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3 IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES

2. O Movimento de Clubes Sociais Negros do Brasil, que no ano de 2006 reuniu em Santa Maria, RS, mais de 300 gestores de clubes e sociedades negras em busca de soluções

3.13 SANTA MARIA, UMA CIDADE DA REGIÃO CENTRAL NO SUL DO BRASIL: SEGREGAÇÃO E ESCRAVIDÃO

―Santa Maria nasceu sob o signo da escravidão‖. É o que afirma o pesquisador Enio Grigio (2016) que investigou a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, em Santa Maria.

Antes mesmo do estabelecimento do povoado que deu origem à cidade, escravos trabalhavam por seu território. Os comandantes militares, que ―acamparam‖ na região, eram senhores de escravos e, talvez, alguns de seus cativos trabalharam na construção dos primeiros ranchos. Os estancieiros, os lavradores nacionais, os imigrantes alemães e seus descendentes e os comerciantes que foram se instalando na região e deram origem ao povoado, tinham na mão de obra escrava sua fonte

de trabalho e de riqueza. Embora o surgimento da cidade não esteja diretamente

relacionado ao regime escravista, sua história está intrinsicamente ligada à utilização de indivíduos escravizados (GRIGIO, 2016, p. 84).

Santa Maria foi uma das cidades brasileiras na qual o sistema escravista fez morada, a partir da exploração da mão de obra de trabalhadores negros e negras cativos, que construíram e desenvolveram o município ―coração do Rio Grande‖, sob o comando da elite econômica, política e militar, que mantinham o controle das terras, do comércio e de quem poderia nelas trabalhar, garantindo o desenvolvimento do município.

O marco fundador da cidade foi o acampamento criado por militares e civis que faziam parte da Comissão Demarcadora, responsável pelo estabelecimento dos limites entre o território português e espanhol no sul da América. Segundo Grigio (2016, p. 84), o dito acampamento foi montado em terras que pertenciam ao padre Ambrózio José de Freitas, um

senhor de escravos.

Grigio (2016, p. 89) ressalta que [...] O povoado ascendeu à condição de vila (município) em 1858 e a mão de obra escravizada estava presente na floresta, nos campos e na cidade, sendo que a maioria possuía menos de 5 cativos, geralmente uma família escrava, com uma mulher ou um casal com filhos pequenos ou algum elemento mais velho.

Segundo o historiador, a presença significativa de negros livres e escravizados justificava a criação de uma irmandade religiosa para congregá-los. E, justamente no início da

década de 1870 que o censo foi realizado, a lei do Ventre Livre foi promulgada, a obrigatoriedade das matrículas estabelecida e que foi criada a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário.

Grigio (2016, p. 94) ao comentar sobre as irmandades da Santa Maria da Boca do Monte revela que essas organizações funcionavam como um ―espelho das hierarquias sociais presentes nas diversas localidades‖. Em Santa Maria, havia a presença de duas delas: a Irmandade Conjunta de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, esta última na mesma rua do Clube Treze de Maio.

Segundo o historiador a elite econômica, política e militar estava reunida na Irmandade de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento, tendo como contraponto, o que Williams (2003) chamou de “pontos de recuo” à cultura hegemônica, a Irmandade do Rosário.

Os imigrantes de origem alemã que foram chegando à vila, encontraram na irmandade uma referência e um local de acesso e contato com a elite local. Nicolau Becker, João Appel e Antônio Gabriel Edler já faziam parte dela desde 1846. Depois deles, vários outros imigrantes foram se integrando a ela. [...] O contraponto da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição era a Irmandade do Rosário. Na primeira, estavam os senhores; na segunda, os escravizados. [...] Sua criação aconteceu, provavelmente, em 1873, quando foram realizadas eleições para sua mesa administrativa (GRIGIO, 2016, p. 94).

Os membros da Irmandade, ao menos como representação, estavam em uma situação semelhante às demais entidades e autoridades da cidade. Estavam ali, ombro a ombro, senhores e escravos, brancos e negros, ricos e pobres. Igualdade entre eles não existia, conforme explia Grigio (2016, p. 95), mas fazer parte da Irmandade do Rosário, em certas situações, diminuía as diferenças entre eles. Para a população negra, participar dessa associação negra representava reconhecimento social e possibilidade de visibilidade em uma sociedade marcada por preconceitos sociais e raciais.

