• Nenhum resultado encontrado

Imagens funerárias cristãs: mídias de identidade religiosa e memória cultural na Roma Tardia (séc. III-IV)

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Imagens funerárias cristãs: mídias de identidade religiosa e memória cultural na Roma Tardia (séc. III-IV)"

Copied!
181
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

FRANCIMAGDA ALMEIDA AVELINO

IMAGENS FUNERÁRIAS CRISTÃS:

Mídias de identidade religiosa e memória cultural na Roma Tardia (séc. III-IV)

Natal – RN 2019

(2)

IMAGENS FUNERÁRIAS CRISTÃS:

Mídias de identidade religiosa e memória cultural na Roma Tardia (séc. III-IV)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História.

Área de concentração: História e Espaços

Linha de pesquisa: Linguagens, Identidades e Espacialidades

Orientadora: Prof° Dra. Lyvia Vasconcelos

Baptista

Natal – RN 2019

(3)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Avelino, Francimagda Almeida.

Imagens funerárias cristãs: mídias de identidade religiosa e memória cultural na Roma Tardia (séc. III-IV) / Francimagda Almeida Avelino. - 2019.

179f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Arte, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lyvia Vasconcelos Baptista.

1. Cristianismo - Dissertação. 2. Imagem - Dissertação. 3. Identidade cultural - Dissertação. 4. Memória cultural - Dissertação. 5.

Antiguidade Tardia - Dissertação. I. Baptista, Lyvia Vasconcelos. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 94

(4)

À minha orientadora, professora Dra. Lyvia Vasconcelos Baptista, por ter seguido esta trajetória comigo e por fazer ela mais plena. Nunca faltaram conversas, apoio e comprometimento. Obrigada por me dar um precioso testemunho de docência, por acreditar na pesquisa e indicar os melhores caminhos, mas principalmente, por me deixar escolhê-los. Todos os louros que possam vir deste trabalho são igualmente nossos, mas apenas eu sou responsável por qualquer equívoco que tenha sido cometido.

Aos meus pais, Noeme e Belarmino, que sempre serão os meus exemplos preferidos de dignidade, comprometimento e amor. Agradeço pela vida, pela nossa caminhada. Vocês são meu lar!

Ao meu companheiro, Acácio Simões, por todo o apoio e aconchego. Obrigada por estar perto, por ser sempre uma fonte de diálogo. E obrigada por me fazer rir! Sem você esse ciclo não teria sido tão feliz. A vida é melhor contigo. Sigamos juntos!

Aos amigos Ítalo Rabelo, Tamires Ulisses e Raquel Hilário que me acompanham desde a escola - em Fortaleza, Natal ou São Paulo, estamos juntos!

À Thais Tenório e ao Leonardo Cruz Pessoa, que alegraram minha morada nas terras potiguares e se tornaram minha família natalense. Nossa parceria nesses anos de Mestrado enriqueceram nossos caminhos e, com certeza, me fizeram mais feliz. Que continuemos esta amizade e que nunca nos falte leveza pra seguir a vida!

Ao “Pessoal do Ceará”, Marlia Façanha, Pedro Parente, Paulo Airton Damasceno, Thiego Bento e Ícaro Amorim, todos alunos do Mestrado em Ensino de História na UFRN, por terem me acolhido na turma e na casa, e por me darem maravilhosos exemplos do amor pela docência e pela História.

A todos os companheiros de Mestrado, por compartilharem as dúvidas, as preocupações, as risadas e os esforços. Foi um grande prazer, meus queridos!

À Clarice Maciel e ao Francisco Simões, fontes de carinho e cuidado, que me abrigaram em seu lar enquanto eu escrevia este trabalho. Tal acolhimento foi essencial nessa trajetória e eu espero estar sempre perto para retribuir.

Às companheiras Joana Borges e Walquíria Sales, pela ajuda e correções.

Ao Programa de Pós-Graduação em História, pela seriedade e estrutura necessárias à materialização desta pesquisa, e pela ótima formação promovida pelos professores que o compõem. Em especial, agradeço à professora Dra. Márcia Severina Vasques pelas aulas enriquecedoras e pela preciosa ajuda.

(5)

bolsa concedida, sem a qual esta trajetória teria sido muito mais difícil.

À Universidade Estadual do Ceará, instituição onde me licenciei em História, responsável pela sólida formação que me preparou para este Mestrado e lugar de experiências fundamentais à minha vida e profissão.

Por fim, agradeço à Universidade Federal do Rio Grande do Norte e, fundamentalmente, ao ensino público deste país, que me formou pessoa e professora, e é ancorado no trabalho de tantos profissionais comprometidos com uma educação de qualidade. Como nos dizia o professor Paulo Freire, “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. Busquemos, então, nossa liberdade. À luta, companheiros!

(6)

O desenvolvimento do cristianismo foi um processo marcado por encontros culturais e assimilações que, gradativamente, promoveram a formação identitária da religião, tendo essas condições manifestado-se através de produções imagéticas articuladas às experiências espaciais. Partindo dos pressupostos da historiografia cultural, bem como das contribuições dos estudos visuais, esta dissertação desenvolve uma análise de um conjunto de imagens cristãs, produzidas entre os séculos III e IV em catacumbas da cidade de Roma, como mídias de identificação religiosa e de memória cultural. Em um primeiro momento, buscamos contextualizar o desenvolvimento do cristianismo e, portanto, discutimos a respeito das origens judaica e gentílica da crença. Em seguida, tratamos sobre as experiências espaciais dos cristãos nos ambientes funerários onde as imagens foram produzidas, dando ênfase aos cruzamentos culturais atuantes nessas relações. E, por fim, analisamos as imagens cristãs focando em seus temas, significados, inserção nos debates bíblico e teológico e articulação espacial. Nesse movimento, apreciamos tais imagens em três tipos de relação: articuladas ao espaço e ao tempo; vinculadas aos princípios cristãos e inseridas em uma contiguidade histórica.

Palavras-chave: cristianismo; imagem; identidade cultural; memória cultural; Antiguidade

(7)

The development of christianism was a process marked by cultural encounters and assimilations that gradually promoted an identity formation of the religion, having these conditions manifested through imagery productions articulated to the space experience. Based on the assumptions of cultural historiography, as well as the contribution of visual studies, this dissertation is an analysis of a set of christian images, produced between the 3rd and 4th centuries in Roman catacombs as identification media religious and cultural memory. Firstly, the development of christianism is contextualized and its Jewish and Gentile origins are discussed. Then the spatial experience of the christians on the burial grounds where the images were produced is discussed, emphasizing the cultural crossings active in these relationships. Finally, christian images are looked at focusing on their themes, meanings, participate in the biblical and theological debates and spatial articulation. In this movement, these images are appreciated in three relationship categories: articulated to space and time; linked to the christian principles and inserted in a historical contiguity.

(8)

INTRODUÇÃO ... 8

CAPÍTULO 01 O CRISTIANISMO E A ANTIGUIDADE TARDIA ... 18

1.1. Interações culturais no Império Romano ... 18

1.2. O cristianismo entre o Ante Pacem e o Tempora Christiana ... 29

1.3. O debate iconográfico no meio judaico-cristão ... 43

CAPÍTULO 2 ESPACIALIDADES CRISTÃS NO ESPAÇO ROMANO ... 54

2.1. A paisagem urbana de Roma: expressões sagradas e políticas ... 54

2.2. As catacumbas cristãs ... 60

2.3. Os tratos e ritos funerários entre politeístas romanos e cristãos ... 70

CAPÍTULO 03 A ICONOGRAFIA CRISTÃ: núcleos de identificação e memória cultural ... 81

3.1. Tecendo comunicações visuais ... 81

3.1.1. Ornamentos, símbolos e motivos ressignificados ... 87

3.1.2. Narrativas bíblicas ... 98

3.1.3. Imagens de Cristo, santos e mártires ... 107

3.2. As imagens cristãs: mídias de memória cultural ... 117

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 125

REFERÊNCIAS ... 131

(9)

INTRODUÇÃO

O período da Antiguidade Tardia configurou-se como uma longa temporalidade de transformações e encontros fluidos, no qual a história cristã desenvolveu sua trajetória e interferiu diretamente na reelaboração de tradições e na definição de novas formas de poder. Objeto de variados estudos, o processo de cristianização do mundo romano atravessou fronteiras políticas e culturais, convulsionando o modo de vida antigo e suplantando diversas manifestações religiosas. Compreender esse contraditório cenário, no qual uma crença passou de ilícita e perseguida à religião oficial definidora de práticas e normas sociais, requer o esforço de problematizar essas dimensões, atentando para as várias formas de expressão do movimento cristão, indo da formação do imaginário social à materialização das epifanias.

