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“Cada um de seus monumentos um templo”. Foi assim que Tertuliano, um dos chamados “Pais da Igreja”, caracterizou a Roma do século II (MARKUS, 1997, p.145). A cidade foi com certeza um dos principais e mais importantes lugares no qual o cristianismo fincou raízes e se fez visível e atuante na Antiguidade Tardia. Contudo, o mundo romano estava cheio de lugares sagrados da tradição religiosa greco-romana e quase tudo da vida social do Império, tanto pública quanto privada, canalizava-se nesses lugares.

Como nos diz Béatrice Caseau,

um visitante do mundo romano no final do terceiro século teria sido oprimido pela presença de templos, altares e imagens de deuses e deusas. Seja na cidade ou no campo, santuários consagrados aos deuses eram onipresentes. Eles eram frequentemente os primeiros edifícios visíveis de uma cidade distante, brilhando no topo de uma acrópole. [...] Estátuas de deuses e deusas, adornadas com guirlandas e perfumadas com as ofertas de incenso, encontravam-se em numerosas partes das cidades: não embelezavam apenas templos, mas encruzilhadas, teatros, banhos e fóruns (2001, p. 23-24).

Nesse sentido, a combinação de elementos antrópicos e naturais, que se relacionavam e eram interdependentes, confluía numa paisagem urbana construída, ou remodelada, para reiterar a presença e benevolência dos deuses. De acordo com Gilvan V. Da Silva (2005), Roma era um espaço dedicado às divindades pela execução de um rito ancestral de fundação que a

convertia em uma reprodução do templum sobre a terra, com fronteiras demarcadas materialmente. Assim, o pomerium, isto é, o centro mágico da urbs, era traçado com o uso de uma lança ou uma charrua, e ainda estava em vigor no século IV, delimitando a área destinada a vida humana e seus desdobramentos.

Sendo um espaço consagrado aos deuses, a urbs era, portanto, um núcleo de convivência entre o homem e o divino, o qual “gozava de uma existência espiritual, incorruptível e celeste” (BUSTAMANTE, 2001, p. 337) que deveria ser preservado de qualquer corrupção terrena, e a isso se incluía o colapso da morte e das forças poluentes advindas dela. Por isso, segundo José Remesal-Rodríguez (2016), as diretrizes legais da cidade exigiam que o enterramento de corpos fosse executado somente em lugar autorizado, de forma que o espaço consagrado não fosse maculado com o sepultamento dos mortos e entrasse em contato com a degeneração do corpo humano.

Ainda de acordo com um historiador, o húngaro-inglês Robert A. Markus (1997), a presença de inúmeros loca sacrae dentro do pomerium também era fundamental para enfatizar o estatuto da cidade de ser uma “oferenda geográfica” aos deuses. Naturalmente, os templos eram os melhores exemplos dessa arquitetura sagrada, mas os monumentos erigidos com a finalidade de celebrar o orgulho cívico, como os arcos do triunfo e as estátuas dos imperadores, e os de outra ordem como os teatros, anfiteatros, termas e até o palácio imperial também arranjavam a paisagem urbana e congraçavam intimamente elementos sagrados e políticos.

Apreendida sob essa lógica, a urbs romana constituiu-se como um espaço alicerçado sobre dois vetores principais. Um diz respeito à institucionalidade divina, que delimitava uma zona de contato perene entre deuses e humanos; e o outro referia-se aos códigos políticos, que circunscrevia na paisagem símbolos de poder e estabelecia identificações com a soberania e benevolência dos deuses. Em nossa concepção, não tomamos nenhum desses vetores como o mais importante, pelo contrário, compreendemos que tais características estavam conectadas de forma intrínseca e que não se pode analisar uma sem a outra, pois da mesma maneira que a intervenção divina possibilitava o espaço social da cidade e o bem estar da comunidade, era o poder político que fomentava a manutenção desse espaço por meio do gerenciamento dos indivíduos, da organização espacial da arquitetura e da promoção do culto aos deuses.

Nesse sentido, entendemos que o espaço urbano pode ser manipulado e delimitado de acordo com as necessidades humanas, individuais e coletivas, que buscam dotar espacialidades com subsídios culturais e imprimir na paisagem elementos que promovam identificações sociais. O referido professor Gilvan V. da Silva (2010), em um artigo no qual trata sobre a apropriação do território urbano de Antioquia pelos cristãos na Antiguidade, enfatiza que o

espaço é tanto produto como produtor da ordem social e que isso implica em uma variedade de funções. Segundo Silva, é no núcleo espacial que grupos humanos se organizam e estabelecem as regras de convívio, vivem experiências culturais que convergem com outras categorias da vida social, como a religião, circunscrevem lugares com simbolismos e ritos, materializam lembranças em monumentos e socializam identificações imprescindíveis para a produção de memórias coletivas.

