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Nascido na Galileia, em um ambiente rural, desde cedo o cristianismo transpôs sua origem campestre e se disseminou para as cidades da Síria-Palestina, da Ásia Menor, alcançando posteriormente a região dos Bálcãs e, então se expandindo por todo o Ocidente, de acordo com as missões empreendidas pelos apóstolos Pedro e Paulo (HORSLEY, 2004). Gradativamente, várias regiões do Império foram recebendo o testemunho cristão, em um movimento que começa com os primeiros apóstolos7 e prossegue através de outros fiéis que percorriam cidades e aldeias imperiais pregando a “boa nova”. Contudo, o cristianismo foi uma crença gerada e gestada em seio judaico e, portanto, dele nutriu-se essencialmente, apropriando não só as leis testamentárias como a própria herança de ser a continuidade do “reino de Deus”. Por sua vez, o judaísmo antigo não foi um bloco monolítico, tendo em vista que era composto de várias seitas com diferenças que podiam ser notadas, mais evidentemente, entre os judeus da Palestina e aqueles conhecidos como “judeus da diáspora”, os quais tinham se espalhado por regiões mediterrânicas. Segundo o Paul Johnson (2001, p. 21), que em suas obras busca explicitar o papel do judaísmo na história cristã, enquanto os judeus da Judeia, principalmente os de áreas semijudias, tinham tendência maior de serem pobres, fundamentalistas, intolerantes e xenófobos, os da diáspora, no geral, tendiam a ser ricos,

7 De acordo com o teólogo Franco Pierini (1998, p. 49), as missões evangélicas dos apóstolos foram: “Tiago de

Zebedeu, filho de João, e Tiago de Alfeu (este último provavelmente diferente de Tiago o Justo, parente de Jesus e chefe da comunidade judeu-cristã de Jerusalém) pregam sobretudo na Palestina, junto com o apóstolo Matias. André, irmão de Pedro, evangeliza de maneira especial as regiões do Mar Negro (e, por isso, está na origem do patriarcado de Bizâncio-Constantinopla); Filipe, as da Ásia Menor; Bartolomeu, a Armênia e a Pérsia; Judas Tadeu, a Síria e a Mesopotâmia; Simão, a África setentrional; Mateus a Etiópia; Tomé, a Índia; e João, as regiões em torno de Éfeso. Os testemunhos, tanto literários, quanto arqueológicos, referentes à atividade desses apóstolos, não apresentam, porém, a mesma confiabilidade dos relativos a Pedro e Paulo, à exceção, talvez, de João.”

cosmopolitas, “bem ajustados às normas romanas e à cultura helenística, alfabetizados, falantes de grego e abertos a ideias”.

Sendo assim, o judaísmo antigo apresentava, pelo menos, duas condições conflituosas que acabariam por permear a trajetória cristã; como nos informa Marcel Simon e André Benoit (1987), alguns judeus tendiam à intransigência religiosa de absoluto rigorismo das tradições, enquanto um outro grupo mantinha a disposição de receber os gentios convertidos em prol da adoração do Deus de Israel. Tais posturas serviam aos perenes embates comuns no meio judaico e se inseriam, consequentemente, nas formas pelas quais os judeus se relacionavam com os demais povos, principalmente com aqueles de crença politeísta. Havia um perigo salutar que envolvia as práticas idólatras e desregradas dos gentios, cuja a natureza profana deveria ser evitada quotidianamente pelos judeus8. Entretanto, de acordo com Mônica Selvatici (2006, p. 93), os não judeus tinham permissão de “frequentar a sinagoga, oferecer sacrifícios no Templo de Jerusalém e, em muitos casos, frequentar a casa dos judeus que, protegidos em seu próprio meio, não corriam o risco da má influência moral e da idolatria”.

