nunes que a ampla defesa na seara cível é formal, ao passo que no processo criminal ela é substancial, não sendo uma mera faculdade ou possibilidade, ela tem de ser efetiva102.

Para o autor, a despeito da afirmação peremptória da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, no ordenamento jurídico brasileiro, isso é admissível quando a prova servir para inocentar o acusado nos autos de um processo criminal103.

Portanto, na seara criminal, a ampla defesa significa colocar à disposição do acusado

102 SILVA JÚNIOR. Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal: Teoria Constitucional do Processo Penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015, p. 488-490.

todos os meios de defesa possíveis, inclusive as provas obtidas por meios ilícitos. Isso porque, conforme relembra Samantha Carvalho, a ampla defesa no âmbito criminal possui uma maior valoração, dada a importância de não se levar um inocente ao cárcere104.

Diferentemente do processo civil, no processo criminal, não se está preocupado com o direito de ação, mas com o direito à ampla defesa, por isso, ela tem de ser substancial e eficiente, não pode ser meramente formal porque é uma garantia e requer substância. Em outros termos, no processo criminal, a ampla defesa é um instrumento de garantias em favor do acusado e confere legitimidade à pretensão acusatória. Isso é tão marcante que, no processo criminal, a ampla defesa é um direito fundamental apenas em favor do acusado, ao passo que, no processo civil, a ampla defesa diz respeito tanto ao autor quanto ao réu105.

Outro equívoco encontrado na doutrina se dá quando ao acusado é atribuído o direito de acesso à justiça. Veja que não cabe ao acusado o direito de acesso à justiça, mas sim o direito à ampla defesa, pois na seara criminal não é o indivíduo que procura o judiciário, mas o Estado-Juiz quem o procura. Em que pese isso, muitos manuais de processo criminal e até mesmo a legislação nacional e estrangeira cometem o equívoco de atribuir o direito de acesso à justiça ao acusado. E isso se torna mais frequente quando se fala na questão da razoável duração do processo. Ou seja, ao falar da razoável duração do processo relaciona-se tal garantia com o direito de acesso à justiça e, equivocadamente, atribui-se a esse último a qualidade de direito pertencente ao acusado.

Nesse sentido, ao falar da normatização da garantia de defesa e elencar o caso da Constituição italiana, Fábio Ataíde exemplifica a evidência acima descrita, assim, o autor relata que:

Prevalentemente, a defesa agrega-se como princípio norteador do processo penal contemporâneo. É neste sentido que a Constituição Italiana de 1947 assegura para a defesa de direitos e interesses legítimos o acesso pleno à jurisdição, sendo de tal modo a defesa um direito inviolável em qualquer procedimento. (art. 24)106.

104 CARVALHO, Samantha de Araújo. A Teoria Geral do Processo e sua Inaplicabilidade no Processo Penal. Florianópolis. Habitus, 2017, p. 151.

105 SILVA JÚNIOR. Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal: Teoria Constitucional do Processo Penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015, p. 486.

106ATAÍDE, Fábio. Colisão entre o Poder Punitivo do Estado e a Garantia Constitucional da Defesa. Curitiba: Juruá, 2010, p. 140.

Desse modo, embora haja excelentes intenções da Constituição Italiana em assegurar o direito de defesa do acusado, ele não pode ser abordado com direito de acesso à justiça (acesso pleno à jurisdição). Tudo isso porque, conforme já clareado no tópico 2.1.1, que explica o surgimento do Direito Criminal, o processo criminal existe em função do direito de defesa e não do direito de amplo acesso à justiça (aí contido o direito de ação). Se há um direito de ação e de acesso à justiça no processo criminal, eles pertencem ao Ministério Público, ao titular da ação penal de natureza privada e ao ofendido ou seu representante, quando se trata de ação penal pública condicionada à representação.

Em outros dizeres, na seara penal, o indivíduo não vai ao Judiciário buscar a tutela jurisdicional apta a solucionar a pretensão resistida, mas tão somente é convidado para se defender. E ainda que o acusado faça jus à razoável duração do processo, na esfera criminal, tal garantia está relacionada com o direito ao julgamento dentro de um prazo razoável, que não se confunde com o direito de acesso à justiça do direito civil.

Ademais, o devido processo legal compreende um conjunto de elementos responsáveis por viabilizar a realização da ampla defesa no processo criminal. Nesse sentido, Fábio Ataíde explica que, embora o termo “devido processo legal” não esteja expresso em algumas constituições, ele está intimamente relacionado com o contraditório e a ampla defesa e exterioriza-se na afirmação de proteção de valores como a vida, a liberdade e da propriedade, consagrados a partir da doutrina política de John Locke107.

Outro ponto fundamental é a revelia. No processo criminal, ela se distingue substancialmente da que é aplicada no processo civil. Isso ocorre porque, se a revelia fosse aplicada ao processo criminal igualmente como funciona no processo civil, seria incompatível com algumas as garantias processuais, seja porque o acusado possui o direito ao silêncio, o direito a renunciar a sua autodefesa e/ou porque os fatos alegados pela acusação não podem presumir-se verdadeiros, sob pena de violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa.

No processo criminal, caso seja declarada a revelia do acusado, ainda sim a defesa técnica é obrigatória. Isso se dá em razão de o acusado ser chamado ao processo

107 ATAÍDE, Fábio. Colisão entre o Poder Punitivo do Estado e a Garantia Constitucional da Defesa. Curitiba: Juruá, 2010, p. 139.

exatamente para se defender. E mesmo que ele renuncie ao seu direito de autodefesa, não comparecendo à audiência, o direito à defesa técnica é irrenunciável. Então, ainda que o acusado discorde, o seu defensor deve ser nomeado, pois a constituição da defesa técnica, no processo criminal, é obrigatória108.

Enfim, o processo criminal surgiu em razão do direito de defesa, compreendendo um instrumento para assegurar garantias, assim como, nele, em via de regra, o direito de ação é do próprio Estado. Em verdade, ele é mais um dever do que um direito. Por essa razão, o processo criminal diferencia-se substancialmente do processo civil. Melhor dizendo, no processo criminal, não se fala em direito de ação do Estado, mas no dever de agir em razão do dever de proteção eficiente dos direitos fundamentais na perspectiva objetiva109.

A Teoria Geral do Processo serve para a Teoria do Processo Civil, isto é, de índole não criminal. Porque se a ação é um elemento de proeminência na Teoria do Processo Civil, no processo criminal, o que ocupa posição hegemônica e central é o direito de defesa. Se a igualdade serve para irrigar os elementos teóricos do processo civil, essa cláusula universal, no ambiente criminal, é assegurada pela incidência do princípio da presunção de inocência e/ou de não culpabilidade, responsável por reestabelecer o equilíbrio de forças e, assim como os demais princípios, limitar jus persequendi e o jus puniend.

Todas essas premissas básicas aqui fixadas justificam a necessidade de estudar o direito ao julgamento dentro de um prazo razoável à luz de uma Teoria do Processo Penal e que mais se aproxime do modelo constitucional de processo e da Teoria dos Direitos Fundamentais, portanto, a Teoria Constitucional do Processo Penal.

2.2.2 A forma como garantia no processo criminal e as principais diferenças entre a