De acordo com essa perspectiva, este é um trabalho que busca analisar um conjunto de imagens cristãs, produzidas entre os séculos III e IV em catacumbas romanas, como mídias de identificação religiosa e de memória cultural. Partindo dos pressupostos dos estudos culturais, buscamos compreender os intercâmbios de práticas, valores e culturas que compuseram a crença cristã e suas consequentes produções imagéticas em espaços fúnebres.

Dentre as composições, podemos perceber três motivos representacionais que se repetem, a saber: ornamentos, símbolos e motivos ressignificados; representações de narrativas bíblicas e representações de Cristo, santos e mártires. São esses os temas que optaremos por analisar: o primeiro por corroborar a influência greco-romana; o segundo por elucidar a proximidade com as formas judaicas e o último por evidenciar a representação de personagens especificamente cristãos.

Primordialmente herdeira da tradição romana, a iconografia cristã formulou gradativamente temas, símbolos e estilos com identidade e características específicas, mediante a articulação de práticas e valores dos meios religiosos que a influenciaram. O intenso intercâmbio de experiências culturais no espaço citadino de Roma provocou uma cadeia de imbricações de práticas e vivências espaciais entre os diversos grupos ali dispostos. Nesse ínterim, o desenvolvimento do cristianismo atravessou um panorama social penetrado de símbolos e ritos da tradição judaica, o meio no qual se originou, e também da tradição greco-romana.

A orientação temporal que enquadra nossa pesquisa, os séculos III e IV, deve-se diretamente à datação das fontes imagéticas, uma vez que é somente a partir desse período que se encontram registros visuais cristãos, e suas produções estão diretamente relacionadas às condições políticas do grupo que, não podendo erigir edifícios próprios ao culto, acabaram por

(10)

manifestar sua crença em espaços fúnebres públicos. Esse período também compreendeu mudanças fundamentais quanto à participação dos cristãos na vida social e política do Império. Antes do patrocínio imperial, o cristianismo enfrentou períodos de relativa tranquilidade e outros de severa marginalização, identificados pelo teólogo e pesquisador de arte cristã Graydon F. Snyder (2003) como Ante Pacem - época que vai do início do movimento cristão até a primeira década do quarto século. Mas, após o Edito de Milão (313) e a conversão de Constantino, iniciou-se, então, o período chamado de Tempora Christiana, o “tempo dos cristãos”, no qual o cristianismo passou a gozar do patrocínio imperial e de várias benesses advindas dessa tutela1.

Assim, aplicamos aqui a dimensão temporal da longa duração, e o período histórico analisado está incluso no que a historiografia entende por Antiguidade Tardia. Por isso, é válido estabelecermos brevemente que tomamos este conceito temporal como um largo período, no qual continuidades advindas do mundo clássico e helenístico se articularam a novas concepções ideológicas2, como o neoplatonismo e o pensamento cristão, e acabaram por gerar

transformações importantes nas tradições de épocas antecedentes, assim como assinala Renan Frighetto (2012). Ainda de acordo com outro historiador, o irlandês Peter Brown (2012), as tradições greco-romanas articularam-se a todo o contexto sociocultural como num tripé, operado em uma escala de tempo caracterizada pelas condições conflituosas advindas de uma revolução militar no Império Romano3, no século III, pela fundamental estruturação do cristianismo e pela acomodação dos povos germânicos.

1 Contudo, é preciso atentar para o fato de que, após o patrocínio de Constantino, os cristãos passaram por vários

momentos conturbados e mesmo violentos, dessa forma, o Tempora Christiana não se caracteriza como um período de absoluta calmaria nem de paz imperturbável. Sendo assim, usamos os termos nesta dissertação com o objetivo de diferenciar os espaços de tempo que analisamos, tendo em vista que nossas fontes imagéticas foram produtos sensíveis às mudanças sociopolíticas que afetaram o cristianismo de então.

2Sabemos que, com a expansão imperial, houve a criação de novos intercâmbios sociais, por meio dos quais a base

de poder, o imaginário e as identidades foram transformados e reproduzidos. O contato com a cultura helênica deu-se de forma plural para os romanos, e permeou vários aspectos da sociedade, inclusive a língua, as artes e a religião. De acordo com a definição de L. I. Levine (apud CHEVITARESE, A. CORNELLI, G., 2003), esse contato, que aqui entendemos como “helenização”, seria o processo de adoção e adaptação da cultura helênica em um nível local, embutido no que denominamos “helenismo”, um meio cultural amplamente grego dos períodos helenístico, romano e parte do bizantino. De toda forma, o processo de helenização do mundo romano apresentou matrizes diversificadas, se considerarmos as especificidades locais nas relações de recepção, interpretação e reprodução dos encontros entre a cultura grega e as múltiplas culturas dispostas no mediterrâneo. Desse processo, judaísmo e cristianismo não escaparam.

3 Para Brown, uma das principais características da Antiguidade Tardia foi o conjunto de mudanças executadas no

meio militar, que pelo século III atravessa processos conturbados de sucessão imperial e de nomeação de oficiais para o exército. Grandes legiões foram divididas em destacamentos menores, tropas de choque e uma pesada cavalaria foram paramentadas. Na época do reinado de Constantino, os soldados eram assalariados e tinham maior

(11)

No que concerne à atuação cristã, Brown argumenta que o período tardio-antigo tem como característica basilar a estruturação do cristianismo e a gradativa facilidade com que a crença monoteísta alcança as altas classes romanas a partir do quarto século. Nesse cenário, na medida em que o cristianismo avançou, o esforço para manter algumas tradições greco-romanas se intensificou, por parte daqueles que compunham as classes mais abastadas dos anteriores círculos pagãos, e favoreceram permanências culturais em meio a tantas mudanças. Desse modo, ainda que o cristianismo tenha alcançado o agraciamento político, seu ‘triunfo” não significou a derrota do politeísmo e de várias tradições greco-romanas, muitas das quais foram assimiladas e ressignificadas para servir aos propósitos cristãos. Pensar a formação cristã na Antiguidade Tardia, portanto, proporciona-nos a compreensão de que a religião formou-se em um tempo que, em si, sustentou novos valores articulando-os às permanências e criou, assim, novas configurações e ritmos sociais, os quais permearam diversos cenários da vida e das experiências, de maneira que as produções visuais que analisamos atestam que o cristianismo não pôde fugir desse processo.

Mas, em um contexto tão plural, diferenciações foram levadas a cabo. Em razão do patrocínio imperial e das condições sociopolíticas privilegiadas que os cristãos passaram a deter, houve um esforço coletivo por parte dos clérigos, exegetas e fiéis, de forma geral, para desacreditar e deturpar a religião politeísta e suas práticas, de maneira que até termos específicos foram usados para infamar tal tradição. Exemplo disso é o “pagão”. O termo passou a ser usado com significado de “idólatra” a partir do século IV (SINISCALCO, 2012, p. 1059), mas não há um consenso preciso sobre como a palavra ganhou sentido religioso, apesar de terem sido feitas algumas inferências sobre o assunto. O termo foi utilizado pelos cristãos para identificar indivíduos que não eram judeus nem professavam a fé em Cristo, e assim, não comporta toda a riqueza da religião politeísta romana. Segundo Brown (1996, p. 74), paganus é um vocábulo latino usado para designar o que é rústico, do campo e, muitas vezes, para referir-se de modo pejorativo a pessoas “iletradas”, referir-sem instrução, e por isso “cidadão de referir-segunda classe”.