Aqui, compartilhamos tal compreensão com o autor. Mediante essas funções, o espaço, antes indefinido, passa então a abrigar núcleos de fixidez e pontos móveis que vão sendo apropriados e revestidos de significados pelos sujeitos que o experimenta. E o processo de significação desses núcleos acontece em diversos níveis que vão do privado ao público, do imaginário à prática e da relação entre sagrado e profano (a exemplo do pomerium etrusco- romano). Logo, a disposição dos loci sacros junto às casas particulares e edificações públicas na urbs manifestou um domínio progressivo desses recintos, legitimando tal controle na paisagem urbana de Roma.

Cabe ressaltar, portanto, que as estratégias que buscam disciplinar os recintos urbanos são, sobretudo, estratégias de poder e, como tais, almejam regular os lugares, as práticas, os trânsitos, produzindo e reproduzindo diferenças e assimilações em termos geográficos e sociais. Como dito anteriormente, no Império Romano o poder não foi exercido apenas pela via militar ou somente pela articulação política, mas pela junção destas duas vias a um terceiro elemento, um valor religioso que foi eficazmente promovido e reivindicado, de forma que o poder imperial se constituiu como meio de assegurar a coesão do território e manter a ordem simbólica que congraçava o império e os deuses. Consequentemente, tal condição não foi irrelevante no que tange à organização do espaço urbano e nas experiências cotidianas ali vividas. Sendo o espaço mais um núcleo de exercício do domínio social, as formas de ajustamento de conduta, controle de ações e manutenção da ordem foram empreendidas largamente por rituais que iam da subordinação as leis à participação coletiva em festividades e espetáculos.

Estar sobre o domínio de Roma significava fazer parte de um território organizado e protegido no qual o cotidiano estava em contato perene com símbolos e paisagens de poder. Na relação com as províncias, as permanências de elementos das culturais locais eram permitidas, mas criavam-se mecanismos de coesão elaborados para garantir, no mínimo, uma “cultura política normativa” (GONÇALVES, 2010, p. 25). Seja na acepção latina, civitas, ou na grega,

polis, as cidades romanas existiram como centros irradiadores das formas eruditas de cultura e

do modo de vida romanizado. Segundo Jonh Curran, os meios urbanos eram uma espécie de termômetro para as “marés políticas da corte” (2000, p. 20), por isso os entretenimentos

públicos eram tão importantes. Inclusive, ainda de acordo com o autor, a própria organização da cidade e seus monumentos eram instrumentos disciplinadores, pois na medida em que o Império se expandia e novos territórios eram anexados ao domínio romano, os modelos arquitetônicos dos edifícios públicos e a paisagem urbana eram então disseminados para essas novas áreas, a fim de dotar o espaço citadino de lembranças permanentes da dominação imperial.

Nesse cenário, da mesma forma que as imagens dos deuses eram dispostas por todos os lados para evocar a presença divina e honrar suas graças, uma arte imperial - formulada a partir das mudanças trazidas por Augusto com a introdução do Principado - evidenciava o poder da figura do princeps. Assim, o imperador, seu modo de vida, suas conquistas e suas aparições públicas fomentavam o mores maiorum pelo Império, como assinala Paul Zanker (1992).

Richard Sennet (2008), quando propõe uma análise das expressões de poder através da arquitetura urbana, utiliza o exemplo da reconstrução do Pantheon romano pelo imperador Adriano, iniciada em 118 de nossa era. O edifício agrupava várias estátuas de divindades em posições de honra; colocadas em nichos na parede circular, eram iluminadas pelos raios solares que invadiam o espaço pela abertura no domo. Mas além das imagens de ordem divina, o

Pantheon também guardava símbolos políticos imperiais dispostos no mesmo espaço, como se

os deuses tutelassem a expansão imperial romana.

