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3 IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES

3.2 A PALAVRA REPRESENTAÇÃO: ETIMOLOGIA E DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO

Ao buscar a etimologia da palavra representação, chega-se ao termo latino repraesentare, formado por dois prefixos, re (que indica reiteração) e prae (à frente de, antes), atuando sobre o verbo esse (ser, estar). Raymond Williams (2007) relata que a palavra surgiu no século XIV no inglês e, para além de um termo complexo e ambíguo em que representar é a palavra-chave, dele derivam-se outras palavras e expressões como: representado, representada, representativo, representativa, representante, democracia representativa, representação, representacional, etc.

Representar logo adquiriu uma gama de sentidos relacionados a tornar presente: no sentido físico de apresentar a si mesmo ou a outrem, muitas vezes a uma autoridade; mas também no sentido de tornar presente na mente (―as velhas histórias que os homens leem representam para eles os feitos de gente de valor‖), (Barbour, 1375) e de tornar presente aos olhos da pintura (―representado e retratado‖) ou em peças (―essa peça [...] representada hoje diante de vossa vista‖) (WILLIAMS, 2007, p. 353).

Segundo Williams (2007, p. 353) ainda no século XIV, o termo representar foi utilizado com o sentido de ―simbolizar‖ ou ―significar‖, o que muitas vezes causava sobreposição de sentidos, confusão, incertezas e até divergências entre ―o sentido (a), de tornar presente à mente, e o sentido (b), de representar algo que não está presente, embora

57 O Center for Contemporary Cultural Studies - CCCS surgiu como um polo de pesquisa e de pós-graduação do

muitas vezes estas inconsistências pudessem passar despercebidas‖. Isso porque, como pontua Freire Filho (2005, p. 18), mesmo no latim, ―com o tempo, o termo passou a ser usado [...] como sinônimo de ‗substituir‘, ‗fazer as vezes de‘, no sentido de que a pintura de um rei ‗estaria no lugar‘ do soberano retratado‖.

Ao abordar os determinantes sociais das representações Soares (2007) nos remete ao século XIX, quando então Marx e Engels apresentam uma teoria sobre o papel da sociedade na formação das ideias, utilizando o termo ideologia para referir-se à influência das estruturas sociais na formulação das representações vigentes em uma dada época histórica, trazendo para o centro em primeiro lugar o modo de produção material da sociedade, deixando para um segundo plano as suas representações.

De fato, no século XIX, no prefácio da ―Ideologia Alemã‖ (de 1845), Marx indica que as representações são produtos dos seres humanos e por eles são criadas a partir de suas atividades materiais.

A produção de ideias, de representações e da consciência está em primeiro lugar direta e intimamente ligada à atividade material e ‗ao comércio material dos homens; é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens surge aqui como emanação direta do seu comportamento material. O mesmo acontece com a produção intelectual quando esta se apresenta na linguagem das leis, política, moral, religião, metafísica, etc., de um povo. São os homens que produzem as suas representações, as suas ideias, etc. (MARX, 1998, p. 18-19).

Foi a partir do século XX que o já consagrado significado de representação como ―a corporificação visual de algo‖ refinou-se no sentido de ―reprodução exata‖ e produziu a categoria distintiva de ―arte representacional‖. ―Contudo, não há nada no sentido geral de representar ou de representação que torne essa especialização inevitável. A rigor, sua ênfase na reprodução exata contradiz o principal desenvolvimento do sentido político‖ (WILLIAMS, 2007, p. 356). Ou seja, nem sempre a ―reprodução exata‖ de fato representa a mesma coisa para todas as pessoas e grupos, sendo que o grau de sobreposição possível entre representativo e representação, em seus sentidos político e artístico, é muito difícil de avaliar.

Contemporaneamente, sintetiza Freire Filho (2005, p. 18):

Na concepção moderna e liberal do processo democrático, a ideia de representação está associada à delegação de poderes, por meio de votos, a um conjunto proporcionalmente reduzido de indivíduos, na expectativa de que os eleitos articulem e defendam pontos de vista e interesses dos eleitores. De forma análoga, o termo designa, também, o uso dos variados sistemas significantes disponíveis (textos, imagens, sons) para ―falar por‖ ou ―falar sobre‖ categorias ou grupos sociais, no campo de batalha simbólico das artes e das indústrias da cultura.

Contudo, com a disseminação dos meios audiovisuais, no decorrer do século XX, a questão das representações cada vez mais se afastava das ideias e doutrinas e se ligava ―às representações visuais e encenações mediáticas‖, ou seja, ao campo da comunicação. Por outro lado, é preciso considerar que as representações midiáticas ―têm papéis distintos nos três gêneros da cultura de massa: a ficção, a persuasão e a informação‖ (SOARES, 2007, p. 50). Dessa forma, complementa o autor, ―na comunicação midiática praticada hoje, é raro encontrar expressões das próprias ideologias comuns em livros e em jornais partidários: elas se manifestariam de forma tácita como vestígios ou traços implícitos em narrativas do jornalismo, da ficção, da publicidade e da propaganda‖ (SOARES, 2007, p. 50). No campo do jornalismo, o autor percebe a representação como uma situação mais controversa, pois as notícias são elaboradas a partir da perspectiva de indivíduos sobre os fatos agendados.

Para estudar esse problema, vem sendo utilizado o conceito de enquadramento (framing) empregado para analisar como informações pontualmente corretas e verificáveis podem ser selecionadas, valorizadas, destacadas, omitidas ou atenuadas, em reportagens complexas, de modo a produzirem representações diferentes de uma mesma situação (SOARES, 2007, p. 52).