Entre os exegetas e teólogos que escreveram em grego, no século IV, os termos usados para identificar os politeístas eram ethnikos, helenos e anomos; entre os latinos, foi usual

gentilis, impius e sacrilegus (SINISCALCO, 2012). Neste trabalho, preferimos usar, sempre

que possível, o termo gentil, ou gentílico, para nos referir aos sujeitos praticantes dos cultos

poder de compra. Esse processo coloca a casa imperial como palco político, promove a participação dos grupos militares, inclusive sua profissionalização, e afasta a aristocracia senatorial dos comandos militares.

(12)

politeístas, mas em alguns momentos os termos pagão e paganismo irão aparecer, uma vez que utilizamos vários autores que fizeram uso deles. Aqui, a utilização desses termos não intenta desmerecer, de modo algum, o politeísmo antigo e o uso se deu muito mais para estabelecer uma distinção no texto entre cristãos, judeus e politeístas.

Assim sendo, essa é uma discussão que propõe evidenciar questões relevantes, como o caráter dinâmico das tradições culturais que moldaram o cristianismo e a formação de um sentimento religioso, e de suas implicações, exercidos nas produções visuais e na apropriação de espaços. O foco da presente dissertação são as imagens, estes instrumentos comunicativos que representam algo real ou imaginário. Na conceituação de Jean-Claude Shimitt (2007), o termo imagem concerne ao domínio do imaterial, daquilo que imaginamos em nossa memória e que podemos projetar em diversos tipos de suporte, possibilitando, então, que tal produto seja compartilhado. Contudo, toda elaboração e interpretação imagética repousam diretamente no específico contexto histórico e temporal do qual é fruto, de forma que “parte do equipamento mental com que um homem organiza sua experiência visual é variável, e grande parte deste equipamento variável é culturalmente relativo (BAXANDALL, 1972 apud GASKELL, 2011, p. 267), no sentido que é a sociedade e suas configurações que influenciam esta experiência.

Nessa perspectiva, consideramos interessante compreender a produção iconográfica cristã segundo a ideia de visualidade do historiador de arte Jas Elsner (1990, p. 4), que teoriza:

[...] ver é sempre um processo dual de intepretação, no qual o que é visto torna-se cabível na estrutura já existente do conhecimento do espectador e, desse modo, sutilmente, modifica tanto o conteúdo do que o expectador conhece (porque algo novo foi adicionado) quanto o significado do que é visto (porque está agora emoldurado pelo conhecimento do expectador).

Logo, as imagens vistas passam pelo crivo de nossa censura pessoal, mas, como sujeitos sociais, estamos imersos em uma coletividade que cria, formula, propõe sentido. A organização imagética revela a consequência dessa condição, assim, interpretar um material visual requer decodificá-lo de acordo com o contexto cultural de produção e apreciação no qual está inserido. Uma dada composição pode gerar vários estímulos, sentimentos e significados em diferentes espectadores, portanto, interpretar uma imagem é considerar a percepção do expectador que a experimenta, em um determinado contexto cultural de produção e transmissão, ponderando também que essa mesma imagem se insere em uma multiplicidade de formações conceituais de uma cultura.

Jas Elsner (1990) exemplifica esta categoria de análise explicando a condição de representações de peixes, nos contextos romano e cristão na Antiguidade. Segundo o autor,

(13)

vários mosaicos de peixes e outros animais marinhos foram encontrados em algumas cidades do Império, como em Pompeia, de maneira que, em seu contexto cultural, tais imagens podem denunciar características do consumo alimentar na Baía de Nápoles, uma região em que isso seria comum nas casas aristocráticas.

Entretanto, se confrontarmos essas imagens com as composições paleocristãs, nas quais o peixe recebe o desígnio de representar um milagre (quando figura ao lado de pães) ou mesmo de simbolizar Jesus e seus discípulos como “pescadores de homens”, o sentido figurativo é absolutamente modificado. Todo esse processo de identificação e compreensão, portanto, deve ser analisado em seu devido contexto de apreciação, visto que as categorias conceituais de cada cultura atribuem a uma mesma imagem significados diversos.

Avaliamos, então, que tomar essa discussão de acordo com a ideia de visualidade nos permite entender a iconografia como um artigo cultural no qual se articulam o âmbito individual - pois a criação, a percepção e o entendimento se dão no corpo do indivíduo, que, por sua vez, está integrado a todo o processo imaginal que o rodeia – e o contexto coletivo, visto que tanto a imagem como o meio empregado são formados, usados e compreendidos culturalmente.

Isso posto, tomamos as imagens como manifestações físicas pertencentes ao discurso cristão, que gradativamente se formulava, enunciando características identitárias, de forma a demonstrar, por meio da cultura material, que as identidades não são singulares nem homogêneas, mas essencialmente sujeitas às mudanças promovidas pelas experiências coletivas. Essa concepção se insere dentro das discussões a respeito das identidades sociais e de como elas são operadas, nas quais o sociólogo Stuart Hall (2012; 2002; 1990) se apresenta como um dos teóricos mais destacados. Entendemos que as obras de Hall se voltam ao estudo das sociedades contemporâneas, mas a lógica da interabilidade identitária e todos os dilemas inerentes à ela não são apanágio apenas da contemporaneidade. As sociedades antigas, considerando suas especificidades, também se constituíam por meio de experiências socioculturais que se cruzavam e construíam diversos códigos sociais e identificações dialéticas, as quais se manifestavam em práticas, discursos e materialidades.

Assim, evocando o célebre princípio segundo o qual a nossa interpretação do passado deriva, consideravelmente, dos fatores do presente, defendemos que as imagens paleocristãs devem ser percebidas dentro dos discursos simbólico e social de uma coletividade e, ainda, que estes discursos se formaram em lugares históricos determinados, com objetivos e formas de execução específicos, e acabaram por marcar as relações entre identidades e diferenças, de maneira a estabelecer que a construção identitária do cristianismo se fez em arranjos fundamentalmente dinâmicos.

(14)

No contexto cristão tardio-antigo, as composições visuais referenciavam a origem judaica, mostrando Jesus como o Messias prometido, responsável pela realização de vários milagres e, mais tarde, como aquele que fundara e conduzira a igreja terrena rumo à salvação eterna, conferindo, dessa forma, uma explicação histórica para a crença e vislumbrando sua continuidade. Além disso, tais imagens também faziam referência aos mortos, celebrando seus feitos e demarcando sua filiação religiosa. Nesse ínterim, na medida em que os expedientes visuais estabeleciam alteridades entre politeístas, judeus e cristãos, funcionavam como mídias de memória cultural, retrospectivas e prospectivas, guardando um passado que servia à identificação da crença, ao mesmo tempo em que promovia a continuidade dela. Assim, de acordo com a percepção de Aleida Assmann (2011) sobre a construção mnemônica, ao passo que os cristãos estavam formulando significados para a sua tradição religiosa e para o seu tempo histórico, essas imagens eram oneradas de recordações e sentidos, portanto, se constituíam em mídias privilegiadas de memória cultural. Destarte, entendemo-las mediante a compreensão de que a identidade e a memória atuaram juntas nas produções e em suas interpretações.

Entre os estudos visuais da atualidade, o historiador de arte Hans Belting (2006) desenvolve a concepção de imagem como um mecanismo social percebido e compreendido através do corpo e do meio. Uma vez que as imagens decorrem de uma simbolização individual e coletiva, a produção imagética no espaço social nos é sugerida pela nossa própria consciência corporal. No entanto, a compreensão do corpo nesse processo só é plenamente reconhecida quando focalizamos a relação entre imagem e meio, já que toda imagem necessita de uma corporalidade visível, ou seja, esse meio é concebido como um suporte físico ou material através do qual se dá a ver e a conhecer a imagem.

Desta feita, sendo o meio (ou mídia) o agente que intensifica a mensagem transmitida, é mister que, além de nos voltarmos ao conteúdo, consideremos também o meio no qual nossas fontes foram feitas, isto é, em espaços funerários. Nesse ínterim, as catacumbas, complexos arquitetônicos destinados à execução de rituais fúnebres e ao sepultamento de pessoas de várias tradições religiosas, foram justamente espaços onde a dimensão da memória cultural ganhou visibilidade através dos ritos e da confecção de imagens. Este espaço é entendido por nós como um território delimitado, no qual há uma variabilidade de vetores (pessoas, produções, experiências) que se cruzam e se deslocam, implicando em uma multiplicidade de funções.