Sennet argumenta que tal construção sinaliza o drama de sua época, pois se constituiu como um exemplar da ligação essencial entre poder político e visualidade. De acordo com ele, os soberanos precisavam que seu poder e autoridade fossem evidenciados em monumentos e obras, muitas vezes juntamente às imagens dos deuses, de forma a articular a fé tanto no Império quanto nas divindades e “para que todos olhassem, acreditassem, obedecessem” (SENNET, 2008, p. 81). Nos mais diversos tipos de suportes, as imagens e as representações das vitórias tomavam as ruas das cidades, as paredes de edifícios, os arcos do triunfo, os ambientes domiciliares, ratificando a majestade augusta e construindo a ordem imperial que se queria disseminar.

Não é de espantar, portanto, que Constantino tenha recebido muito dos louros da “vitória” cristã na bibliografia redigida por tantos anos depois do Edito de Milão, como um imperador conduzido por Deus17. De acordo com Robert A. Markus, a era constantiniana foi

17 O próprio Constantino também atuou na reformulação da paisagem de Roma e de outras áreas urbanas pelo

território, pois foi responsável pela construção de várias igrejas na urbs romana, como a Basílica de São Pedro e a Igreja de San Giovanni in Laterano, e na Palestina, as Igrejas da Natividade, do Santo Sepulcro, do Carvalho de Abraão, dentre outras, como nos cita a arqueóloga Regina Helena Rezende (2008).

uma verdadeira revolução para os cristãos, pois configurou-se como um período de participação ativa na dinâmica política e social por meio de adaptações das tradições sociais vigentes, de tal modo, que imagens de Constantino continuaram a ser erigidas e festividades em sua honra foram celebradas em várias cidades; desde que “não fosse poluído pelas mentiras de qualquer contágio de superstição”, tais práticas tinham o consentimento do próprio (MARKUS, 1997, p. 42).

Assim, essas características espaciais também foram uma constante para os cristãos do Império. Até meados do século IV, eles habitavam um espaço citadino espiritualmente dedicado aos deuses do panteão greco-romano, das ruas aos templos. E, quando a era pós-constantiniana permitiu e promoveu a remodelação das cidades, o espaço continuou sendo marcado, manipulado e delimitado na tentativa de imprimir na paisagem os símbolos que afirmavam determinadas identidades às expensas de outras.

Como argumenta Judith M. Lieu (2004), o sentimento de pertencer a um território específico, real ou imaginado, aliado à convicção de origem compartilhada, é um dos componentes mais eficazes na concepção de identidade, pois o apelo ao passado histórico, dentro de uma percepção de tempo e espaço de atuação, tem uma fundamentação profundamente política. Nesse sentido, o empenho de dotar os espaços privados e públicos de epifanias cristãs foi salutar no processo de “cristianização do mundo romano” e se constituiu, portanto, como um projeto de reordenação da dimensão espacial. Mesmo que no século IV o cristianismo estivesse longe de ser universalmente abraçado, a condição de poder marcar o espaço com símbolos e monumentos próprios significava anexar o território à história cristã, e assim produzir um cenário para a memória coletiva da crença, tendo em vista que esses edifícios religiosos funcionaram como instrumentos que promoviam a vitalidade da comunidade, bem como atestavam o direito de praticar a religião e divulgar o culto.

Para isso, além do patrocínio imperial e das elites convertidas na construção dos próprios lugares de culto em Roma18, exigiu-se um esforço considerável da elite episcopal de dessacralizar os templos, monumentos e santuários da tradição greco-romana, e mesmo da judaica, no sentido de demonizar esses lugares, de esvaziá-los de seu estatuto identitário, de desassociá-los de suas origens religiosas (MARKUS, 1997; CASEAU, 2001; SILVA, 2010).

Outra investida na ascendência espacial cristã foi a conversão de templos pagãos em igrejas, e consequentemente a alteração de seu conteúdo e função, como ocorreu em Agrigento

18 Além de Roma, outras regiões do Império podem ser citadas neste processo de cristianização espacial, a exemplo

e em Siracusa (REZENDE, 2008). Dessa forma, conforme assinala Lane Fox (apud SILVA, 2010, p. 71), enquanto no meio pagão romano os ataques eram direcionados contra as ações e profecias de monges, bispos, virgens - os chamados theioi andrés – que profetizavam e proclamavam a onipotência de seu deus, entre os cristãos foram os lugares e objetos consagrados aos deuses que tornaram-se alguns dos alvos principais por conta do objetivo de dessacralizar o recinto urbano e reordená-lo de acordo com os princípios do cristianismo.

