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5. Implicações teóricas

5.1 A paixão no consumo

Os dados empíricos desta dissertação instigam reflexões acerca da forma como os construtos paixão e desejo foram tratados e definidos por Belk

et al. (2003) e Brei (2007). Em primeiro lugar, a manifestação da paixão por

parte dos pesquisados, em consonância com as definições de paixão de Comte-Sponville (1995) e Abbagnano (2007), acontece, aparentemente, como uma emoção muito mais intensa, totalizante, dominadora e duradoura que a manifestação dos desejos. Sempre que a palavra desejo foi trazida à tona pelos informantes, foi para referir-se a objetos ou ações que queriam muito

fazer ou objetos que queriam ter, que eram consequências de algo maior e

anterior, um “pano de fundo”, que era a sua paixão. A paixão se apresenta como um sentimento de unidade com a coisa amada que não tem uma forma específica, ou melhor, que assume uma quantidade rica de formas. Quase como “a coisa” metamórfica e multiforme que tudo que toca engloba. É uma ligação total com o ente amado, que faz a pessoa transcender de seu estado “normal”, uma experiência de alteridade que não necessariamente é manifesta em objetos específicos. Já o uso da palavra desejo sempre veio seguido de um objeto específico e concreto.

Portanto, propomos aqui que o desejo é a manifestação da paixão, e não o contrário, como proposto por Belk et al. (2003). O desejo segue as características proposta pelos autores, e pode muitas vezes surgir de outras fontes que não uma paixão. Mas a paixão não pode ser confundida com o desejo, nem ser caracterizada como sua manifestação, pois aparentemente apresenta nível de aderência ao ser e intensidade muito maiores e duradouros que o desejo, além de não ter um objeto tão claro e direto como tem o desejo. Na paixão, o objeto se confunde com o sujeito, pela unidade, e assume formas e manifestações múltiplas, tantas quantas forem necessárias para imaginar e buscar a apreensão, a completude da falta causada pela paixão ao ente amado. É por isso que os produtos que têm a marca do Inter “servem”, mesmo que não sejam exatamente os que o consumidor quer, ou deseja, ou que sejam produtos geralmente associados a consumidores de categorias sociológicas distintas (homens eventualmente compram produtos geralmente associados a mulheres, “porque [esses produtos] são do Inter”).

Como o sentimento predominante da paixão, do amor Eros, é a falta, a angústia por possuir o ente amado, como foi dito acima, a solução possível está no corpo, pela família, ou pelo espírito, criando como política, arte, ciência que se expressão em formas de relação com o clube, algumas mediadas pelo consumo. Talvez seja essa força que faça as pessoas comprarem produtos que, por meio da extensão de self pela posse (BELK, 1988), conferem uma satisfação temporária para o vácuo causado pela insatisfação e frustração própria da paixão, do querer e não possuir que é característico desse estado de espírito. Como na religião o amor a Deus é realizado pelos cantos e pelo apego aos símbolos e bens materiais que o representam (ABBAGNANO, 2007), o mesmo parece ocorrer na relação dos torcedores com o clube de futebol, uma relação que se apresenta com características de religiosidade laica da atualidade (DUNNING, apud HEINICH, 2001). Talvez seja em função do amor Eros, desse querer possuir intensamente a totalidade do amado, que muitas pessoas manifestem essa vontade de ter “todos os produtos” do Inter, essa vontade “louca” e quase fanaticamente religiosa de consumir.

Conforme discutido acima, comparando-se a definição de Brei (2007) sobre desejo de consumo com o conceito de paixão no consumo elaborado nas

últimas páginas, acreditamos ser possível propor algumas distinções entre os dois conceitos. Retomando o que foi afirmado, a paixão não parece ser um processo predominantemente cognitivo, como Brei (2007) identifica o desejo. A paixão é processo emocional e experiencial que predominantemente comanda o processo cognitivo, orienta as percepções e a formação de opiniões, sendo a

razão ou a racionalidade subsidiária desse forte sentimento, quando presente.

Pode ser hedonista e prazerosa, mas pode ser muito dolorosa, sofrida, angustiante, quando o objeto da paixão é atacado ou se torna indiferente (não dá retorno ou reconhecimento) ao apaixonado. É essencialmente um sentimento paradoxal de unidade, em certos momentos, e falta do objeto da paixão, na maior parte do tempo. É uma falta permanente, cuja saciedade se dá apenas em momentos específicos de êxtase, nos poucos momentos em que a unidade é atingida e que traz um sentimento de que toda a luta e o sofrimento da busca valeram a pena. A busca pelo sentimento intenso de unidade com o objeto da paixão, em parte motivada pelo prazer e hedonismo do sentimento de unidade e pelo medo da dor e da angústia da falta, é manifestada, também, como desejo por objetos e experiências concretas, que por aproximação, contato, posse, sentimento de pertencimento ou extensão de

self (BELK, 1988), pode trazer esse sentimento momentâneo e efêmero de

“ser” a mesma coisa (“ser colorado”, por exemplo) ou o próprio objeto da paixão. Em relação aos objetos do desejo de consumo, o objeto da paixão no consumo tende a ser muito menos objetificável e ligado a instâncias mais abstratas da experiência, ainda que sentidas com intensidade carnal e visceral e orientadoras de desejos concretos.

Portanto, uma das contribuições teóricas propostas nesta dissertação é a distinção entre o construto desejo de consumo, conforme proposto por Belk

et al. (2003) e Brei (2007), e o conceito de paixão como influenciadora do

consumo. Diferentemente do desejo de consumo, a paixão não tem objeto concreto específico, mas uma relação mais transcendental com um ser, uma ideia ou valores, relação essa que tem uma abrangência e um nível de abstração muito maiores e mais complexos que o objeto de desejo. A paixão é um sentimento totalizante que “toma conta” do ser apaixonado em função de sua manifestação como sentimento de unidade com o ente para o qual a

paixão é direcionada. Como essa sensação de unidade é paradoxalmente realizada pelo constante sentimento de falta do ente ao qual a paixão de dirige, o desejo surge como a manifestação da paixão na forma de uma motivação pela busca de objetos concretos, que possam amenizar ou satisfazer temporariamente a angústia gerada pelo sentimento de incompletude inerente à paixão ou ao amor Eros. Como a paixão é um sentimento de unidade e a busca por essa unidade entre o apaixonado e o apaixonante ‒ e a efetivação dessa unidade é apenas momentânea a rara ‒, é por meio do consumo de produtos que representem simbolicamente o ser amado no imaginário do consumidor que ele buscará tal completude pela posse, manipulação e recriação dos bens que associa (geralmente pela presença das cores e símbolos do clube de futebol) à sua paixão. Sendo assim, a paixão pode, propomos, explicar, pelo menos em parte, o consumo na forma em que ele acontece no contexto estudado, sendo possivelmente aplicável em outros contextos nos quais a paixão esteja presente. Da mesma forma, a paixão pode explicar, pelo menos em parte, a forma como os produtores de marketing concebem e conduzem sua relação com os torcedores/consumidores, a forma como os compreendem e a forma como concebem os objetivos e ações de

marketing. Portanto, a paixão e suas manifestações são parte central da cultura

de consumo e da cultura de marketing no contexto estudado, tendo potencial para permitir a compreensão de outras situações de consumo nas quais sentimento desse tipo esteja presente e formando a cultura de consumo.