O historiador revela uma infinidade de acontecimentos que marcaram Santa Maria como uma cidade calcada em todos os pressupostos da escravidão, como aconteceu em todo o país, inclusive com todas as perversidades e maus tratos que continuaram mesmo no pós- abolição, em 1888. Dentre essas passagens da história da Irmandade do Rosário, citamos:

Na solenidade de encerramento, o vigário apresentou ao bispo uma ―escravinha‖ de 8 anos de idade chamada Maria, que foi libertada para comemorar a visita pastoral. Depois dos discursos do padre e do bispo, a “escravinha” recebeu sua carta de liberdade. Maria era escrava de Isabel Nunes do Nascimento e foi comprada por 120 mil réis pelo vigário e pelo alferes Germano Hoffmeister (padrinho de Maria) para marcar a presença do prelado (GRIGIO, 2016, p. 94).

Outra escrava importante deste círculo de relações era Matildes, ora classificada como parda, ora como mulata, também cativa de Nicolau Becker. Matildes devia ter sido uma das primeiras escravas adquiridas por Nicolau. Ele chegou a Santa Maria em 1843 e dois anos depois, em 1845, Matildes estava levando à pia batismal, para ser batizado, o seu filho Jozé, e ela já era identificada como escrava desse senhor. Matildes colaborou para o aumento do plantel de indivíduos escravizados deste imigrante alemão, pois além de Jozé, teve ainda Emília (1848), Fermino (1849?), Delfina (1850) e Elizia (1854) (GRIGIO, 2016, p. 132).

Matildes viveu longos anos na casa de Nicolau Becker. Daudt Filho se refere a ela como ―a velha escrava Matilde‖. Lá, viu nascer seus filhos e netos. Uma terceira geração de escravos começava a se formar com o nascimento de suas netas, filhas de Emília: Januária, que nasceu em 1865 e Úrsula, em 1868. Avó, filha e netas, todas pertencentes ainda a Nicolau Becker. A avó Matildes foi madrinha das duas netas com José, seu filho mais novo, também escravo de Nicolau Becker. A prole de Emília foi extensa, pois além das duas meninas nascidas cativas, ela teve mais seis filhos, nascidos de ventre livre: Ritta (1873), Prudêncio (1876), Raimunda (1879), Matilde (1880), Germano (1882) e Maria (1884). A pequena Úrsula foi alforriada em março de 1874, com o pagamento de quatrocentos mil réis, feita por uma comissão de cidadãos santa-marienses que desejavam solenizar a passagem de um representante do governo. Apesar de todos os trabalhos realizados por Matildes, seus filhos e agora seus netos, Nicolau ainda recebeu considerável quantia pela menina, classificada de parda e mulatinha (GRIGIO, 2016, p. 133).

Os escravos de Margarida Niederauer, Pedro Cassel e Francisco Weinmann

compraram a sua liberdade. Henrique Niederauer concedeu a alforria para que seu escravo, Vicente, o substituísse na Guerra do Paraguai e, depois de terminada, continuasse servindo ao exército brasileiro. Algo semelhante fez Felipe Beck e Abraão Cassel Filho, só que estes compraram dois escravos jovens e imediatamente o alforriaram de ―livre e espontânea vontade e sem constrangimento algum‖ para que servissem ao exército brasileiro como seus substitutos também na Guerra do Paraguai (GRIGIO, 2016, p. 134).

No dia 09 de novembro de 1871, Nicolau Becker comprou de André Beck a crioula

Domingas, de quatorze anos, por seiscentos mil réis e, dois dias depois, vendeu-a

para André Beck Sobrinho por seiscentos e quarenta mil réis, tendo um lucro de quarenta mil réis nesta transação em apenas dois dias. Também, no ano de 1871, no dia 24 de janeiro, José Gabriel Haeffner (filho de Gabriel Haeffner) comprou de José Manuel de Quadros, de Passo Fundo, a preta Benedita, 27 anos, por um conto de réis e, cinco dias depois, transferiu-a para Francisco Fernandes Penna pelo mesmo valor, ao menos no registro cartorial. Provavelmente, tenha registrado esse valor para pagar menos impostos (GRIGIO, 2016, p. 136-137).

Segundo Grigio (2016), os imigrantes de origem alemã utilizaram seus escravos em serviços diversos, como:

trabalhos domésticos, amas de leite, na agricultura e pecuária, nas suas oficinas, nas viagens em busca de mercadorias para abastecer suas casas comerciais e também os alugavam para a prestação de serviços. Encontramos o escravo Adão, agora com 20 anos de idade, trabalhando no concerto das ruas da cidade, no ano de 1867, com o

escravo Miguel e com o crioulo Maurício. O pagamento foi efetuado para Gabriel

Haeffner (6 dias de serviço) e D. Florisbela (18 dias e meio), seus respectivos donos, no valor de 1.280,00 réis por jornal. O crioulo Maurício, não mencionado, mas provavelmente liberto, recebeu por 15 dias de serviço Vinicius de Oliveira relatou a mesma situação de aluguel de escravos por ―nacionais‖ e alemães para Câmara de São Leopoldo.