Sendo o “povo eleito”, os judeus acreditavam na vinda Messias9, aquele que faria a

restauração nacional. Para os cristãos, Jesus era a realização desta promessa. E foi com o discurso que levava a mensagem de Cristo e seu sacrifício universal, que o proselitismo cristão se espalhou pelo Império, tendo como primeiros conversos aqueles que provinham da religião judaica, os quais receberam o nome de judeus cristãos pela tradição literária e pela historiografia. Tal grupo era composto por crentes de língua hebraica ou aramaica que entendiam a mensagem de Jesus segundo os princípios judaicos, com severa atenção aos tempos e lugares sagrados, bem como às regras de comportamento e convivência; tal tendência se espalhou pela Judeia e chegou cedo a Roma, onde a comunidade judaica era numerosa e ativa e mantinha relações frequentes com a Palestina. Mas, segundo Franco Pierini (1998), a língua

8 O livro do Jubileus (22:16) possui um trecho que retrata a opinião do(s) autor(es) sobre a condição profana dos

gentios, em uma passagem que relata a benção de Abraão a seu neto Jacó. Abraão condena os povos cananeus como poluidores da terra santa, e orienta Jacó a não se associar a eles, sob o perigo de profanação e abominação: “Separe‐se dos gentios,/ E não coma com eles,/ E não pratique atos como os deles./ E não se associe a eles,/ Porque os seus feitos são poluídos,/ E todos os seus modos são contaminados, e desprezíveis, e abomináveis”. Apud SELVATICI, 2006, p. 88-89.

9 “Messias é a palavra judaica para ‘ungido’. No Antigo Testamento, o rito cerimonial da unção servia para conferir

certos cargos superiores ou, em outros termos, elevar alguém à dignidade de sumo sacerdote, rei e também profeta. Sua tradução para o grego, Cristo, tornou-se muito cedo, entre os discípulos, um nome próprio ligado a Jesus e acabou por dar o nome à devoção que se desenvolveu à figura dele. Esta devoção envolvia tanto a crença em Jesus como o salvador, o redentor, político que viria libertar Israel do domínio estrangeiro (o Messias-rei, descendente de Davi), como a crença em sua origem divina, que estava associada à compreensão de que ele ressuscitara dos mortos. Esta última prevaleceu e levou à noção de Jesus como o ‘filho de Deus’” (SELVATICI, 2006, p. 02).

e a cultura sempre foram os primeiros elementos de distinção no interior das comunidades cristianizadas, pois implicavam no grau de abertura para novas ideias e convertidos, e assim, outros grupos cristãos também expandiram-se pelo Império.

Ao mesmo tempo, se formou uma segunda tendência, chamada por Pierini de heleno- cristãos, e por Selvatici (2006) de judeus helenísticos, constituída por judeus de língua grega e provenientes da diáspora, que manifestavam certa liberdade em relação à lei mosaica e ao Templo por enfatizarem as críticas que o próprio Jesus havia feito sobre o ritualismo exagerado. Esta tendência ainda é uma ponte para o terceiro grupo de fieis, aqueles que provinham do mundo gentílico e não-circuncidado, mas simpatizantes do judaísmo e “tementes a Deus”, os étnico-cristãos (PIERINI, 1998, p. 54). Na verdade, tal abertura foi dada, inicialmente, por Pedro, que entre os anos 40 e 41 em Cesareia Marítima, batiza o centurião Cornélio e os demais de sua casa (At. 10:1-48).

Durante esses mesmo anos, comunidades de gentios convertidos se formam em Antioquia, onde pela primeira vez os seguidores de Jesus são chamados de “cristãos” (At. 11:26). Sobre este novo rumo em direção aos “não-circuncidados”, o judeu helenístico Saulo, que mais tarde se identificará como Paulo (seu nome romano), foi com certeza uma das mais importantes personagens da história cristã. Paulo não só viajou em missões evangelizadoras por várias regiões, entre as quais ia fundando comunidades de novos crentes, como estabeleceu uma dinâmica de comunicação com elas que perdurou até sua morte e mesmo depois dela. Isto, porque uma das formas mais eficazes de interação foi a prática de envio de epístolas às ekklesiae fundadas, fator que demonstrava a autoridade de Paulo e promovia a sustentação espiritual das próprias comunidades, assim como a manutenção da ordem socioreligiosa entre os prosélitos. Mas além das epístolas, também foi comum, nos primórdios cristão, o envio de homens de confiança para liderar as comunidades mais distantes, a exemplo de Barnabé, que no início dos anos 40 foi o emissário da Igreja de Jerusalém enviado a Antioquia para confirmar a validade da conversão de gentios (At. 11: 22-24).