Como produto e produtor social, o espaço é a dimensão que promove a definição de regras e características da vida e das experiências, é o suporte no qual se representam materialmente categorias culturais, é o núcleo no qual imaginário e prática convergem e, ainda, é o meio fundamental para a produção de memória coletiva, portanto, o espaço não existe em

(15)

si mesmo, mas se ata à realidade social. Na perspectiva de Henri Lefebvre (2006), os espaços se constituem pelas práticas sociais nele desenvolvidas, de maneira que um espaço é sempre produzido e necessita de experiências para se constituir. Nesse sentido, tais experiências espaciais podem se manifestar tanto na interpretação que se faz delas, como nas espacialidades projetadas para vivê-las e, ainda, na própria concretude de suas vivências. Uma vez que não existe espaço social alheio à vida que o abrange, a interação e a instabilidade inerentes aos processos socioculturais acabam por produzir espacialidades mediante as ligações entre elementos individuais e coletivos, sociais e históricos. Dessa forma, uma das maneiras de se apropriar e significar um espaçoé imprimir marcas na paisagem por meio das relações sociais que buscam definir certas identificações às expensas de outras.

Nesse sentido, o culto aos mortos foi uma característica eficaz para a construção de espaços culturais significativos nas sociedades antigas, pois, como nos diz Aleida Assmann (2011), tal prática se caracteriza como um dos mais antigos e difundidos exercícios de recordação social. Essas catacumbas, portanto, guardavam em si a possibilidade da memória, tendo em vista que as produções tumbárias e imagéticas dispostas nelas serviam à manutenção de alguma forma de presença social do falecido e acabavam por assessorar os que ficavam na compreensão da morte.

Igualmente ao estatuto herdado das imagens, os ritos funerários, muito comuns na tradição imperial romana, foram apropriados e exercidos pelos cristãos, como aponta Éric Rebillard (2013). Apesar de a morte ser um acontecimento traumático nessa sociedade, a adoção de cerimônias que transformassem esse evento biológico em um processo social foi largamente difundida entre os greco-romanos. O rito voltado ao enterro de um defunto não só era uma atividade de cunho sociopolítico como se constituía em experiência religiosa e de caridade. No entanto, a igreja cristã primordial não possuía nem estrutura nem permissão para construir espaços funerários exclusivos aos seus fiéis e, assim, os mortos cristãos foram sepultados nos mesmos ambientes catacumbais que seus contemporâneos judeus e gentios. Portanto, aqui consideramos importante sabermos de quais formas os cristãos estavam envolvidos nas práticas funerárias e como essas atividades serviram para a formação de uma identidade religiosa que conferiu a esses lugares núcleos de memória cultural.

Nesse cenário, as experiências religiosas marcaram as paisagens por meio da cultura e de suas manifestações visíveis. Portanto, a análise de nossas fontes estará atenta não somente à produção física e às características estéticas dos registros como também aos aspectos históricos, sociais e culturais dos materiais que dispomos. Para isso, determinamos uma metodologia compreendida nos estudos iconográficos atuais - principalmente por meio das produções de

(16)

Hans Belting (2006; 2010; 2014) – articulada aos pressupostos da Arqueologia da Imagem e seus métodos tipológicos (ALDROVANDI, 2006; 2009), por entendermos a imagem como concretização física das representações humanas, ou seja, documentos materiais constituídos por dimensões simbólicas da cultura. Dessa forma, a identificação e disposição das fontes imagéticas foi sistematizada em categorias de análise a partir de critérios como conteúdo, datação, suporte e origem. Essa divisão orientou a escolha das imagens para a dissertação, assim como em quais capítulos elas serão analisadas a partir de seu conteúdo.

Sobre a coleta de fontes, os materiais visuais que dispomos foram pesquisados, em sua maioria, em algumas publicações que abordam as produções iconográficas cristãs de autores com largas pesquisas e reconhecidos no meio dos estudos clássicos, como André Grabar (1966), Jas Elsner (1990), Robin M. Jensen (2011; 2000), Graydon Snyder (2003), Jeffrey Spier (2007), Alessandro M. Gregori (2014) e Felicity Harley-McGowan (2018), além da consulta aos endereços eletrônicos de quatro catacumbas – São Calisto, Domitila, Priscila e São Marcelino e Pedro – visto que a distância das fontes exigiu esse tipo de atividade. Todas as imagens terão suas referências, assim como suas datações aproximadas, devidamente anunciadas no corpo textual do trabalho. Por fim, os anexos trarão o corpus documental que fundamentou nossa pesquisa.

Quanto à divisão dos capítulos, buscamos desenvolvê-los de maneira que evidenciasse a importância da pluralidade cultural nas identificações cristãs, em sua disseminação, assimilações, práticas, experiências e produções materiais. Dessa forma, o primeiro capítulo desta dissertação, intitulado O cristianismo e a Antiguidade Tardia, irá refletir sobre as condições sócio-históricas da expansão do cristianismo pelo Império Romano, considerando as múltiplas relações sociais entre as matrizes religiosas e culturais que compunham tal cenário. Com especial atenção à Roma, buscamos discutir as influências do modo de vida, da religião e de medidas imperiais no contexto de conversão de novos fiéis e disseminação da religião, em meio a situações de clandestinidade e, depois, de agraciamento político. Além disso, faremos uma análise das condições de produção e uso de expedientes imagéticos nos contextos romano e judaico-cristão, analisando as situações de conflito que tais usos provocaram no cristianismo, a fim de compreendermos as relações internas que ditaram a mensagem espiritual e suas formas de veiculação.

Num segundo momento, o capítulo Espacialidades cristãs no mundo romano busca compreender as questões que envolveram as experiências cristãs na cidade de Roma, principalmente nas catacumbas, observando a constituição estrutural das necrópoles e as funções sociais e espirituais ali desenvolvidas. Por isso, neste capítulo ressaltamos as

(17)

configurações da paisagem urbana de Roma e de como a vinculação de elementos políticos e religiosos constituíram-se como obstáculos à “cristianização” espacial da urbs. Em seguida, focaremos nas catacumbas, os lugares que, inicialmente, os cristãos se apropriaram e utilizaram em larga escala. Analisaremos os processos de vivência cotidiana nas necrópoles e as práticas comumente exercidas nesses lugares, como os sepultamentos, a decoração das tumbas, os registros epigráficos e as visitas regulares dos familiares, por serem atividades que promoviam a formação identitária do grupo e se constituíam como núcleos de memória cultural e religiosa. Assim, procuramos discutir como ocorreu a ressignificação de espaços romanos e, ainda, as experiências fúnebres dos cristãos.

Enfim, no terceiro capítulo, A iconografia cristã: mídias de identificação e memória

cultural, analisaremos a construção do repertório iconográfico cristão, atentando para as

características estruturais das produções, para os significados e para alguns motivos representativos que se repetiam continuamente, os quais dividimos em três categorias: ornamentos, símbolos e motivos ressignificados; narrativas bíblicas e imagens de Cristo, santos e mártires. O capítulo propõe um debate sobre as maneiras pelas quais as imagens passaram a compor a mensagem cristã exercendo papel fundamental na disseminação da religião, tanto pela proximidade com o mundo romano que evocavam quanto pela facilidade expressiva e interpretativa. Desta feita, tais composições serão analisadas e discutidas mediante a compreensão de que se tratavam de importantes instrumentos à comunicação e interação coletiva, portanto, como mídias de identificação religiosa e de memória cultural.

Sobre o corpus documental anexado à esta dissertação, que conta com quarenta imagens, foi elaborada uma ficha iconográfica de categorias fixas, aplicadas a cada uma das peças, independente da disponibilidade de informações do material. Todas as categorias atendem à necessidade de caracterização das fontes em diversos critérios, são elas: código,

título, tema, subtema, suporte, material, dimensões, período, proveniência, descrição iconográfica e referência.