Esses exemplos demonstram que os alemães e seus filhos também se envolveram no lucrativo comércio de escravizados, comprando, vendendo ou servindo como intermediários de outros interessados em cativos, reforçando aquilo que Williams (2003) chamou de cultura da tradição seletiva, devidamente catalogada como um marco da cultura registrada em arquivos públicos e outros organismos.

Os documentos catalogados pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul, de compra e venda de escravos dos livros notariais de Santa Maria da Boca do Monte, revelaram existência de noventa e sete negociações em que o comprador de escravos era de origem alemã, no período de 1858 e 1888. Quando os vendedores eram alemães ou descendentes, as negociações somaram cinquenta e três casos. Desses, em vinte e três casos, as negociações eram entre os próprios imigrantes, ou seja, em que o vendedor era de origem alemã, assim como comprador (GRIGIO, 2016, p. 137).

Dessa forma Grigio (2016) nos explica que fica evidente que a sociedade de Santa Maria da Boca do Monte viveu intensamente o mundo da escravidão. A mão de obra cativa estava em todos os lugares,

nas grandes propriedades rurais, nas encostas da serra, na limpeza das ruas, nas cozinhas, nas oficinas e nas casas comerciais dos imigrantes. Os viajantes, os políticos e os médicos que passaram pela cidade ou viveram nela, exaltaram a presença e o progresso trazido pelos laboriosos imigrantes europeus (GRIGIO, 2016, p. 141).

Grigo (2016) reforça que tudo isso que se fala sobre os imigrantes europeus pode ser verdade, mas não podemos esquecer que com eles estavam centenas de escravos, que amamentaram e cuidaram de seus filhos, que contribuíram para o enriquecimento de muitas famílias, que se tornaram mercadorias e, simplesmente, tornaram-se invisíveis para genealogistas, cronistas.

Ilka Boaventura Leite (1996), ao falar sobre invisibilidade e segregação de negros e negras em Santa Catarina, afirma que eles não fizeram parte da construção identitária do Sul do Brasil, pois

Esquecidos pelas políticas públicas e pelas pesquisas científicas, os negros deixaram de fazer parte, ou talvez nunca fizeram, do perfil étnico da região Sul, de sua identidade. Ou porque foram invisibilizados pelas várias formas de representação literária e política ou porque foram segregados social e

espacialmente, de modo a serem tratados como não existentes (LEITE, 1996).

Essa realidade vem se alterando ao longo dos últimos vinte anos, pois se em 1996, quando da edição dessa obra, ―Negros no Sul do Brasil: invisibilidade e territorialidade‖, esses autores rompiam com a visão tradicional de um sul embranquecido pela colonização

europeia, retratando a persistência dos negros em um contexto de marginalização social, exclusão e segregação.

Na atualidade (2016), temos um contingente de pesquisadoras/es negras e negros, outrora ―objetos de estudo‖, agora, se apropriando cada vez mais de temas que lhes afetam. Intelectuais negras76, em diferentes áreas, que com suas pesquisas e ativismos quebram parte da hegemonia branca nas universidades, com produções desconcertantes e transgressoras (HOOKS, 2013), ampliando as pesquisas e reflexões sobre esse tema, como forma de lutar contra a invisibilidade, o racismo, o sexismo, a pobreza e a opressão de gênero.

Paira no imaginário nacional que o Rio Grande do Sul é um Estado branco onde não existem negros, ou que neste lugar a escravidão foi ―mais branda‖. A ideia de democracia social somar-se-ia a da democracia racial (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 47 apud OLIVEN, 1996, p. 20), conforme relato do viajante francês, em 1820

[...] não há, creio, em todo o Brasil, lugar onde os escravos sejam mais “felizes” (grifo nosso) que nesta capitania. Os senhores trabalham tanto quanto os escravos mantêm-se próximos deles e, tratam-nos com menos desprezo. O escravo come carne à vontade, não é mau vestido, não anda a pé e sua principal ocupação consiste em galopar pelos campos, cousa mais sadia que fatigante. Enfim eles fazem sentir aos animais que os cercam uma superioridade de sua condição baixa, elevando-se aos seus próprios olhos (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 47 apud OLIVEN, 1996, p. 20).