Um dos eixos do circuito da cultura, a representação, que para Du Gay et al. (1997) corresponde à associação de sentidos a determinado produto cultural, viabilizada principalmente através da linguagem. Os autores argumentam que é através da cultura que as coisas "fazem sentido", e o "trabalho de construção de significados‖ se dá pela forma como as representamos. Alertam ainda que se um dos principais meios de representação na cultura é a linguagem e,

por linguagem não se entenda apenas as palavras escritas ou faladas. Queremos dizer qualquer sistema de representação — fotografia, pintura, fala, escrita, imagens feitas através da tecnologia, desenho — que nos permite usar sinais e símbolos para representar ou re-apresentar o que quer que exista no mundo em termos de um conceito significativo, imagem ou ideia. Linguagem é o uso de um conjunto de sinais ou de um sistema significante para representar coisas e trocas de significados sobre elas (DU GAY et al., 1997, p. 13 [tradução nossa]).

Hall (2011), reconhecendo a complexidade do conceito, observa que há dois sistemas de representação envolvidos na percepção tanto do que é ―real‖ e concreto (como um copo, uma mesa) quanto do que é ficcional ou fictício (pois é possível ter um conceito bastante claro de entidades como anjos e sereias, bem como de personagens ou cidades fictícias da literatura, como a Macondo de García Marques).

No centro do processo de significação da cultura, então, há dois ―sistemas de representação‖, relacionados entre si. O primeiro nos possibilita darmos significado ao mundo, ao construirmos um conjunto de correspondências ou uma rede de

equivalências entre as coisas — pessoas, objetos, eventos, ideias abstratas, etc. — e nossos sistema de conceitos, nossos mapas conceituais. O segundo depende da construção de um conjunto de correspondências entre nosso mapa conceitual e um conjunto de signos, dispostos ou organizados nas várias linguagens que significam ou representam os conceitos. A relação entre as coisas, conceitos e signos está no centro da produção de significados de uma linguagem. O processo que une estes três elementos é o que chamamos ―representação‖ (HALL, 2011, p. 5) (tradução nossa).

Hall (2011) acrescenta ainda que ―qualquer som, palavra, imagem ou objeto que funcione como um signo e seja organizado com outros signos no interior de um sistema que seja capaz de carregar e expressar significados é, deste ponto de vista, ‗uma linguagem‘‖, e é neste sentido que suas reflexões acerca do conceito de representação frequentemente vêm sendo consideradas como ―linguísticas‖, alinhadas à ―virada linguística‖. Em ―O legado teórico dos estudos culturais‖, Hall (2003) se refere a esta e a outras viradas que até certo ponto deslocaram o caminho estabelecido no Centre for Contemporary Cultural Studies, considerando os ganhos decorrentes do envolvimento com conceitos que foram decisivos para compreender como a teoria veio a ser desenvolvida no trabalho do Centro. No entanto, ele alerta que tais contrapartidas teóricas não constituem um momento de autossuficiência.

De novo, não há aqui espaço para fazer mais do que elencar os progressos teóricos decorrentes dos encontros com o trabalho estruturalista, semiótico e pós- estruturalista: a importância crucial da linguagem e da metáfora linguística para qualquer estudo da cultura; a expansão da noção do texto e da textualidade, quer como fonte de significado, quer como aquilo que escapa e adia o significado; o reconhecimento da heterogeneidade e da multiplicidade dos significados, do esforço envolvido no encerramento arbitrário da semiose infinita para além do significado; o reconhecimento da textualidade e do poder cultural, da própria representação, como local de poder e de regulamentação; do simbólico como fonte de identidade. São enormes avanços teóricos, apesar de que, claro, sempre se atentara às questões da linguagem (muito antes da revolução semiótica, o trabalho de Raymond Williams desempenhou aqui um papel central). No entanto, a reconfiguração da teoria, que resultou em ter de se pensar questões da cultura através das metáforas da linguagem e da textualidade, representa um ponto para além do qual os estudos culturais têm agora que necessariamente se localizar. [...] Se vocês pesquisam sobre a cultura, ou se tentaram fazer pesquisa em outras áreas verdadeiramente importantes e, não obstante, se encontraram reconduzidos à cultura, se acontecer que a cultura lhes arrebate a alma, têm de reconhecer que irão sempre trabalhar numa área de deslocamento (HALL, 2003, p. 211).

Em termos gerais, Hall (2011) indica três abordagens que explicam como funciona a representação de significados por meio da linguagem. Na abordagem reflexiva, pensa-se que o significado esteja no objeto, pessoa ou evento do mundo real e que a linguagem, neste caso, funcione como um espelho que reflete o verdadeiro significado (que já existe no mundo). Na abordagem intencional, é sustentado que o(a) falante, o(a) autor(a) é quem impõe ao mundo, através da linguagem, o seu significado único. Finalmente, a abordagem construcionista ou construtivista reconhece o caráter público, social da língua. ―A representação é prática, uma

espécie de ‗trabalho‟, que usa objetos e efeitos materiais, mas o significado depende não da qualidade material do signo, mas de sua função simbólica‖ (HALL, 2011, p. 11, tradução nossa).

Ao fornecerem, repetirem e, portanto, reforçarem palavras e imagens que referenciam algumas ideias, mas não outras, os enquadramentos tornam algumas ideias mais salientes no texto, outras menos e outras inteiramente invisíveis

3.3 REPRESENTAÇÕES DISTORCIDAS DE GÊNERO E DE RAÇA: ―PARA ENCHER