No entanto, a aceitação de gentios foi motivo de variados debates e conflitos entre os judeus cristãos, que divergiam sobre quais as condições necessárias para a anuência desses conversos. Os textos bíblicos de Atos dos Apóstolos e da Carta aos Gálatas mostram as divergências entre os que acreditavam que os gentios, de forma a compartilhar as bênçãos escatológicas do povo de Israel, deveriam tornar-se primeiramente judeus, de fato e de direito; e aqueles que acreditavam que a fé em Cristo seria suficiente para a salvação, não sendo necessário, portanto, rituais como a circuncisão para os convertidos.

No chamado concílio de Jerusalém (fim dos anos 40 ou início dos anos 50 do século I), no qual os “pilares” Tiago, Pedro e João se reuniram, ficou definido que aos cristãos oriundos do mundo gentílico não seria obrigado a circuncisão, sendo apenas colocadas algumas regras de conduta a serem seguidas, como as abstenções “das carnes imoladas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas e da imoralidade sexual” (At. 15: 29)10. Essa determinação, junto com a afirmação de Paulo de que a ele seria confiada a evangelização dos não circuncidados, enquanto a Pedro caberia a dos circuncidados (Gl. 2: 7), cumprem o propósito de legitimar a presença maciça de não judeus nas comunidades cristãs.

Com essa decisão conciliar, confirmou-se que o “cristianismo baseia-se na ‘circuncisão do coração’, recupera-se o significado mais profundo da fé de Abraão, faz-se a ligação com os chamados ‘mandamentos de Noé’, ou seja, com a aliança válida para todos os homens (At. 15:4-29; Gl. 2: 1-10)” (PIERINI, 1998, p. 56). Tais diretrizes não significaram a homogênea aceitação de gentios nem convivências absolutamente calmas, mas serviram, de fato, ao aumento gradativo de comunidades espalhadas pelo território imperial que, podendo consentir a conversão de pessoas com várias origens culturais e religiosas, foram sendo disseminadas e construindo formas particulares de identificação cultural e memórias coletivas. Nesse sentido, algumas regiões do Império contavam com comunidades cristãs maiores e mais desenvolvidas que outras, que entre os séculos I e IV vão se espalhando pelo mundo mediterrânico, principalmente pela parte oriental, onde havia comunidades mais numerosas e Igrejas prósperas como em Alexandria, Éfeso e na já citada Antioquia. O mapa abaixo (Figura 1) apresenta justamente os núcleos cristãos antes do agraciamento imperial, ocorrido somente na segunda década do quarto século. As partes litorâneas abrigavam a maior concentração de comunidades, o lado oriental é claramente mais cristianizado, mas o sul da Gália e a África magrebina também comportavam núcleos consideráveis. Percebe-se que a península itálica (Ravena e Nápoles) também já contava com grande número de cristãos. Essas regiões mantinham contato entre si por meio do envio de emissários, de epístolas e de encontros eclesiais. Por exemplo, de acordo com o arqueólogo Alessandro M. Gregori (2014), no Concílio

10 Mas as determinações do Concílio de Jerusalém não foram garantia de tranquilas relações entre cristãos, judeus

e gentios. O grave episódio ocorrido um pouco depois do Concílio envolvendo Paulo, Barnabé e Pedro nos apresenta os debates acerca da conversão e da vivência com os novos crentes. A narrativa bíblica de Gálatas nos conta que Pedro, estando em Antioquia, negou-se a comer com os gentios convertidos quando chegaram alguns judeus cristãos da parte de Tiago. Paulo, em defesa da comunidade enfrentou Pedro em público: “Se tu, sendo judeu, vives à maneira dos gentios e não dos judeus, por que forças os gentios a viverem como judeus?” (2: 11), ou seja, a judaizarem-se. Tal evento demonstra a resistência judaica em abrir caminho para conversos do mundo politeísta, contudo, a atuação de Paulo marca a prerrogativa conciliar de aceitar gentios e de promover sua permanência.

de Arles, ocorrido em 314, já estavam presentes três bispos da Grã-Bretanha. Além disso, neste período, o cristianismo inseria-se nas classes sociais mais abastadas que proviam funcionários ao Império, e por isto, havia cristãos governadores de província, assim como no palácio imperial e mesmo nas famílias imperiais (SIMON E BENOIT, 1987).

Figura 1 – Comunidades cristãs do Ante Pacem

O mapa apresenta o território imperial romano; as linhas pretas e pontilhadas delimitam as fronteiras e as regiões em cinza mais escuro marcam as maiores concentrações de comunidades cristãs anteriores ao ano de 325. Mapa. Fonte: FREEMAN, 2009, p. XIX, apud GREGORI, 2014, p. 53).