As mulheres negras buscaram de diversas maneiras superar as condições impostas pelo tenebroso sistema escravista que as ―coisificava‖, elas eram ―propriedade‖. Mesmo diante dessas condições, muitas cativas conseguiram juntar dinheiro para acesso ao mundo livre, comprando as suas alforrias e de seus familiares; outras, participaram ativamente de rebeliões, formação de quilombos, fugas, insurreições, levantes, motins, colaborando permanentemente com a causa abolicionista, muitas vezes, saqueando e incendiando com seus

76 Conforme nos ensina Sueli Carneiro (2004) apud Ratts, 2006, p. 33, que aponta o duplo ato de lembrar e

nomear para se contrapor à invisibilidade das mulheres negras, poderíamos citar um número expressivo de mulheres negras que vem tratando esses temas, a exemplo de Fernanda Oliveira da Silva; Nina Fola (Janine Cunha); Giovana Xavier; Ana Flávia Magalhães Pinto; Geanine Vargas Escobar; Georgina Lima; Lilian Conceição da Silva Pessoa de Lira; Treyce Helen Goulart; Marta Iris Camargo Messias (Jamaica); Karen Tolentino; Denise Silva (Denisenhando); Maria Rita Py Dutra; Sandrali de Campos Bueno; Sátira Machado; Jaqueline Gomes de Jesus; Cristiane Sobral; Fernanda Arispe; Letícia Aguiar; Eveline Pena; Neli Gomes Rocha; Bell Clavelin; Deborah Silva Santos; Vera Dayse Barcellos; Fernanda de Araujo; Izilda Toledo; Thais Silveira; Aline Serzedello Vilaça; Maíra Zenun; Bianca Lopes Brites; Ale Gama; Lisiane Guedes; Cristiane Gomes; Ariane Meireles; Jeruse Romão; Renata Melo; Vera Lopes; Maria Conceição Fontoura; Lisandra Machado; Ceiça Ferreira; Íris Amâncio; Patrícia Helena Xavier dos Santos; Daniele Machado Vieira; Vitória Sant'Anna Silva; Desirée Gomes; Renata Rodrigues Lopes; Vera Lúcia Goulart da Rosa; Gabriela Souza da Rosa; Priscila Andrea da Cruz; Iliriana Fontoura Rodrigues; Juliana de Melo Balhego; Lara Ana dos Santos Cornelio; Janice Terezinha dos Santos Rodrigues; IreneSantos; Luana de Brito; Sherol dos Santos; Suelen Aires Gonçalves; Greice Cavalheiro de Souza; Rita Marques Moreira; Priscila Nunes Pereira; Rita de Cássia Santos dos Santos; Ana Paula Barcelos de Oliveira Cougo; Júlia Dias da Silva; Géssica Rosa de Oliveira; Kizzy Martins Borges.

companheiros, as propriedades dos senhores da casa-grande (SCHUMAHER; BRAZIL, 2007).

As formas de existir e de resistir do povo negro foram diversas e foi também, por meio da constituição das inúmeras associações, clubes sociais negros e irmandades de negros, sendo a mais expressiva dentre as irmandades de pretos, era a de Nossa Senhora do Rosário, que desde os séculos XV e XVI, congregava a população negra em Portugal.

O pesquisador Enio Grigio (2016), registrou a existência de 26 Irmandades Negras Rio Grande do Sul, entre os Séculos XVIII e XIX e se debruçou em descobrir as pessoas que fizeram parte da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Santa Maria (fundada em 1874), as quais tinham significativas e importantes ligações com os idealizadores do Clube Treze de Maio de Santa Maria (fundado em 1903).

A historiadora Fernanda Oliveira da Silva (2011) registrou a presença de inúmeras associações criadas por e para negros, antes de depois da abolição, na cidade de Pelotas. Segundo a pesquisadora, foi possível observar associações negras pelotenses fundadas durante a escravidão com o objetivo de inserirem-se na sociedade através da sua demonstração de organização, num primeiro momento, assim como, num segundo momento, na medida do possível, libertar os escravos.

Escobar (2010) mapeou 53 clubes sociais negros no Rio Grande do Sul (APÊNDICE B), criados em especial no pós-abolição e que a partir do ano de 2006, passaram a se encontrar com frequência, com vistas a se fortalecerem coletivamente, exigindo do Estado políticas públicas de manutenção de seus espaços físicos, preservando a imaterialidade contida nesses patrimônios, criados por conta de uma sociedade racista e segregacionista.

A presença da mulher negra no sul do país foi fundamental na constituição desses territórios negros, sendo figura primordial na organização dos Clubes Sociais Negros, embora elas raramente exercessem o papel de Presidenta, foram elas que garantiam a continuidade, o cuidado com o espaço físico e a participação de cada família, que se orgulhava de ter um espaço dos seus e ―para os seus‖ (OLIVEIRA, 2011).

4 METODOLOGIA

4.1 MÉTODOS DE ABORDAGEM E MÉTODOS DE PROCEDIMENTOS ANALÍTICOS