O código de cada imagem pretende facilitar a localização das mesmas ao longo do texto dissertativo e no Anexo, por meio do formato AXX (XX corresponde à numeração). As categorias título e descrição iconográfica referem-se ao material visual especificamente - a algum elemento iconográfico importante do qual nos valemos para a titulação e a descrição e análise de todos os elementos que compõem a imagem, o estilo, suas relações com os textos bíblicos ou com interações artísticas culturais. Os campos de suporte, material, dimensões,

período e proveniência reservam-se ao artefato. A referência diz respeito à bibliografia ou

(18)

No campo tema, estabelecemos os critérios pelos quais as imagens foram agrupadas. No subtema, daremos informações adicionais, se houver. Esses agrupamentos estão de acordo com os critérios de análise da iconografia cristã empregados no texto dissertativo e na própria divisão de capítulos. Assim, para os Anexos, foram definidos quatro temas, a saber:

1. Estrutura catacumbal

O tema comporta imagens das estruturas gerais das catacumbas, como corredores e tipos de tumbas.

2. Ornamentos, símbolos e motivos ressignificados

As imagens elencadas com esse tema referem-se, sobretudo, às representações típicas da arte greco-romana em geral, como formações vegetais ou ambientes idílicos e campestres comuns em espaços funerários da época. As composições apresentam algum elemento ressignificado no contexto iconográfico cristão. Constitui-se em um plano mais simbólico que figurativo.

3. Cenas de narrativas bíblicas

Este tema encerra a categoria figurativa, com sentido narrativo, na qual cenas das histórias bíblicas são representadas, em um único quadro ou em um conjunto deles. Em cada imagem será especificado, no campo subtema, em qual livro, capítulo e versículo bíblico ela pode ser consultada.

4. Imagens de Jesus, discípulos, santos e mártires

Neste tema, elencam-se as imagens que representam Cristo, em diferentes fases e estilos, bem como santos, discípulos e mártires em diferentes situações, isto é, personagens relevantes na história cristã que, por meio de suas representações, formam um princípio icônico.

(19)

CAPÍTULO 01

O CRISTIANISMO E A ANTIGUIDADE TARDIA

Este capítulo busca contextualizar o desenvolvimento do cristianismo, entre os séculos III e IV, e, portanto, discutir a respeito das origens judaica e gentílica da crença. Para isso, iniciamos esta parte analisando as condições políticas, sociais e culturais do Império Romano, incluindo a relação íntima entre política e religião, tendo em vista que foi neste cenário plural e diversificado que as bases cristãs foram lançadas. Em seguida, analisamos os processos de disseminação, conversão, perseguição e patrocínio imperial, buscando dar vistas à trajetória histórica e à formação básica das estruturas político-religiosas do cristianismo, para enfim, discutirmos as razões para a produção e utilização de imagens pelos cristãos, dando atenção aos conflitos que cercaram tais usos, em razão da herança judaica e das tradições que condenavam, veementemente, práticas idólatras.

1.1. Interações culturais no Império Romano

O Império Romano, palco de inúmeras transações político-administrativas, foi o resultado processual de conquistas militares e de um controle legal que favoreceu, no cenário mediterrânico, relações e intercâmbios de valores, comportamentos e tradições. O território abrigava sociedades essencialmente distintas, de maneira que sua constituição tinha nas interações culturais um elemento fundante e criterioso. Por essa razão, torna-se imprescindível considerarmos as intensas trocas e assimilações, próprias de negociações culturais, que atuaram na formação de discursos identitários e na organização dinâmica do Império. Isso implica reconhecer que tais identificações foram construídas por meio de experiências relacionais e que, portanto, foram operacionalizadas em uma pluralidade de situações de inclusão, exclusão, articulação e expressividade.

Nesse contexto diversificado e cambiante, os processos que asseguraram Roma como

domina mundi (senhora do mundo) exigiram o emprego permanente de estratégias que

buscassem formar e manter o sentido de comunidade por meio de práticas e representações fortes e eficazes para promover, em grande escala, a confiança e a seguridade das relações entre o governo imperial e as sociedades dominadas, sem que fosse necessário usar de extensa força militar. Dessa forma, como assinala Regina M. C. Bustamante (2006, p. 111), por tamanha agência, tais estratégias não se resumiram apenas ao controle econômico e postularam medidas

(20)

que estimulassem a “identificação parcial em termos de autoimagem e ação cooperativa”. Essas ações demandavam a partilha de valores e modos de vida, a articulação de instituições e hábitos e a incorporação de novos significados às realidades sociais imperiais, que não só orientaram experiências como foram, sobretudo, simbolicamente marcados.

É nesse sentido que Pierre Grimal (2009) afirma que o Império Romano não teria mantido toda a vastidão de seu território ou mesmo alcançado a admiração que inspirava se tivesse se limitado a impor forçosamente aos habitantes suas leis e organização política. Por isso, é interessante considerarmos que uma das principais razões para a vastidão e grandeza de Roma tenha residido na disseminação de sua cultura e modo de vida e, ainda, na condição de conseguir integrar os elementos locais dos povos conquistados à sua dinâmica, ainda que em seus próprios termos.

Esse processo de assimilação e disseminação se operou ao mesmo passo que outros mecanismos gerais do Império, aqueles que se voltavam à administração e ao controle das áreas sob domínio mediante trocas de poder e riqueza. Segundo Norma Musco Mendes (2007), isso se dava por meio de relações entre o centro, as áreas integradas, as semiperiferias e as periferias, as quais foram criadas e reproduzidas num contexto de integração exploratória e de diversidade cultural. Destarte, o sistema administrativo que gerenciava as diversas áreas de negociação não formou uma economia centralizada, mas orientou-se pelo desenvolvimento das potencialidades locais, não só em termos econômicos, mas inclusive em níveis culturais, tendo grandes centros articuladores como Roma, Alexandria e Antioquia, por exemplo.

Processualmente, a conquista de novos territórios e a consequente expansão de Roma significaram uma mudança gradual nas formas de exploração dos bens provinciais, mas também nos padrões das relações sociais, por meio dos quais as expressões de poder, interação e identidades foram reproduzidas e legitimadas. Esses procedimentos estão inclusos e compõem aquilo a que historicamente se chama de Romanização e devem ser compreendidos em uma perspectiva que envolva uma dinâmica de assimilação, conflito e negociação. Isso porque se faz necessário tomar esses arranjos dando ênfase à resistência à romanização por parte dos povos dominados que, por sua vez, acabaram por assimilar, em diferentes níveis, aspectos comuns ao modo de vida romano, articulando isso às suas características próprias e específicas, como aponta Bustamante (2006).

Segundo David J. Mattingly (1997), a dinâmica de ampliação territorial teria se dado de acordo com a crescente necessidade de acumulação de bens comercializáveis, e a formação do Império ocorreu de acordo com a constituição de uma rede de contatos que mobilizava recursos controlados por uma área centralizada, porém, construía-se mediante um contexto de

(21)

interdependência. Por essa razão, a dominação político-militar não teria significado a incorporação completa dos valores e práticas romanas por parte dos dominados. Apesar de as elites locais terem tido interesse em apropriar-se do estilo de vida romano como fator importante para a participação nas relações de poder, as estruturas tradicionais locais permaneceram em maior ou menor intensidade.

É nesse sentido que o conjunto de categorias culturais e políticas que definiriam o que era ser romano, ou seja, a concepção de identidade basilar romana, ao qual chamamos de

Romanitas, deve ser considerada em seu caráter heterogêneo e cambiável, no qual as relações

entre as partes envolvidas se davam em regime de negociação. Das interações econômicas aos arranjos religiosos, a dinâmica de encontro e assimilação foi uma categoria real e ativa por todo o Império, sendo, aliás, um dos fatores que propiciaram a manutenção e controle do território. Contudo, não sendo nossa intenção desenvolver uma análise profunda das formas de romanização e de suas especificidades, nos importa, por hora, compreender que as articulações sociais empreendidas tomaram formas híbridas e se desenrolaram em regimes de fronteira, isto é, em situações que favoreceram a comunicação e as trocas culturais, de maneira que as identificações produzidas não existiram por si mesmas como entidades monolíticas, mas se fizeram eminentemente dinâmicas, com interação e influências recíprocas.