Desse modo, os cristãos começaram, a gradativamente, ocupar espaços de sociabilidade comuns aos romanos, ainda que com certo cuidado e em específicos locais. Como primeiras estruturas materiais, os grupos se reuniam em casas particulares cedidas por algum membro, as chamadas de domus ecclesiae, onde celebravam a crença e a eucaristia, mas de tudo de modo discreto. Pelos idos dos séculos II e III, constituem-se, também, espaços fúnebres

destinados aos sepultamentos, necrópoles coletivas que receberam o nome de catacumbas, a exemplo do cemitério organizado pelo diácono Calisto no tempo do papa Zeferino, e de outros espaços como as catacumbas de Domitila, Pretextato e Comodila, todos em Roma. Contudo, apesar de serem espacialidades que cada vez mais vão ganhando patrocínio e características cristãs, tais catacumbas foram usadas por muito tempo de forma indistinta por pessoas de várias tradições religiosas, o que atesta a inserção de cristãos na vida social imperial.

Como explica Franco Pierini (1998, p. 99),

levando em conta esses dados relativos à Igreja de Roma, pode-se compreender facilmente a crescente consistência econômica e financeira da comunidade cristã, que tantas preocupações começa a despertar nas autoridades pagãs: por volta da metade do século [III], como informa o papa Cornélio em uma carta ao bispo de Antioquia, Fábio, a Igreja romana compreende 46 presbíteros, 7 diáconos, 7 subdiáconos, 42 acólitos, 52 exorcistas, leitores e hostiários, mais de 1.500 viúvas e indigentes oficialmente assistidos; donde o estudioso de hoje pode concluir que a comunidade cristã existente em Roma não devia contar com menos de 30 mil pessoas. Isso que se manifesta na capital do Império é só um sinal muito significativo de tudo o que está acontecendo em outras regiões e nas várias cidades.

Assim sendo, percebe-se não só o crescimento de núcleos cristãos como a formação de uma estrutura interna de atuação, que explicita as condições de manutenção e disseminação dessas comunidades. Portanto, a abertura ao mundo gentílico significou a possibilidade, e depois a confirmação, da capacidade cristã de se dispersar por diferentes regiões e angariar fieis em um esforço social, cultural e mesmo político. Nesse ínterim, o movimento cristão antigo se constituiu e desenvolveu em um ambiente greco-romano, assimilando, interagindo e reinterpretando muitos elementos socioculturais e categorias de pensamento, no que concerne às questões religiosas e rituais.

Porém, entre os aproximadamente 250 anos que separaram a primeira perseguição de 64, sob Nero (54–68), e o “Edito de Galério” de 311, o cristianismo foi considerado uma crença ilícita e suspeita. Nos séculos I e II o poder imperial não intervinha diretamente nas questões dos cristãos, pois isso ficava sob a responsabilidade dos governadores das províncias. Entretanto, a partir do terceiro século, a situação mudou e os imperadores passaram a se envolver diretamente com os conflitos cristãos, em especial, Décio, Valeriano e Diocleciano.

As atividades, a crença em Deus e o modo de vida cristão apresentavam-se muito díspares quando comparadas às práticas de seus contemporâneos. O politeísmo greco-romano era uma religião sem igreja única, embora não fosse indiferente a conduta social. “Em lugar do ‘partido único’ que é uma Igreja, trata-se de ‘livre empresa’ religiosa: cada um fundava o templo que desejasse e pregava o deus que bem entendesse” (VEYNE, 2009, p. 189).

Com o judaísmo e o cristianismo, as relações entre os homens e os seres divinos eram baseadas no modelo das relações de um filho com um pai, como encontramos nos textos bíblicos: “Jesus respondeu: ‘quando vocês rezarem, digam: Pai, santificado seja o teu nome’” (Lc. 11: 2). As práticas cristãs partiam dos ensinamentos de Jesus, considerado o “ungido” (messias em hebraico, cristo em grego) por seus seguidores. Seus ensinamentos apresentavam Deus como um pai amoroso, que só buscava o bem dos filhos, mas que os castigava, se necessário, para um bem maior. A justiça, a sobriedade, a caridade e o amor ao próximo formavam os elementos essenciais da crença cristã. A fé no Deus único era o acesso para a salvação na vida eterna, e a conversão era algo individual, que definia as balizas de condutas, pensamentos e práticas. O amor ao próximo se estendia ao amor ao inimigo, ao estrangeiro e ao pecador.