Entretanto, apesar da eficaz atuação da política estatal de auxílio à Igreja, a paisagem urbana de Roma não foi modificada rapidamente, pelo contrário. Como dito, a religião romana e a vida cívica eram conectadas de tal maneira que, para a crescente atuação cristã na vida pública, o caminho foi desvalorizar as celebrações cívicas tradicionais, no que tange à relação com as divindades, e buscar a conciliação das exigências da vida pública com os propósitos cristãos. Somente nos séculos V e VI é que, de fato, assistiu-se a uma estratégica cristianização geográfica do Império Romano. E, ainda assim, não de maneira homogênea e universal. Lembremo-nos que pelos primeiros quatro séculos de nossa era os cristãos não gozavam de liberdade de culto, oficialmente, e eram, muitas vezes, associados aos judeus.

Assim, neste período, a presença cristã nos núcleos urbanos foi marcada por discrição e cautela, a fim de evitar retaliações e perseguições por parte da população e do governo imperial. Por estes idos, em vez da publicização da crença através de edifícios próprios, prevaleceram os costumes de reunir discretamente a assembleia de fieis em residências privadas adaptadas para servir ao culto, as chamadas domus ecllesia19, e, possivelmente, em alguns batistérios e santuários20 erigidos em honra aos mártires, como assinala a arqueóloga Jocelyn M. C. Toynbee (1953).

Além desses lugares, as catacumbas também foram recintos de reuniões da comunidade de fiéis. A partir do século III, os cristãos começaram a expandir essas estruturas por quilômetros, formando gigantescos complexos funerários, nos quais se reuniam regularmente em ocasiões de sepultamento, nas festividades anuais ou nos aniversários de

19 Exemplo disso é Dura Europos, na Síria, umas das domus mais conhecidas e pesquisadas da atualidade. A casa

foi descoberta na década de 1920, logo após a falência do Império Otomano. As escavações duraram alguns anos e foram realizadas, principalmente, por pesquisadores franceses e estadunidenses da Academia Francesa e da Universidade de Yale. Atualmente, o Museu do Louvre e a Yale University Art Gallery conservam os materiais encontrados nas escavações, além da reconstrução de alguns afrescos.

20 O Santuário de São Pedro, por exemplo, foi descoberto pela arqueóloga J. M. C. Toynbee (1953) nos anos 1950,

sob o que hoje é o Vaticano. De acordo com ela, o monumento foi construído por volta de fins do século II e começo do III, compondo-se de um edicola erigida em memória do apóstolo. O Santuário está entre as necrópoles do Vaticano e é associado ao sepultamento dos restos mortais de São Pedro, ainda que nenhuma inscrição prove que a área conteve os restos mortais do mártir. Contudo, é provável que o local tenha sido locus de peregrinação na Antiguidade.

morte dos mártires. Esses ambientes fúnebres foram compartilhados por muito tempo até que a comunidade cristã tivesse condições de dispor de cemitérios próprios, e justamente por essa condição, as catacumbas permaneceram sendo espaços de convivência entre cristãos e não cristãos, promovendo zonas de fronteiras nas quais trocas culturais foram estabelecidas.

Aliás, de acordo com Ramsay Macmullen (1984), o fato de o cristianismo não dispor de templos próprios e seus adeptos terem feito uso de espaços compartilhados, a exemplo desses cemitérios subterrâneos, coincide com a escassez de registros arquitetônicos inequivocamente cristãos anteriores ao século IV. A mesma situação se apresenta quanto falamos sobre outros tipos de cultura material, como as imagens. As fontes imagéticas de caráter cristão que temos conhecimento - dos séculos III e IV - foram confeccionadas nesses referidos espaços funerários, nos quais eram realizados sepultamentos de diversas matrizes religiosas. Por consequência, tais imagens foram produzidas em meio às outras manifestações visuais, o que no mínimo demonstra proximidade com as tradições romanas, principalmente no que se refere aos ritos fúnebres, que tinha na decoração dos túmulos um costume arraigado.

Nesse sentido, entre a organização nas casas particulares e a responsabilidade episcopal houve várias flutuações nas condições de vida da comunidade, de forma que os cristãos, como vários outros grupos religiosos pelo Império, não se abstiveram de penetrar em todos os níveis do convívio social, de assimilar as tradições, os modos de vida, a cultura – e isso não foi diferente no que tange ao imaginário da morte. Antes da era de agraciamento público e estatal, os fiéis cristianizados tiveram de fazer uso de espaços comuns e de, nessas condições, manter e promover a identidade de crença do grupo. Por isso, é necessário compreendermos que antes de profanarem templos antigos, eles precisaram dividir espaços com politeístas e judeus, dividir experiências, dividir ritos.