Sendo assim, ao falarmos das relações imperiais, não é possível dispormos de termos binários que arranjariam lados incomunicáveis e barreiras intransponíveis. Antes disso, é mais plausível pensarmos que, além da diversidade cultural inerente à formação do Império, o período ao qual voltamo-nos se caracterizou por abrigar continuidades e transformações em áreas estratégicas, como a política, a economia e a religião, e portanto, caracteriza-se por ser um largo tempo histórico que, apesar de ter portado aspectos legitimadores herdados da tradição que lhe originou, agregou novas criações e promoveu diversos tipos de relações socioculturais e políticas na passagem dos séculos II ao VIII.

Ainda que seja necessário estabelecer que as mudanças e permanências características da Antiguidade Tardia não tenham ocorrido da mesma forma nem em igual velocidade nas partes ocidental e oriental do Império, essas mutações afetaram toda a dinâmica da vida social romana, indo da estrutura administrativa às práticas religiosas. Nesse ínterim, de forma que a estrutura das experiências políticas, desde a monarquia, esteve intimamente ligada aos cultos politeístas, não é possível tratar de mudanças num âmbito sem referenciar o outro, quando objetivamos compreender o cenário histórico-cultural. Em Roma, o politeísmo estava por toda parte: tomava lugar no ambiente domiciliar assim como no público, estabelecia-se em momentos de lazer e em ambientes funerários e exercia influência em assuntos particulares bem

(22)

como na administração imperial. Por isso, não é de espantar que a grave crise política do século III tenha estimulado alguns imperadores a buscar na religião uma forma de restituição do equilíbrio social romano.

As divindades estavam sempre presentes no cotidiano das pessoas assim como na vida urbana, em templos, teatros, praças e ruas, e as relações entre eles e os humanos se davam, quase sempre, por meio de ações rituais. Assim, os deuses eram como cidadãos romanos e participavam de triunfos e derrotas, compartilhando da vida em sua totalidade. Em linhas gerais, a religião romana, a exemplo de outras, era algo eminentemente social. De acordo com Cláudia Beltrão Rosa (2011), a religio significava um conjunto de regras e ritos objetivos que promoviam o bem-estar coletivo do Império e atuavam, inclusive, nas formas como os romanos compreendiam e definiam o espaço habitado.

Os deuses tinham seus costumes, suas qualidades e seus defeitos, e essas características eram comentadas, pois eles faziam parte do mundo, apesar de se esconderem dos olhares humanos. O imaginário social era constituído pela concepção de gerações de que a comunidade divina era poderosa e deveria ser respeitada por isso, e era obrigação dos homens venerá-la e manter, assim, a ordem social.

Dessa forma, a religião se constituía como um sistema de concepções expressas em formas simbólicas e rituais, pelas quais os romanos se comunicavam e buscavam manter o ordenamento da sociedade em um equilíbrio recíproco, o qual exigia da comunidade humana reverência e respeito às divindades em prol da manutenção da concordia. Assim, as práticas religiosas se ligavam, primeiramente, à comunidade, vinculando-se ao indivíduo somente na medida em que este fazia parte do coletivo. Entre os antigos romanos haviam duas etimologias diferentes para o termo religio:

eles tanto o relacionavam a religare (‘ligar’) quanto a relegere (‘retomar, controlar’; ‘zelo religioso’). No primeiro caso, sublinhavam os elos entre homens e deuses, ou seja, a religião como comunidade com os deuses; no segundo, o zelo da observância em que a religião consistiria em um sistema de obrigações, induzido por esta comunidade, para a manutenção da pax deorum (paz com os deuses), que correspondia à ideia fundamental de que o homem, a sociedade, o mundo e os deuses viviam em harmonia (BUSTAMANTE, 2011, p. 01).

Portanto, além de ser onipresente, o politeísmo greco-romano era baseado na obrigação coletiva de cumprir com as obrigações religiosas para com os deuses a fim de manter a ordem social, destarte, todo ato religioso era um ato comunitário. Como salienta Bustamante (2011), o politeísmo fundamentava-se na obrigação geral de executar os ritos prescritos de forma correta, isto é, numa “ortopráxis”, na qual não só os cidadãos estavam inseridos como a

(23)

própria instituição do Império. Logo, os rituais marcavam várias celebrações e eventos públicos.

Cláudia B. Rosa (2006) afirma que, nesse contexto, em ritos públicos ou privados, dois fatores eram essencialmente importantes: primeiro, os ritos deviam ser executados seguindo regras e tradições específicas; segundo, a habilidade de execução dos sacrificantes que possibilitava a comunicação entre humanos e divindades. Nesse ínterim, a religião se realizava em vários tipos de celebrações ritualísticas, como nas festividades anuais em honras divinas, nas comemorações pela memória dos mortos (como a Parentália e a Lemúria), nos jogos e performances teatrais e, inclusive, naquelas de ordem secular, como assembleias, eleições e censos. A própria fundação da urbs romana se insere neste contexto, pois teria ocorrido por um processo ritualístico que instituiu o pomerium4 e a constituiu como uma oferenda espacial aos deuses (BUSTAMANTE, 2001).

Por ser vinculada à comunidade e à manutenção da seguridade e ordenamento social, a religião esteve profundamente articulada à política em vários períodos históricos de Roma, de tal modo, que “os agentes políticos romanos contavam com a religião e com os deuses como fatores importantes na determinação dos eventos e na garantia de suas reivindicações de autoridade e comando”, como pontua Rosa (2006, p. 145). De acordo com essa historiadora, isso intensificou-se com as iniciativas religiosas augustas de colocar sob sua responsabilidade a construção de novos templos e a restauração de tantos outros, e isso, em termos práticos, significou uma articulação entre os poderes imperiais e o universo religioso. Além disso, o desenvolvimento de cultos imperiais vieram a promover a vinculação da religião à figura augusta. Houve o crescimento de concepções que defendiam a apoteose de alguns imperadores, que ocorria apenas depois da morte, ao ponto de terem ocorrido, no Senado, testemunhos que afirmavam a visão da alma do imperador subindo aos céus em forma de águia (p. 150).

Tal articulação serviu aos propósitos políticos e expansionistas romanos, em vários graus. De acordo com Mary Beard, Jonh North e Simon Price (1998), aqueles que estavam sob influência de Roma em termos cívicos, também estavam mais próximos de seus deuses. Isso não quer dizer que os romanos obrigavam as províncias e demais áreas a cultuar as deidades do panteão greco-romano, pelo contrário, o Império não impôs, sistematicamente, seus próprios

4 De acordo com Regina Maria C. Bustamante (2001), o pomerium tinha uma existência material, uma presença

física. Foi progressivamente alargado durante a República e, no período imperial era definido por blocos de pedra, de 2m x 1m, numerados e em sequência. Esses marcadores enunciavam as benesses dos imperadores que os mandavam erigir. Nos tempos de crise, eram sempre reforçados por meio de rituais solenes de purificação, celebrados pelos pontífices que rodeavam o pomerium, mantendo, assim, o aspecto simbólico do espaço.

(24)

deuses nem condenou os cultos de seus súditos, no geral. Segundo os autores, houve, de fato, uma integração de diferentes divindades e de seus cultos, mas isso não ocorreu de forma homogênea, tendo áreas pelo Império que não assimilaram seus deuses a outros. Condição parecida se deu, inclusive, com os cultos imperiais, que não foram disseminados e executados com a mesma intensidade pelo território imperial.

Em termos gerais, os romanos não descartavam os deuses de outros povos, pois todas as deidades eram tidas como verdadeiras, mesmo aquelas dos estrangeiros. Partia-se das possibilidades de que os estrangeiros cultuavam divindades que os greco-romanos não tinham conhecimento ou adoravam os deuses já conhecidos, mas traduziam os nomes para suas línguas (VEYNE, 2008). Os deuses, por mais excêntricos que pudessem parecer, deveriam ser respeitados e honrados; por exemplo, os oficiais romanos que iam enviados às províncias, tinham o cuidado de depositar oferendas às divindades locais, pois eram elas que enviavam o bom tempo para a região e podiam ser responsáveis por catástrofes, caso fossem renegados. Nesse sentido, os cristãos não causaram escândalo maior por terem seu próprio deus, mas por negarem e desprezarem os deuses de todo mundo.