Mas há ainda a questão da total adoração em um Deus único, criador de tudo, onipresente e onisciente. Na perspectiva cristã, somente essa adoração poderia assegurar a vitória nas batalhas, fossem elas quais fossem. A relação que os cristãos estabeleciam com seu deus era estranha aos politeístas por se constituir sob uma situação de providência, na qual o homem implora e Deus decide se o fará, pois cabe a este o juízo se o que se pede é correto e necessário.

Basicamente, o deus judaico-cristão era ciumento, e com todo o seu poder pretendia substituir todos os outros deuses. Sendo assim, entre o que o cristianismo e o politeísmo greco- romano entendiam por “deus” quase nada há de comum além do nome. O embate religioso e cultural entre ambas as manifestações religiosas só poderia gerar conflitos sérios em uma sociedade em que a pax deorum, a estabilidade política e a pluralidade cultural eram o pano de fundo da história. No entanto, se uma vez que o processo de romanização aponta para um caráter integrador para com a cultura religiosa dos povos, por quais razões as comunidades cristãs dos primeiros quatro séculos sofreram perseguições?

A esse debate muitas discussões se seguiram. No início da década de 1960, dois pesquisadores da história greco-romana desenvolveram análises sobre o tema, G.E.M. de Ste Croix e A.N. Sherwin-White indicaram pontos de vista diferentes, mas complementares11.

11 As obras dos autores são Why were the Early Christians persecuted? Past and Present, de G.E.M. de Ste Croix

(1963); e Why were the Early Christians persecuted? – An amendment. Past and Presentde A. N. Sherwin-White (1964). Diogo Pereira da Silva (2011), cita ambos os autores em um artigo intitulado As perseguições aos cristãos no Império Romano (séc. I-IV): dois modelos de apreensão, publicado na Revista Jesus Histórico e sua Recepção em 2011, produção de onde colhemos as informações.

Ste Croix propôs que as perseguições aos cristãos se orientavam na recusa destes de reconhecer e cultuar os deuses romanos, o que era observado como um comportamento perigoso e sedicioso, visto que os deuses tradicionais greco-romanos eram as divindades principais da religião pública de Roma que exigiam ser cultuadas, caso contrário poderiam se enraivecer devido à quebra da pax deorum, a “paz dos deuses”. Assim, “entre a cidade romana e os deuses que ela tinha escolhido para honrar, reinava ou não reinava um entendimento cordial, segundo a ocasião” (VEYNE, 2008, p. 62). Dessa forma, respeitar as regras de comportamento e garantir os rituais representava a manutenção da ordem na sociedade.

Por outro lado, Sherwin-White propôs que as perseguições não tiveram como base a questão da quebra da pax deorum, mas a obstinação dos cristãos em não cometer apostasia, pois sacrificar para as divindades do panteão greco-romano era renunciar à crença do deus único. Tal postura desafiava as autoridades romanas diante à desobediência desse grupo ao poder do Império, o que pode ser observado na carta de Plínio, o Jovem, para o imperador Trajano, escrita provavelmente por volta do ano 112 d.C., quando aquele era governador da província da Bitínia: Eis o procedimento que adotei nos casos que me foram submetidos sob a acusação de cristianismo. Aos incriminados pergunto se são cristãos. Na afirmativa repito a pergunta uma segunda e uma terceira vez, cuidando de intimar a pena capital. Se persistem, os condeno à morte. [...] Os que negaram ser cristãos, considerei-os merecedores de absolvição; de fato, sob minha pressão, devotaram-se aos deuses e reverenciaram com incenso e libações vossa imagem colocada, para esse propósito, ao lado das estátuas dos deuses e, pormenor particular, amaldiçoaram a Cristo, coisa que um genuíno cristão jamais aceita fazer. (apud VENTURINI, 2012, p. 95).

Podemos ainda introduzir em nossa discussão a análise de Paul Veyne sobre as motivações das perseguições no início do movimento. Para Veyne, a atitude dos romanos frente às comunidades cristãs se baseava na repulsa ao que era híbrido, impuro e ambíguo(2009). Em acordo com este ponto de vista, o autor volta-se para as questões de conflitos culturais; na