Mesmo parecendo seguro concluir que o Império romano gozou de tolerância religiosa, Cláudia B. Rosa (2006) nos alerta para a questão de que os romanos concediam esta tolerância para deuses e cultos que não demonstrassem perigo ao ordenamento social, enquanto eram intolerantes com situações que considerassem perigosas, como com grupos que se recusassem a realizar sacrifícios às deidades greco-romanas ou as tomassem como seres malignos, ou ainda, se instituíssem uma forma de culto muito diversa às já conhecidas e tradicionais5.

Por todo o território imperial, as autoridades políticas promoviam uma variedade de práticas religiosas; como apontam M. Beard, J. North e S. Price (1998), era uma regra estabelecida que os governadores e outros agentes favorecessem divindades greco-romanas em vez das nativas, e a isso se incluía o dever de realizar sacrifícios em honra às divindades de acordo com as tradições imperiais, assim como a obrigação anual dos governadores de assegurarem a execução de sacrifícios e celebrações ao augusto e ao Império.

Em um cenário de dominação e de manutenção do controle social, atividades como essas eram essenciais para reforçar posicionamentos, e ajustar condutas, por meio de rituais de poder que se estruturavam em representações simbólicas e exprimiam determinadas

5 Sobre isso, Rosa expõe, como exemplo, as tensas situações entre o Império e o culto a Baco, que acabou por ser

(25)

identificações, publicamente reivindicadas. Por isso, o Império usou e promoveu uma série de outras representações que permitissem a comunicação sociocultural e estimulassem a propaganda visual do governante, operando, dessa forma, pela manutenção do Império. Nesse cenário, as imagens, no mais diversos tipos de suporte, foram instrumentos largamente empregados para marcar simbolicamente o poder e fomentar a identificação dos provinciais com os “romanos”.

A cultura imperial romana foi essencialmente plural e, cônscia das possibilidades que as imagens ofereciam, obteve nelas um meio de inserir grupos social, linguístico e culturalmente diferentes à dinâmica do Império6. Em Roma, as imagens figuravam nos diversos espaços de convivência, nos banhos, teatros, ruas e casas. A magnificência das representações circulou também entre as inúmeras províncias, de uma ponta a outra, reforçando as especificidades do estilo de vida romano. Como argumenta Jas Elsner (1998), as imagens, juntamente aos rituais, constituíram-se em um poderoso instrumento de romanização, agregando diversas comunidades pelo território imperial em arranjos simbólicos expressados pela mostra visual de costumes, comportamentos e crenças

De forma geral, de acordo com Paul Zanker (2002, 2008) e Elsner (1998), o aparato imagético auxiliava na formação e estabelecimento de uma identidade social coletiva e também definia questões de condição social, religiosa e étnicas. Compuseram a forma pela qual os mitos, os imperadores e as próprias divindades eram reconhecidos, e influenciaram, ou mesmo moldaram, a maneira como as pessoas imaginavam seus deuses. Nesse sentido, Robin M. Jensen (2000) considerou que o politeísmo greco-romano, assim como a própria sociabilidade imperial, tinha no uso de imagens um importante instrumento para sua existência, visto que a comunicação visual ao longo dos vários séculos de dominação funcionou como uma afirmação permanente de seus ritos, comportamentos e valores, de forma a assegurar seu domínio e identificação.

6 Entretanto, a formação do que hoje consideramos como produção figurativa romana foi sendo construída a partir

do profundo contato com o mundo helenístico grego e dele nutriu-se fundamentalmente. Segundo Zanker (2008), no curso da expansão territorial pelo oriente grego ocorreu um processo que transformou radicalmente o modo de vida dos romanos. A adoção de determinadas práticas própria dos helenos, como o uso de indumentos luxuosos, ou ainda a assimilação da filosofia, poesia e arte provocaram profundas mudanças no sistema de valores sociais e na consciência de si, ao menos entre as classes mais abastadas inicialmente. Ainda de acordo com Paul Zanker, a linguagem imagética romana não surgiu antes do quarto século a.C., quando da sistemática expansão imperial. Antes disso, as produções romanas eram essencialmente advindas das cidades etruscas e itálicas. Somente com o que o autor considera como a helenização romana é que as funções e as características dos produtos visuais vão tomando a arte grega como um núcleo figurativo e dele absorvendo modelos, técnicas e empregos.

(26)

Os motivos imagéticas, os modelos e a disseminação das obras formaram maneiras de estabelecer normas sociais, em diferentes níveis, incluindo as relações entre camadas socioeconômicas, visto que houve uma básica transição de valores das classes dominantes para a linguagem geral de imagens imperiais. Segundo Tonio Holscher (2004), a conquista distintiva da arte romana se constituiu na busca por satisfazer tanto as exigências de uma elite educada quanto as necessidades da população do império como um todo.

Ainda que seja clara a influência da cultura e repertório figurativo helenístico nas produções romanas, é necessário estabelecermos que Roma não empreendeu cópias dos modelos gregos, no sentido específico da palavra. A assimilação desses fatores ajudaram a compor um diferenciado estilo de vida em Roma, que passava à condição de potência imperial e que precisava se afirmar como cidade helenística vitoriosa, de maneira a mostrar que suas conquistas se davam não somente em nível territorial, mas também cultural, como aponta o pesquisador de arte romana Paul Zanker (2008).

Em Roma, os rituais integravam as experiências cotidianas e, dessa forma, a visualidade era fator necessário para o funcionamento da vida social. O vasto uso de composições imagéticas que se disseminou pelo Império encontrava abrigo nas festividades públicas, nas instituições e templos, mas também no interior das casas particulares. Os padrões estéticos gregos foram incorporados pelos romanos e levados às cidades e às villae, que gradativamente tornaram-se espaços de ostentação do luxo e núcleos de representação da vida aristocrática. Segundo Zanker (1992), a vida contemplativa privada em meio a uma “decoração cenográfica” passou a ilustrar o otium das camadas mais abastadas.

A condição de potência imperial afetou não somente as relações exteriores de Roma como o relacionamento entre arte e política, que tornaram-se inseparáveis, visto que uma era instrumento da outra. No âmbito público, os líderes cívicos não pouparam esforços para promover seus interesses por meio de aparatos visuais, e por isso é importante que consideremos os objetivos e funções dessas produções artísticas.

Nos meios públicos, a arte imperial se fez presente principalmente pelas inúmeras imagens dos imperadores, que figuravam em diferentes poses e situações, com a tendência de representá-los como indivíduos possuidores de qualidades sobre-humanas. Prezava-se pelo retrato, de forma que as características faciais estivessem o mais parecidas possíveis, para que tal indivíduo fosse reconhecido facilmente; já o esquema corporal era variável, mas com modelos consagrados, assim, quando um imperador era destituído, e sua memória tinha de ser destruída (damnatio memoriae), poderia a cabeça ser descartada ou reformulada para representar os traços de seu sucessor (ZANKER, 2002).

(27)

A arte romana, tendo bebido da fonte grega, não se desenvolveu em uma única direção nem buscou uma unidade objetiva. Segundo Holscher (2004), houve uma variabilidade essencial da linguagem visual romana, no que tange aos motivos representacionais e aos fins aos quais as imagens atendiam, que atravessou a definição de condição social entre as elites passando pela demarcação da onipresença do Império. Assim, o discurso iconográfico se constituía como um caminho acessível e válido ao sistema de comunicação imperial. Dado que as composições imperiais tinham por objetivo celebrar o soberano e seus feitos, o esquema de representação dos imperadores atendia a algumas convenções, como aponta Paul Zanker (2008); a exemplaridade como cidadão, magistrado ilustre, era demostrada pelo uso da toga, já a túnica curta com o saiote e a armadura representavam suas virtudes militares, e ainda havia a tipologia das estátuas equestres, nas quais buscava-se apresentar sua auctoritas sobre os bárbaros e seu poder diante aos inimigos.

Mas a edificação de estátuas ou os afrescos dos imperadores não foi uma atividade realizada apenas pelo poder público, pois o patrocínio de alguns indivíduos foi também uma forma de promover o alcance da autoridade imperial e de afirmar publicamente a condição social do patrocinador. De fato, ainda de acordo com Zanker (2002), erigir imagens em homenagem ao soberano, ou ao menos uma inscrição votiva, foi uma maneira de chamar atenção para si, pois demonstrava lealdade, aproximação com a casa imperial, ou mesmo a condição financeira para tal atividade. Assim, foi comum entre os romanos de diferentes estratos sociais figurar ao lado do imponente Príncipe.

Outro modo de reverência foi a construção de edifícios para o culto em honra ao soberano, que se constituiu como uma das formas mais eficazes de difusão da linguagem visual imperial, além de ter contribuído fundamentalmente para compor a paisagem urbana de Roma e suas províncias. A deferência ao imperador, vinda de diversos seguimentos – assembleias provinciais, prefeituras ou benfeitores individuais – constituía-se também como uma representação do que era ser cidadão no império; realizar os ritos e participar da dinâmica social servia principalmente para definir o que era ser romano por excelência (ELSNER, 1998).

Contudo, o poder de alcance da iconografia imperial derivava não só do impacto visual dos grandes monumentos públicos, como da disseminação e repetição dos motivos figurativos no âmbito privado, condição que tornava vários motivos representativos familiares (HOLSCHER, 2004). Nesse contexto, as composições que apresentavam a natureza foi bastante comum e, junto às cenas mitológicas, formavam a maioria das imagens encontradas nas habitações (VEYNE, 2009).

(28)

Os romanos viveram junto aos seus mitos. Os tipos dos deuses mais presentes na iconografia doméstica eram as figurações de Baco e Vênus, ou mesmo o caso amoroso entre esta e Marte. De forma geral, segundo Paul Veyne (2009), os habitantes do Império encontraram nas narrativas mitológicas situações próprias da vida – o amor, as festas, as lutas, o luto – que ofereciam um modo de compreender as experiências. Assim, a metáfora mítica constituía-se em um meio pelo qual os romanos reconheciam valores comuns e lidavam com temas sociais cotidianos.

Dessa maneira, durante o período tardo-antigo, as imagens míticas permaneceram como um elemento essencial na decoração de casas, como forma de responder aos diversos interesses dos seus contemporâneos. Aludindo ao mundo mítico, a arte antiga era própria da religião e por meio dela os indivíduos reconheciam as deidades. De acordo com Alain Besançon (1997), os greco-romanos representavam os deuses de tal maneira que não se podia distingui-los de sua representação. Os espectadores reconheciam a divindade através de seus atributos, ornamentos e características graças à redundância de esquemas consagrados que se disseminavam em diversos ambientes. Para Besançon, eram essas representações que promoviam o imaginário sobre a glória e o poder das deidades, pois dando a elas um corpo terreno, podiam então demarcar a individualidade de cada um. Nesse sentido, as imagens míticas, tanto no âmbito privado como público, definiam nome, corpo e atributo e possibilitavam a partilha da identidade social entre os romanos.

Sendo assim, a imagem era fator basilar tanto à sociabilidade romana quanto ao culto politeísta, ainda que este não fosse centrado nela, como lembra Robin M. Jensen (2005). Dos soberanos aos libertos, elas permearam a vida social e tornaram-se elementos eminentemente integrantes do mundo romano. Celebrando instituições, indivíduos ou deuses, serviam para demarcar condições de classe, de status, assuntos étnicos e, sobretudo, auxiliavam no estabelecimento da identidade social dos romanos e de seu modo de vida.

Como a arte e a política estiveram intimamente articuladas, as composições passaram a referenciar, também, as instabilidades políticas que assolaram o século III, visto que como veículos de comunicação e do fausto imperial, mesmo durante a chamada anarquia militar, as imagens não pararam de ser produzidas e a comunicação visual foi, inclusive, utilizada nas tentativas de promover este ou aquele imperador (VEYNE, 2008). Por estes idos, Roma passou por uma série de instabilidades internas e externas que ameaçaram severamente a integridade e coesão do mundo romano. Este período, que grosso modo vai do ano de 235 ao reinado de Diocleciano, em 284, foi marcado pela aclamação e governo de 17 imperadores, pela participação efetiva de algumas legiões militares, por relações adversas com o Senado e por

(29)

administrações conturbadas, tanto pelas disputas políticas internas como pelas investidas bárbaras nas fronteiras.

O século III marca o advento da antiguidade tardia e do conjunto de mudanças sociais que começam a tomar uma forma mais nítida. As cidades, que foram por muito tempo o motor da expansão romana, mantiveram-se como centros administrativos, mas reduziram gradativamente a importância de serem o centro das decisões políticas. De acordo com Peter Brown (2012), o aumento de impostos e a diminuição dos benefícios políticos levaram os senadores e demais famílias aristocráticas a migrarem para as regiões rurais do território, onde construíam suas villas e podiam controlar diretamente consideráveis contingentes de pessoas sob seu poder. Mas, por outro lado, como pontua Paul Veyne (2010), esse afastamento aristocrático da vida político-administrativa urbana abriu espaço para que outros grupos sociais conseguissem entrar na cena política, configurando uma espécie de mobilidade social que proporcionou que indivíduos menos favorecidos pudessem ter alguma visibilidade histórica, como aqueles vindos de comunidades cristãs que passaram, então, a apresentar certo destaque dentro da dinâmica social do Império, ainda que em situações bem adversas.

Segundo Renan Friguetto (2012), desde este período há profundos conflitos entre os príncipes e o Senado, e as disputas por poder permaneceram por todo o século, apresentando diferentes condições de interação e influência entre as duas instâncias administrativas de acordo com quem estivesse no trono. Junto a isso, o mal inflacionário que vinha desde o século anterior constituía um sério entrave econômico sem solução satisfatória. Neste mesmo cenário, deve ser inserido as condições alarmantes nas fronteiras devido às investidas bárbaras em diferentes regiões, da Gália à província romana da Mesopotâmia o Império enfrentava o perigo de perder territórios e, consequentemente, o controle sociopolítico.

As instabilidades política e econômica foram o pano de fundo das sucessivas mudanças imperiais seguintes. Por vários anos foram essas situações que se sucederam com diferentes intensidades e sem soluções ou mesmo controle suficiente para evitar repetições e recrudescimentos, como assinala Peter Brown (2012). E as constantes aclamações militares de chefes legionários, que levaram a governos de durações diferentes e, por vezes, com propósitos adversos, não resultaram em resoluções gerais.

Nesse cenário conturbado, compreendido entre os terceiro e quarto séculos, como tentativas de aplacar as instabilidades, os romanos voltaram-se, dentre outras coisas, à religião e à benevolência dos deuses, e então, foram postas em exercício medidas para retomar mais rigorosamente práticas tradicionais do culto politeísta, como os sacrifícios coletivos. Exemplo disso, como aponta o arqueólogo Alessandro M. Gregori (2014), é o imperador Décio

Referências

Documentos relacionados

Figura A.164 – Custos de Exploração por metro cúbico de água faturada em função do número médio de trabalhadores para EG de gestão direta por grau de fiabilidade dos dados.

Este trecho mostra claramente que a repressão ao abuso, tornada concreta por análise casuística do juiz, em atenção justamente à finalidade social do direito, à boa-fé e aos

Este dado diz respeito ao número total de contentores do sistema de resíduos urbanos indiferenciados, não sendo considerados os contentores de recolha

29 Table 3 – Ability of the Berg Balance Scale (BBS), Balance Evaluation Systems Test (BESTest), Mini-BESTest and Brief-BESTest 586. to identify fall

Pinturas, depilatórios, unguentos mamilares, colorantes para o cabelo e até pomadas à base de vidro em pó (que, aparentemente, permitiam simular a virgindade) (Braunstein, 1990),

Foi a primeira vez que estive dentro da organização de um torneio de futebol de rua e com miúdos desta idade (6 a 11 anos). De uma forma geral este torneio correu bastante

Os resultados mostraram que a combinação que apresentou os melhores resultados em termos de qualidade dos bolos (maior volume específico, maior umidade do miolo, menor